Jorge Martins Bettencourt, Jorge Lourenço Gonçalves, Luís Costa Correia
Abril 2023
Os mais recentes acontecimentos no NRP Mondego provocaram um inusitado caudal de intervenções públicas de pessoas que, pelas suas responsabilidades, deveriam preservar a discrição. Esta atitude parece ser influenciada pela alcunha de “bazófias” dada ao patrono do navio pelas gentes de Coimbra, antes da regularização do caudal do rio, nos idos anos 80 do século passado.
Primeiro foi um comunicado da Marinha de 3 de Abril[1] dando conta que "Na noite de 27 de março de 2023, a cerca de 8 km a sul do Porto do Funchal, em direção às Selvagens, o NRP Mondego perdeu subitamente os dois geradores elétricos e os dois motores de propulsão.” Nele se dizia que “a causa da paragem súbita de quatro motores diesel, dois geradores elétricos e dois propulsores, resultou de baixos níveis de combustível no tanque de serviço que alimenta os respetivos motores e geradores” e que estavam “em curso averiguações para apurar o que falhou na resposta ao mecanismo de alerta de nível baixo de combustível no tanque de serviço e reposição deste por trasfega de um dos nove tanques de reserva existentes a bordo.”
No dia seguinte, dia 4, o ex-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (ex-CEMGFA) e antigo Chefe do Estado-Maior da Armada (antigo CEMA), Silva Ribeiro, dizia na CMTV[2]: “Para mim é um erro humano, é um erro de condução do sistema. Sabe, aqueles navios têm nove tanques de combustível e depois esses tanques de combustível debitam para o tanque de serviço, que é aquele que abastece as máquinas principais e os geradores. E só é possível uma avaria daquelas acontecer, um problema daqueles acontecer, de um navio parar todo ao mesmo tempo, por falta de combustível.”
No dia 5, o porta-voz da Marinha, Sousa Luís, disse ao Público[3] que o “sensor de combustível actuou” — ou seja, assinalou o baixo nível de combustível no tanque de serviço —, mas “quem deveria ter visto não viu”. “O erro humano foi terem visto mal o sensor do combustível, ou eventualmente não terem visto.”
Finalmente, no mesmo dia 5, o CEMA, Gouveia e Melo, durante uma deslocação ao Porto, afirmou à RTP[4] e a outros órgãos de comunicação social: “A única coisa que lhe posso dizer é que a Marinha não mente e que o problema, o último incidente, não foi, não teve origens em problemas mecânicos ou problemas da plataforma. Foi um erro humano que nós estamos a investigar.”
Para enquadrar o tema sem maçar os leitores, julgamos oportuno recordar que desde os anos 50 do século passado, inicialmente por iniciativa da indústria militar e aeroespacial norte-americana, foi desenvolvida uma abordagem genericamente designada por Failure Mode and Effects Analysis (FMEA) com o objectivo identificar e avaliar possíveis falhas num sistema e determinar os efeitos dessas falhas. Os princípios da FMEA acabaram por ser embebidos nas práticas, regras e códigos adoptados nas diversas indústrias em todo o mundo, para melhorar a segurança e fiabilidade dos sistemas e equipamentos.
No caso de navios militares, a FMEA é usada para identificar possíveis modos de falha ou avaria dos sistemas e componentes do navio e avaliar os efeitos dessas falhas no desempenho, na missão e na segurança do navio e da guarnição. Consiste no estudo sistemático e estruturado das potenciais avarias e deficiências, assim como dos possíveis erros de condução, que podem ocorrer em qualquer componente de um sistema para determinar o efeito provável de cada um sobre todos os outros componentes do sistema e no desempenho operacional do conjunto. Com tal abordagem metodológica ao longo de todo o ciclo de vida do navio, procura-se melhorar a sua operacionalidade e segurança.
Das várias técnicas possíveis, a mais comum em embarcações é basear a FMEA no conceito de falha única segundo o qual se assume que os vários níveis da hierarquia funcional de um sistema falham por uma causa provável de cada vez. Os efeitos da falha são analisados e classificados de acordo com a sua gravidade. Tais efeitos podem incluir falhas secundárias (ou falhas múltiplas) em outros níveis. Qualquer modo de avaria que possa causar um efeito catastrófico no sistema ou na embarcação deve ser protegido por redundância do sistema ou do componente ou equipamento analisado.
É por isso que nas escolas de Engenharia se ensina que os sistemas vitais, mecânicos, eléctricos, electrónicos ou de outra natureza, não podem ter um ponto único ou crítico de falha ou avaria. A expressão resulta da tradução da expressão inglesa Single Point of Failure (SPOF) e refere-se a uma falha, avaria, erro ou mau funcionamento que, por si só, pode fazer com que todo o sistema deixe de funcionar.
Obviamente que não de trata de uma bizarria de quem ensina. Por exemplo, num navio, não pode existir um SPOF da instalação propulsora ou do sistema produção de energia elétrica que, ao ocorrer, deixe o navio à deriva ou totalmente “apagado”. Em princípio, nenhum projectista ou operador aceita tal risco e por isso, quer na fase de projecto quer na fase de exploração, tudo é feito para eliminar os possíveis SPOFs dos sistemas vitais do navio.
A prevenção e eliminação dos possíveis SPOFs dos sistemas vitais do navio é também um dos objectivos das regras das sociedades classificadoras. Para isso, determinam a existência de redundâncias dos componentes críticos e regras de projecto que devem ser rigorosamente cumpridas pelos navios classificados.
Neste contexto, nunca um SPOF deveria comprometer qualquer dos sistemas principais de um navio militar e, muito menos, poderia comprometer simultaneamente dois sistemas vitais como a propulsão e a produção de energia! Mas aparentemente, a fazer fé no comunicado da Marinha e nas opiniões do ex-CEMGFA, do CEMA e do porta-voz da Marinha, no NRP Mondego existe um SPOF dos dois motores propulsores e de dois motores geradores: o tanque de serviço de combustível que alimentará os quatro motores.
Um princípio geral do projeto de instalações de navios é garantir a redundância dos tanques de serviço de combustível, ou seja, cada motor principal e auxiliar deve ser alimentado por, pelo menos, dois tanques de serviço, cada um com capacidade para oito horas de funcionamento. Além disso, é uma boa prática de projeto que os motores principais e os geradores sejam alimentados por tanques de serviço independentes, com circuitos também separados.
Aparentemente, os projectistas das instalações propulsora e de produção de energia eléctrica do NRP Mondego não adoptaram tal princípio. Mesmo descontando a prosopopeia usada pelo CEMA — a Marinha não tem sentimentos nem pratica ações próprias dos seres humanos e, por isso mesmo, não mente —, não temos por enquanto razão para duvidar que os motores, todos os motores do NRP Mondego, pararam simultaneamente, na noite de 27 de março de 2023, por falta de combustível.
No entanto, a afirmação de que o incidente não foi causado por problemas da plataforma e resultou apenas de um erro humano poderá ser questionada se se confirmar, como foi referido, que o navio tem um único tanque de serviço de combustível para todos os motores propulsores e geradores. Nesse caso, a paragem total das instalações propulsora e de produção de energia eléctrica do navio depende da atenção de alguém ao alarme de baixo nível desse tanque, o que constitui um risco elevado que as regras das sociedades classificadoras e as boas práticas de projecto de navios consideram inaceitável; e existe uma evidência clara de um problema na plataforma do navio, que compromete gravemente a fiabilidade das instalações propulsora e de produção de energia eléctrica e a segurança do NRP Mondego.
O que nos surpreende é que apesar dessa evidência, o ex-CEMGFA e o CEMA tenham afirmado que se tratou apenas de uma falha humana, mesmo antes das averiguações estarem concluídas e de se conhecer o relatório final do oficial averiguante. Este, decorrido o prazo para conclusão do processo e identificado o eventual responsável, elabora relatório sucinto com a síntese dos factos apurados e proposta sobre a decisão a proferir, o qual remete à entidade que mandou instaurar o processo. [5]
Em face das provas recolhidas e do relatório do instrutor, a entidade que mandou instaurar o processo decide, ordenando ou propondo, consoante a sua competência:
a) O arquivamento do processo;
b) A abertura de processo disciplinar;
c) A abertura de processo de inquérito, se for desconhecido o autor da infracção, ou se os indícios colhidos no processo de averiguações forem insuficientes;
d) A abertura de processo de sindicância, se entender que os factos apurados justificam, pela sua amplitude e gravidade, uma averiguação geral ao funcionamento do(s) serviço(s) sob suspeita.[6]
O CEMA dever-se-ia resguardar, ao contrário do que tem acontecido pois, quando houver, e se houver, responsável/responsáveis ele será, provavelmente, o juiz do eventual recurso hierárquico interpor pelos eventuais punidos[7] e, como tal, não se deveria pronunciar sobre as causas do acontecido senão no momento de julgar, remetendo, agora e apenas, para as conclusões do processo de averiguações, quando as houver.
É certo que, como afirmou o CEMA, a Marinha não mente. Mas talvez tenha havido alguém que tenha faltado à verdade, induzindo o chefe da Marinha a emitir afirmações menos verdadeiras, pelo que seria importante que tal fosse averiguado, e, se provado, objecto de processo disciplinar.
Doutro modo, podem prevalecer dúvidas.
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[1] Informação NRP Mondego - 3 de abril de 2023 (marinha.pt)
[4] «A única coisa que posso dizer é que a Marinha não mente» (vídeo) - Sociedade - RTP Madeira - RTP
[5] Artº 111º do Regulamento de Disciplina Militar (RDM)
[6] Artº 112º do RDM
[7] Artºs 121º a 125º do RDM