Em sentido econômico, o verbo “apreciar” significa estipular o preço de algo. Em sentido ampliado, refere a atos de atribuir valor, mesmo além do econômico, e mostrar apreço, com base na atenção e sensibilidade diante de determinado objeto ou experiência. Apreciar uma paisagem ou a companhia de alguém, por exemplo, equivale a valorizar e estimar esses momentos. Também interessa notar como várias das palavras acima se relacionam à ideia geral de “valor”; e a elas associam-se outras, como: estimativa, avaliação, valoração e valores (no plural).
Compreender o valor de determinada música — para uma pessoa, um grupo, uma sociedade — envolve distinguir certos valores estéticos, afetivos e éticos que são ativados na experiência com essa música, e também distinguir componentes técnicos e históricos que constituem tanto o “objeto” quanto o relacionamento, nosso e de outras pessoas, com ele.
Em conexão com o ensino de música, a palavra “apreciação” ganhou destaque no século XX, e embora não seja de uso coloquial, se mantém com relevância em documentos de política educacional, associada à formação crítica e à fruição, em música e nas artes em geral (Brasil, 1998, 2017). Resumidamente, indica os atos de ouvir e contemplar gravações, apresentações e outros processos em música, fazendo-se comentários e análise em cada experiência.
A atividade de “apreciação musical” tem passado por diferentes usos e funções, em práticas educativas. Quando analisamos essas práticas pelo ângulo da didática, é possível distinguir duas intenções básicas, combinadas variadamente: a de fomentar a observação de músicas e a identificação de elementos e relações presentes em sua composição ou performance; e a de orientar para o julgamento técnico e estético, tipicamente seguindo conceitos presentes na formação do/a educador/a. E como os processos de educação não ocorrem apenas nas instituições de ensino, devemos considerar também que há momentos de apreciação noutras situações de aprendizagem, por exemplo com mediação da internet, na interação com pares e na audição solitária.
1. Seleção e ampliação dos objetos
Em seu “Programa do Ensino de Músicas”, escrito em 1934, o músico Heitor Villa-Lobos reporta “um plano de classificação de discos, seleção e ordem de aplicação”, visando à “educação do bom gosto artístico, feita por meio do confronto entre a música popular e a elevada” (Villa-Lobos, 1940, Prefácio). Entre os objetivos do compositor, estava o da “formação de plateias”, uma ideia recorrente em planos educativos, que de modo mais ou menos explícito se vinculam a uma prática musical específica. Décadas depois, encontramos a ação pedagógica das “Oficinas de música” em universidades brasileiras (Fernandes, 1997) e, em outros países, as ações de R. Murray Schafer, John Paynter e George Self, todas elas com o sentido de educar a escuta para as inovações de materiais sonoros e de composição, ao longo do séc. XX, especialmente em situações de “concerto”.
A seleção prévia de materiais, o direcionamento estilístico e a hierarquização entre músicas, gostos e setores da cultura, no entanto, não são as únicas maneiras de organizar a atividade de apreciação. No âmbito das aulas particulares e cursos livres de música, e também no trabalho de muitos docentes no Ensino Básico, os interesses e o gosto musical “do aluno” têm sido tomados como ponto de partida para um processo didático. Pratica-se assim uma espécie do “diálogo entre culturas”, que o filósofo da educação Paulo Freire propôs originalmente para a alfabetização (Freire, 1970).
Em tendências educativas recentes, temos argumentos em prol de se reconhecer a experiência da pluralidade de músicas e práticas culturais em território brasileiro. De acordo com parâmetros atuais de etnomusicologia, a presença dessas músicas no trabalho curricular deve ir além de uma curiosidade pelo “exótico”, e será mais adequada na medida em que seus mestres(as) e praticantes estiverem mais presentes e atuantes na comunicação dos respectivos saberes (Tugny, 2014; Travassos, 2012; Lucas, 2021). Será igualmente importante atentar para os valores próprios de cada construção sonora e sociocultural, em sua comunidade, e do lugar que estes valores, técnicas e sentidos ocupam nas relações sociais, mais amplamente.
Também os parâmetros nacionais para o ensino de música na Educação Básica já propuseram o contato direto com produtores em diferentes modalidades de atuação (Brasil, 1998). Nesta espécie de apreciação dos produtos, mas também das formas de trabalho musical — entre instrumentistas, técnicos de estúdio ou DJs, por exemplo —, podem-se observar os meios, as técnicas específicas e os valores estéticos em operação, assim como diferentes modos de organizar determinadas produções.
2. Modalidades de apreciação
Dentre os vídeos dedicados a assuntos de música, na internet, há uma categoria conhecida como “reactions/reacts” (reações), em que se apresenta uma espécie de performance da escuta: enquanto ouvimos a música, estamos vendo e ouvindo também reações emotivas, gestos corporais, comentário e avaliações de quem produziu o vídeo — vários estímulos ocorrendo numa conexão virtual entre atos de escuta.
Há diferenças entre esse tipo de situação e o que tradicionalmente acontece numa sala de aula — em diferentes níveis do ensino — quando se propõe ouvir e apreciar uma música. A principal está nessa “performance”, que acaba por dirigir mais ativamente a atenção, as reações e os julgamentos de quem ouve, ao passo que, na experiência educacional, predomina a audição em silêncio e quietude de movimentos, reproduzindo em parte o comportamento musical de plateias numa “sala de concerto”. Também noutras situações em que se enquadram atos convencionados como artísticos, fazer silêncio é atitude que induz à contemplação desses momentos, que aprendemos a destacar do fluxo de experiências cotidianas. No modelo C(L)A(S)P, que organiza atividades para o ensino de música, o educador Keith Swanwick (1979) propõe a audição de modo atento e silencioso (simbolizada pela inicial A, de audition) como uma das três atividades centrais — ao lado de composição e de performance — para ocasionar experiências em que estudantes formam “conhecimento direto” de música, em variados “encontros” com esse tipo de discurso humano (Swanwick, 1979, 2003).
Já por essas duas formas contrastantes — de expressão ativa ou quietude durante a escuta —, reconhecemos que a audição de música acontece de modos diversos, conforme certas práticas se constituem em sociedades e situações específicas. As apresentações de música clássica Hindustani, do norte da Índia, são acompanhadas de um repertório de gestos e expressões verbais com que os membros da audiência se manifestam durante a performance (Nair, 2021). Plateias de jazz costumam aplaudir cada solista ao final de um improviso, enquanto as plateias de rock, pop ou sertanejo participam sonoramente de um show, ao reconhecer uma introdução ou cantar um refrão; e quando essa participação fica registrada nas gravações “ao vivo”, passa a integrar a experiência de uma audição posterior — por exemplo, a de alguém que escuta em silêncio a gravação. Esses são alguns exemplos da variedade do “comportamento musical” (Merriam, 1964), que se podem combinar no ato de escuta.
Assim notamos, como parte da atividade de apreciação musical, o potencial de observar, analisar e compreender as próprias maneiras de ouvir música — nos usos de pessoas, individualmente, e nas convenções culturais que se formam e se aprendem em meio às relações sociais. E, nas situações de ensino formal, entre docente e estudantes, pode-se perguntar e discutir o que essas diferentes maneiras significam na relação com repertórios e situações de performance, e quais os possíveis efeitos de uma maneira ou de outra para a aprendizagem. Nessa chave, o exercício da apreciação deixa de ter como finalidade a transmissão de determinados padrões de gosto, e passa a ser mais “polifônico”, tomando-se diferentes discursos musicais e metamusicais — incluindo as reflexões de estudantes — como matéria-prima para análise e contextualização.
Por combinação entre pensamentos de tom estético e ético, pode-se associar o fundamento educativo do “respeito à música como discurso” (Swanwick, 2003, cap. 3) ao que diz Emmanuel Lévinas sobre a relevância do encontro com “a face do Outro” — metáfora para cada relacionamento com a alteridade —, que segundo o filósofo seria a instância central do conhecimento humanista (Lévinas, 2004). Por esta combinação de ideias, considerar o discurso musical como representação ou performance de identidades e alteridades — em nível de pessoa, grupo, comunidade — motivaria uma atitude investigativa, em estudos e pesquisas, a fim de que se revelem, entre os aportes do conhecimento, determinados valores e significados. Estes estariam presentes, mais ou menos explicitamente, nas diferentes construções sonoras — incluindo as que combinam música e outras práticas de expressão.
Por outras abordagens teóricas, mais ligadas à sociologia e ao materialismo histórico (p. ex. Latour, 2005; Harnecker, 1971), o estudo das relações de produção — incluindo o papel que os recursos materiais desempenham em cada prática musical — também faria parte do ato de apreciação, propiciando entendimentos econômicos, políticos e éticos sobre a realidade social e histórica dos acontecimentos musicais. Os instrumentos e outras tecnologias, com os respectivos saberes em sua utilização; os sistemas de registro e veiculação de música; as condições que viabilizam ou dificultam determinada forma de trabalho musical (v. Elias, 1995) — são alguns dos elementos que fazem parte deste exame e o interligam com outros estudos no Ensino Básico e com diversas disciplinas de um currículo universitário em Música.
Contemporaneamente, contando-se com parâmetros de pluralidade cultural e democrática para dialogar sobre conceitos, valores, afetos, técnicas e agências — presentes em cada ato musical —, a atividade de apreciação aparece como um eixo para se articular o trabalho educativo em música com pesquisas empíricas, saberes da tradição oral, conhecimento científico e indagação filosófica.
José Alberto Salgado
Referências
Brasil, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino de Arte, 1998.
Brasil, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular, 2017.
Cunha, Elisa Silva e. A avaliação da apreciação musical. In: Hentschke, L., Del Ben, L.. Avaliação em música: reflexões e práticas. São Paulo: Moderna, 2003.
Elias, Norbert. Mozart — sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Fernandes, José Nunes. Oficinas de Música no Brasil – história e metodologia. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias. 1997.
Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970.
Harnecker, Marta, Conceitos elementais do materialismo histórico. Ed. Cortez e Morais, 1971.
Latour, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford ; New York: Oxford University Press, 2005.
Lévinas, Emmanuel. Entre nós — Ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
Lucas, Glaura. O Encontro de Saberes e as práticas performáticas afrodiaspóricas nas universidades brasileiras. Cadernos de Inclusão, v. 17, Brasília: INCTI/UnB/CNPq, 2021.
Merriam, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press, 1964.
Nair, Shruti Shashikumar. Beyond Listening: A study on the audience’s motives for attending live Hindustani classical concerts. 2021. (M.A. thesis, Department of Music). University of Alberta, Canada.
Swanwick, Keith. Ensinando música musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003.
Swanwick, Keith. A Basis for Music Education. London: Routledge, 1979.
Travassos, Elizabeth. “Diversidade musical e desigualdade social”. In: Jordão, Gisele et al. (org.) A Música na Escola. São Paulo: Allucci & Associados Comunicações, 2012.
Tugny, Rosângela Pereira de. A educação musical nas escolas regulares e os mestres das culturas tradicionais negras e indígenas. Música e Cultura, n.9, 2014.
Villa-Lobos, Heitor. Prefácio e Introdução. In: Solfejos – originais e sobre temas de cantigas populares, para ensino de canto orfeônico. 1° volume. São Paulo: Irmãos Vitale, 1940.