Jorge Martins Bettencourt
Setembro 2025
O desastre com o elevador da Glória, ocorrido em 3 de setembro de 2025, abalou profundamente o país. Num momento de luto e consternação perante os 16 mortos e 21 feridos, dos quais pelo menos 5 em estado crítico, o Presidente da República sublinhou a necessidade de "exigência e responsabilidade". Contudo, a análise das primeiras declarações dos principais responsáveis pela gestão daquele meio de transporte revelou uma notável ausência da assunção direta dessa mesma responsabilidade.
Carlos Moedas, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, entidade que tutela a Carris, manifestou pesar pelo acidente e ordenou a suspensão imediata da operação de todos os ascensores e funiculares da cidade. Pedro Bogas, Presidente do Conselho de Administração da Carris, a empresa que explora o elevador da Glória, expressou condolências e solidariedade às famílias das vítimas, detalhando o apoio social, material e logístico. No entanto, de nenhum deles se ouviu uma assunção clara de responsabilidade pela falha catastrófica do elevador que transportava, em média, cerca de 9 mil passageiros por dia, segundo os dados da Carris. Era o elevador mais utilizado de Lisboa, servindo tanto turistas como residentes que circulavam entre os Restauradores e o Bairro Alto.
O presidente da Carris Pedro Bogas, no que designou por "declarações de natureza técnica", classificou a ocorrência como uma "situação perfeitamente [...] inimaginável, inusitada". Esta caracterização, talvez revelando alguma falta de sensibilidade técnica ou de compreensão do risco inerente a sistemas complexos, contrasta com o princípio fundamental da engenharia de prever o pior cenário e implementar medidas para maximizar a segurança e minimizar a probabilidade de ele ocorrer, assim como os possíveis danos. A falha não deveria ser "inimaginável", dado que o elevador da Glória já tinha sofrido um descarrilamento em 2018, sem vítimas, devido a uma "anomalia técnica".
O jurista Pedro Bogas garantiu que o plano de manutenção foi "escrupulosamente cumprido" e que as inspeções diárias estavam "devidamente registadas". Admitiu que a inspeção feita na manhã da tragédia, cerca de 9 horas antes, não detetou nenhuma falha, e que, pelos registos, lhe "parece" que a inspeção foi bem feita. Esta afirmação é particularmente preocupante, pois evidencia como a causa de uma falha tão grave pôde passar despercebida.
O acidente levanta questões sobre a adequabilidade do programa de manutenção para a intensidade de utilização atual de cerca de 3 milhões de pessoas por ano, um volume para o qual o elevador não foi originalmente projetado. A inspeção visual diária, feita "enquanto o cabo vai correndo na roldana", pode não ser suficiente para detetar problemas como a fadiga de materiais, que se desenvolvem progressivamente e podem não ser visíveis a olho nu.
As declarações de Pedro Bogas deixaram várias questões cruciais sem resposta, que agora se tornam centrais para a compreensão do que falhou e para a reposição da confiança pública. De entre elas, ficámos sem saber que sistemas de segurança e redundância existem nos ascensores e quais falharam. Bogas evitou dar detalhes técnicos, alegando que a lógica da "ferrovia ligeira com 100 anos não é exatamente assim" como a dos comboios normais, remetendo os detalhes para o inquérito!
A tragédia do elevador da Glória exige mais do que condolências e a promessa de inquéritos. Exige uma assunção clara de responsabilidade e respostas transparentes e exaustivas às questões levantadas. A segurança de um património que é simultaneamente transporte público e atrai milhões de pessoas anualmente não pode ser comprometida. É imperativo que as autoridades e a Carris demonstrem, através de ações concretas e explicações fundamentadas, que a "inimaginável" tragédia será usada para implementar mudanças profundas que garantam que tais acidentes nunca mais ocorram. A confiança da população e dos turistas depende disso.
O acidente do Ascensor da Glória trouxe à memória um desastre semelhante ocorrido em Fevereiro de 1963, com o elevador do Sítio, na Nazaré. O “Diário de Lisboa” do dia 16 daquele mês dava conta, na página 11, que o desastre “só por felicidade extrema não causou grande número de mortes.” Depois de dar conta do número de vítimas do acidente — um morto identificado e dezoito feridos hospitalizados — e da solidariedade pública para com os sinistrados, noticiou com o subtítulo “O cabo não se partiu: desprendeu-se”: “A comissão nomeada pelo governador de Leiria para determinar as causas do desastre, ontem mesmo principiou a examinar os destroços dos dois carros, cujos chassis pesam, cada um, seis toneladas. O carro que sofreu o embate do que estava mais acima, ficou com o chassis reduzido a metade do tamanho. Tudo o resto é uma amálgama de destroços. Para já, os inquiridores verificaram que o desastre não foi motivado pelo rebentamento do cabo. O acidente deu-se porque o cabo se soltou, em condições que se desconhecem, do respectivo engate do carro.”
Existem notáveis semelhanças entre os dois acidentes. Ambos os elevadores — da Glória, em Lisboa, e do Sítio, na Nazaré — foram projetados pelo engenheiro Raoul Mesnier du Ponsard e utilizam o mesmo princípio de funcionamento: um cabo de tração e contrapeso, com as duas cabines ligadas por esse cabo, sendo o movimento de uma equilibrado pela outra. Inicialmente, usavam tração por contrapeso de água e mais tarde foram adaptados para tracção eléctrica.
Embora os sistemas de fixação do cabo dos dois elevadores não sejam exatamente iguais devido aos declives, comprimentos e exigências de segurança, as semelhanças levaram desde logo a admitir uma falha do sistema de fixação do cabo ao carro sinistrado no elevador da Glória, tal como na Nazaré em 1963.
Na Nota Informativa do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) sobre a abertura da investigação do acidente do Ascensor da Calçada da Glória [1], são identificados os seguintes factos cruciais:
Falha crítica da fixação à cabine do cabo de ligação entre os dois carros, especificamente a sua cedência "no seu ponto de fixação dentro do trambolho superior da cabina n.º 1". Este é o facto mais imediato e direto do acidente.
Ineficácia dos sistemas de travagem em cenário de falha do cabo. Foi revelado que, "na configuração existente, os freios não têm a capacidade suficiente para imobilizar as cabinas em movimento sem estas terem as suas massas em vazio mutuamente equilibradas através do cabo de ligação". Isto representa uma falha de segurança fundamental no projeto atual, pois o sistema de travagem principal não é redundante à falha do cabo.
Lacuna regulamentar preocupante: A investigação preliminar constatou que o ascensor não está sob a supervisão do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., e não há "informação fidedigna e confirmada sobre qual é o enquadramento legal do ascensor da Glória nem sobre qual é a entidade pública que tem a obrigação de supervisionar o funcionamento e segurança deste sistema de transporte público".
Inadequação dos procedimentos de inspeção: Apesar de o plano de manutenção estar "em dia" e a inspeção visual do dia do acidente não ter detetado anomalias, a falha ocorreu numa zona que "não é passível de visualização sem desmontagem". Isso levanta questões sobre a adequação dos procedimentos para detetar desgaste ou falhas em pontos críticos do sistema.
As constatações iniciais do GPIAAF e o número de vítimas fatais e feridos sublinham a consequência catastrófica do "desligamento do cabo entre cabinas" e a importância de uma investigação exaustiva para prevenir futuras ocorrências. No Ascensor da Glória as cabinas são motorizadas e o cabo de ligação entre elas serve principalmente para equilíbrio de peso. Esta característica é crucial para entender como os sistemas de segurança deveriam ter reagido à perda do cabo.
O acidente no Ascensor da Glória expôs a combinação perigosa da falha material — fixação do cabo de ligação — com uma deficiência crítica no projecto dos sistemas de segurança — ineficácia dos travões sem o cabo de equilíbrio —, assim como uma preocupante lacuna na supervisão regulamentar. Por isso a investigação do GPIAAF em curso focará em todos estes aspetos, visando a emissão de recomendações de segurança que possam prevenir futuros acidentes em sistemas de transporte semelhantes.
Mas para alguém que por formação e experiência profissional sempre valorizou a gestão da manutenção e a fiabilidade de sistemas, com foco particular nas falhas de causa comum e nos pontos únicos de falha (SPOF) e sempre adoptou a análise de modos de falha e efeitos (FMEA) e a análise de modos de falha, efeitos e criticidade (FMECA) como ferramentas para identificar e mitigar potenciais falhas, é difícil entender como a lição de 1963 da Nazaré não foi aproveitada para prevenir e evitar o desastre de 2025.
Tal como aconteceu em 1963 com o elevador da Nazaré, a fixação do cabo ao trambolho no elevador da Glória voltou a revelar-se crítica e conjugada com a ineficácia do sistema de travagem, constituiu um modo de falha catastrófico que deveria ter sido identificado e mitigado pelos responsáveis técnicos da Carris. Ambos os desastres demonstraram a importância crítica de se evitar tais modos de falha e a necessidade de se adoptar um projeto e uma gestão de manutenção robustos para garantir a disponibilidade e a confiabilidade dos sistemas.
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[1] - Nota Informativa do GPIAAF de 06 de setembro de 2025