Jorge Lourenço Gonçalves, Jorge Martins Bettencourt, Luís Costa Correia
Agosto 2023
Na Ucrânia, em recente conferência de imprensa, o Presidente da República Portuguesa afirmou, dirigindo-se ao Presidente Zelensky que “O poder político em Portugal democraticamente legitimado quer que, no futuro, a Ucrânia faça parte da família europeia” e, mais grave, que “espero que fique claro que quando o Presidente de Portugal diz que esse é o objectivo, está dito, não há ninguém acima do Presidente que possa dizer coisa diferente nessa matéria.”
Não sabemos se o propósito foi enganar os Ucranianos, mas e para que fique claro, o Presidente da República não deve enganar os portugueses.
Assim, diz a Constituição da República Portuguesa (CRP) no seu artº 197º, nº 1, alíneas b) e c):
«Compete ao Governo, no exercício de funções políticas:
b) Negociar e ajustar convenções internacionais;
c) Aprovar os acordos internacionais cuja aprovação não seja da competência da Assembleia da República ou que a esta não tenham sido submetidos.»
É, pois, ao governo, sem margem para qualquer dúvida, que cabe a negociação e o ajuste das convenções internacionais.
Quanto à aprovação dos acordos e de tratados internacionais, há que distinguir duas vertentes, uma quando se trata da aprovação para ratificação de tratados solenes − os quais compete ao Presidente ratificar depois de devidamente aprovados pela Assembleia da República ou pelo Governo (cfr. artº 135º b) com a subsequente produção de efeitos na ordem jurídica interna (cfr. artº 8º, nº 2), sendo certo que a aprovação de tratados é compartilhada pela Assembleia da República e pelo Governo (cfr. artº 161º, i) − e outra relativamente aos acordos internacionais que não são ratificados pelo PR, cabendo-lhe, apenas, assinar os decretos governamentais de aprovação (cfr. artºs 197º, nº 2 e 134º, b). Existe uma reserva de aprovação parlamentar exclusiva − os acordos internacionais que versem matérias da sua competência reservada − e outra que deixa à discricionariedade do governo a submissão de qualquer acordo Internacional − acordos que o Governo entenda submeter à sua apreciação.
No caso da adesão de um novo membro à União Europeia, o processo é conduzido pela Comissão Europeia e pelo Conselho da União Europeia, a quem compete supervisionar o processo de alargamento e as negociações de adesão. Quando as negociações sobre todos os domínios de intervenção estiverem concluídas e a própria União Europeia estiver preparada para o alargamento em termos de capacidade de absorção, os termos e condições de adesão – incluindo eventuais cláusulas de salvaguarda e disposições transitórias – são incorporados num tratado de adesão. Esse tratado, celebrado entre todos os Estados-Membros e o país candidato, precisa da aprovação do Parlamento Europeu e da aprovação unânime do Conselho antes de todos os Estados-Membros da União Europeia e do país candidato o poderem assinar.
No âmbito interno, em conformidade com as normas constitucionais portuguesas, o tratado entre todos os Estados-Membros da União Europeia e o país candidato deve ser aprovado pela Assembleia da República e ratificado pelo Presidente da República (cfr. artº 135º, b) da CRP. Só após todos os Estados-Membros da União Europeia ratificarem o tratado de adesão em conformidade com as respetivas normas constitucionais, é que o país candidato se torna um Estado-Membro da União Europeia, na data fixada no tratado de adesão.
Conclui-se, assim, que ao Presidente da República não compete dirigir a política externa nem concluir ou ajustar tratados internacionais como é o caso do tratado de adesão à União Europeia de um novo membro, no caso a Ucrânia. Esta competência é do governo, conforme acima se viu, de acordo com o princípio geral que compete a este a condução da política geral do país (cfr. artº 182º) e, caso esta admissão seja recusada, nem sequer tem intervenção formal. Deste modo, a função de representação externa da República que cabe ao Presidente da República (cfr. artº 120º) não pode ser confundida com a condução da política externa, sendo certo que é necessária uma política de concertação, mas não de subordinação, entre estes dois órgãos para conjugar estas duas competências.
É verdade que não há ninguém acima do Presidente da República que possa dizer coisa diferente nesta matéria, todavia existe um Governo que conduz as negociações e pode exercer o seu voto no seio da União Europeia, de acordo com a sua política, sem que tenha de pedir autorização para tal ao Presidente. Se considerarmos, a título de exemplo, que uma recusa à entrada de qualquer país nesta organização não constituirá uma alteração a tratados existentes, ela não terá de ser submetida à aprovação da AR, nem à ratificação do PR, pelo que este nunca poderá inculcar, como pareceu querer fazê-lo, que terá sempre a última palavra na adesão da Ucrânia à União Europeia.
Conforme já temos dito em outros escritos (ver em “AO LARGO” “Uma Mudança de Regime?” de 31/08/2022 e “Populismo - O Espírito do Tempo” de 22/11/2022) estamos a assistir a uma mudança de regime (e aqui concordamos, excepcionalmente, com o comentador António Barreto na sua crónica “O regime está a mudar" publicada no “Público” de 26/08/2023) pela mão duma pessoa que, ao tomar posse, jurou cumprir a Constituição – tentativa que não deve passar em claro perante a opinião pública que o PR tanto preza.
NOTA DOS EDITORES: A legislação citada pertence à Constituição Portuguesa e as opiniões constitucionais expandidas seguem, de perto as lições dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2ª ed. e do Prof. Jorge Miranda na sua “Constituição Portuguesa Anotada”, 2ª ed.