Prevaricações

Jorge Martins Bettencourt
13 de Janeiro de 2024

PREVARICAÇÕES  

O meu amigo Jorge Manuel Gonçalves exprimiu as dúvidas constitucionais e penais que lhe suscitaram as notícias de que o primeiro-ministro (PM) em exercício estaria a ser investigado por um crime de prevaricação devido a ter sido aprovada, em Conselho de Ministros, a denominada “lei malandra”. Fê-lo num texto de grande qualidade e rigor cuja leitura recomendo a todos os que como eu, leigo na matéria, queiram perceber o enquadramento jurídico do episódio e fazer uma interpretação crítica do que é dito e escrito na comunicação social e nas redes sociais.

No entanto, como cidadão, gostaria de ir um pouco mais longe na reflexão sobre o episódio, em particular sobre as consequências para o Estado de direito democrático consagrado no Artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa. Mas antes quero deixar claro que entendo que se houver o mais leve indício de prevaricação no processo de elaboração e aprovação da “lei malandra”, o Ministério Público (MP) deve investigar com o máximo rigor, firmeza e celeridade a participação de todos os intervenientes, desde logo do PM e de todos os membros do governo envolvidos. Deve fazê-lo com os meios legais ao seu dispor, mantendo naturalmente a discrição e até o segredo que uma investigação judicial deve respeitar escrupulosamente.

Por outro lado, entendo que não deve haver qualquer complacência para com a promiscuidade de interesses que caracteriza muitas das relações de poder na sociedade portuguesa e para com a herança de décadas de corrupção, compadrio, favor e cunha. Entendo que a corrupção, assim como as outras práticas relacionadas, são profundamente negativas para a sociedade, geram injustiça e desigualdades e minam os alicerces da democracia, e como tal deve ser combatida por todos nós, sem excepção, exercendo a nossa cidadania e obrigando as instituições democráticas a cumprirem a sua missão.

Mas isso não impede que considere que o populismo, entendido como a ideologia dos campos antagónicos dos “nós” frágeis e puros e dos “eles” poderosos e perversos, da desconfiança relativamente ao pluralismo de interesses e preferências, aos mecanismos de negociação e compromisso, às instituições e procedimentos da democracia, está a usar as notícias sobre os casos de corrupção para atacar o regime democrático. Basta ler o que é publicado nas redes sociais e nas caixas de comentários dos órgãos de comunicação social para perceber do que falo, principalmente quando reiteradamente se associa a corrupção ao 25 de Abril e às regras do Estado de direito democrático.

De facto, o populismo ataca e ridiculariza os procedimentos da democracia, com o argumento de que dificultam o combate do que classifica como crime, mesmo antes de qualquer julgamento. Abomina os direitos de defesa dos acusados, as garantias processuais e, em particular, a obrigação de quem acusa provar a acusação.

Acontece que no caso da investigação do processo de elaboração e aprovação da “lei malandra” o MP parece ter optado por não actuar com a discrição a que está institucionalmente obrigado. Através de um comunicado pouco claro e de uma alegada fuga de informação para o Observador, criou nos cidadãos a percepção (e é apenas de percepções que posso falar) de que um ministro, com a concordância do PM (“o gajo está completamente entusiasmado com isto", leu-se no jornal), terá feito uma “lei malandra” para beneficiar a Start Campus.

Antes de haver uma acusação, o MP criou condições, mesmo que involuntariamente, para que a comunicação social transmitisse aos cidadãos a ideia de que o processo legislativo dependeu apenas de uma ou duas pessoas, uma delas o PM, e que não houve qualquer mecanismo de verificação e responsabilização até à promulgação pelo Presidente da República.

E assim, mesmo não sendo essa a intenção, o MP abriu espaço para os populistas, que se aproveitam da deterioração do sistema político democrático e da falta de eficácia do combate aos grupos de interesses que mantêm as práticas de compadrio e corrupção entre o Estado e os privados para promover soluções autoritárias antidemocráticas, ganharem mais alguns seguidores.

E com isso minarem ainda mais o Estado de direito democrático consagrado no Artigo 2.º da nossa Constituição.

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