Embora o conceito de “Translocalidade” seja uma categoria emergida na pós-modernidade, o fenômeno de dispersão mundial e das complexas experiências de mutação dele decorrente se perde no tempo, uma vez que a história da humanidade é marcada por deslocamentos e interações de todas as ordens. Desta forma, os termos “Translocalidade” e “Translocal” arrastam consigo uma miríade de expressões conceituais que lhe são associadas tais como: territorialidade, transterritorialidade, multiterritorial, globalização, rizoma (Deleuze; Guattari), migrações, pluralidade étnica, etnicidade, cosmopolitismo, interculturalismo, transfronteiriça, desenraizamento, (re)apropriação cultural, etc.
O termo “Translocalidade” é um neologismo apresentado inicialmente pelo antropólogo indiano Arjun Appadurai (1996) nos anos noventa do século passado aplicado às realidades do continente africano. A ele seguiram-se o sociólogo David S. G. Goodman, o geógrafo Tim Oakes e a antropóloga Louisa Schein (2006) em relação à China, os historiadores Ulrike Freitag e Achim Von Oppen em relação à Ásia, Oriente Médio e África (2010). Na América Latina alguns pesquisadores vêm aplicando o conceito de translocalidade, em substituição ao de transterritorialidade, ao perceber que as criações ou recriações – da música japonesa ou germânica, por exemplo – no Brasil, nem sempre são decorrências da presença de imigrantes.
Evidente fica então que a conceituação foi adotada por estudiosos de várias ciências acadêmicas nas mais variadas partes do globo, no intuito de propor um cenário mais amplo e menos linear na profusão de configurações e metamorfoses de como os lugares globais, regionais, nacionais, locais e étnicos, reais, imaginados ou da memória, são concebidos e vividos pelos grupos humanos que os formam. Outro ponto enfatizado é que essas manifestações demandam novas interpretações, pois as zonas onde se localizam determinados números de sujeitos em movimento já não se ajustam mais com o habitat de operação dos mesmos, pois as modernas tecnologias de informação e viagens permitem e facilitam cada vez mais os processos de ação e de ligação com a pátria de proveniência quanto com a região de destino, tipificando assim relações de coexistência ou translocalidade.
Desta forma, “Translocalidade” despontou nas últimas décadas como renovação teórico-investigativa que propõe desconstruir dicomitizacões rígidas em favor de uma perspectiva dialógica e dinâmica com formas híbridas e sincréticas, priorizando a marca da mobilidade, dos fluxos e da fusão de fronteiras decorrentes dos fenômenos migratórios globais de hoje e que caracteriza um modo contemporâneo de se relacionar e viver o local, ilustrando as formas e manifestações de organização sócio/cultural do presente. Estes fenômenos têm como marcas a multilocalidade ou multilugar – no sentido de pertencer ao mesmo tempo a diferentes espaços geográficos/temporais – e a provisoriedade – no sentido de desejar um futuro retorno – ambas balizas fundamentais no estudo das ondas migratórias transnacionais contemporâneas. Essas perspectivas incutem uma mudança fundamental à investigação dos deslocamentos migratórios globais ocorridos no século XIX e em grande parte do século XX.
Outro ponto que se destaca em ensaístas como Kevin Robins e Salman Rushdie ao discutirem sobre se a globalização produz um efeito negativo de descaracterização naquilo que é tido como “local e tradicional” ou se positivo tornando o “local” mais plural e aberto, preferem evitar essa dicotomia dualista e optam por uma terceira via: o da “Tradução”. Esse termo do latim traducere quer dizer “fazer passar de um lado para o outro” apontando justamente para essa noção fronteiriça de irrevogável pertença a vários mundos, a várias culturas. Esses mundos e culturas são compostos por sujeitos da modernidade tardia, que não optam necessariamente por esta ou aquela origem ou identidade, mas que fazem uma ou outra valer com grande naturalidade, dependendo das diversas situações em que se encontram em um momento ou outro de suas vidas e trajetórias. A “Tradução” consistiria em uma forma de transitar nas localidades onde se vive sem se sentir desintegrado em sua identidade e tradições, pois as mesmas são, em sua própria “natureza,” translocadas.
Através desse modo de vida os mais variados grupos elegem e inventam fundindo materiais em um “processo de ‘zona de contato,’ um termo que invoca a co-presença espacial e temporal dos sujeitos anteriormente isolados por disjunturas geográficas e históricas (...) cujas trajetórias agora se cruzam” (Hall, 2003, p. 31). Esta visão está baseada no visceral arrazoado que Salman Rushdie (1991, p. 394) faz do seu polêmico romance Imaginary Homelands (traduzido para o português como “Versos Satânicos”), ao esclarecer que seu livro “celebra o hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação, que vem de novas e inesperadas combinações de seres humanos, culturas, ideias, políticas, filmes, músicas”.
No outro lado da moeda, porém, nada mais contemporâneo do que as ferozes investidas dos novos nacionalismos e o avanço de fundamentalismos de todos os tipos para reconstruir localidades “purificadas” baseadas no fechamento e em tradições muradas na busca por coesão como meio de poder. Os fenômenos de deslocamentos humanos na modernidade poderão ser compreendidos de forma mais holística quando investigados à luz de todas essas complexas e simultâneas condições das micro e macropolíticas.
Em suma, o termo translocalidade, inicialmente, se restringia aos estudos sobre os deslocamentos sociais, sobretudo em massa, de um estado-nação a outro, espaços historicamente construídos delimitando territórios politicamente dominados, em detrimento dos espaços étnicos e culturais. Assim o conceito de translocalidade soaria mais abrangente e menos hegemônico do que transnacionalismo, em desuso crescente. Abrangente, pois incluiria fenômenos interculturais, independente do contato decorrente de fluxos migratórios, mas daquele presente em regiões fronteiriças, ou, simplesmente de sentimentos de pertencimento, e/ou de identidade cultural. Estes podem brotar por livre arbítrio, seja por modismo, ideologia, ou diversas influências dos meios de comunicação. Aspectos interculturais também podem ser abordados à luz do conceito de “entre-lugar” (Bhabha, 1998) que, além do bi/multiculturalismo das fronteiras geopolíticas, se alarga para outras bordas envolvendo as categorias tradicional/moderno, ou outras dicotomias estabelecidas sempre que houver um nós/eles, centro/periferia, rural/urbano, típicas/atípicas, e outras questões de gênero ou fenótipos. Pode ser uma ferramenta de análise frutífera para estudos (etno)musicológicos que lidam com essas realidades musicais, que, raramente, escapam ao hibridismo, ou melhor, simbiose cultural, mesmo que o contato musical se inicie com comportamento de estranhamento e termine em aproximação e enraizamento.
Werner Ewald
Alice Lumi Satomi
Referências
Appadurai, Arjun. Modernity at Large: Cultural dimensions of globalizations. Minneapolis: University of Minnesota, 1996.
Bhabha, Homi K. O Local da Cultura. Tradução: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Limas Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
Freitag, Ulrike; Von Oppen, Achim. (Org.). Translocality: The Study of Globalizing Processes from a Southern perspective. Leiden: Brill, 2010.
Hall, Stuart. Pensando a Diáspora. Reflexões sobre a terra no exterior. In: Sovik, Liv. Da Diáspora. Identidade e Mediações Culturais. Tradução: Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 27-50.
Oakes, Tim; Schein, Louisa. Translocal China: an introduction. In: Oakes, Tim; Schein, Louisa. Translocal China: linkages, identities and the reimagining of space. Series Editor: David S. G. Goodman. London; New York: Routledge, 2006, p. 01-35.
Rusdhdie, Salman. Imaginary Homelands. Londres: Granta Books, 1991.
Fontes adicionais para estudo do tema
Nancy, Jean- Luc. Being singular plural. Stanford: Stanford University, 2000
Pernau, Margrit. Transnationale Geschichte. Göttingen: Vandenhoeck, 2011.
Santos, Boaventura, Sousa. A construção multicultural da igualdade e da diferença. Série Oficinas do CES. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 1999.
Veras, Maura; Villen, Patrícia. A provisoriedade definitiva como ótica analítica do trabalho e da moradia para imigrantes. In: Dias, Gustavo; Bógus, Lucia; Pereira, José Carlos Alves; Baptista, Dulce (org.). A contemporaneidade do pensamento de Abdelmalek Sayad. São Paulo: Educ, 2020.
Verne, J. Living translocality: space, culture and economy in contemporary Swahili trade. Stuttgart: Steiner, 2012.
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