O conceito de Música Comunitária é aberto e plural, sem um consenso em sua definição. Apesar de sua prática ser tão antiga quanto a vida em sociedade, tratamos de seu uso no campo científico e como abordagem pedagógico-musical combinada à ação sócio-educativa. No âmbito acadêmico institucional, a Comissão de Ações Musicais Comunitárias (Community Music Activity - CMA) é uma das oito comissões temáticas da Sociedade Internacional para Educação Musical (International Society for Music Education - ISME). Fundada em 1982, a CMA teve sua origem a partir da "Comissão de Educação de Amadores" que foi alterada, em 1976, para "Comissão de Ações Extra-Escolares". Percebe-se, a partir deste breve histórico da CMA, os contornos com que a área foi se estabelecendo: o fazer musical sem finalidade profissionalizante e a educação musical não-escolar. Das produções do campo científico, destacamos o International Journal of Community Music (IJCM), os congressos da International Society for Music Education-Community Music Activity Comission (ISME-CMA) e as ações do Social Impact of Music Making (SIMM).
Ao analisarmos apenas a junção das palavras “música” e “comunitária”, poderíamos aparentar redundância: a música – ou melhor, a “prática musical”, “fazer musical” ou “musicar” como propõe Small (1998) –, está presente em todas as sociedades e é fruto da vida em comunidade. O fazer musical é essencialmente comunitário, já que a cultura se exerce em sociedade.
Houve, entretanto, um estreitamento do conceito de música, levando à compreensão de que apenas quem toca um instrumento musical, canta, compõe ou rege está fazendo música. Ou ainda mais estreito: excluindo gêneros, ritmos e diferentes organizações do material sonoro-musical do que seria música. O fazer musical se distancia da comunidade, se tornando uma atividade de alguns, que sabem fazer, para alguns outros, que não sabem.
Tal uso está representado em dicionários de língua portuguesa (Houaiss, Michaelis, Dicio e Priberam), quando definem a música como a organização de sons de forma “harmoniosa”, “melodiosa” ou “agradável”, ou “que contenham melodia/harmonia/ritmo”, utilizando termos que exigem mecanismos de validação e valoração. Por não estarem contextualizados, ou seja, colocados na perspectiva da cultura que a produz, parecem universais e mais importantes, fortalecendo tal ideia do fazer musical distanciado da comunidade (sobre hierarquização entre culturas e seus saberes, ver Colonialismo, Colonialidade). Desta forma, o uso do termo “música”, muitas vezes, está situado a partir de culturas específicas, com foco no produto sonoro-musical (objeto) e não nas pessoas e no fazer musical envolvido. Ao tratar de “música comunitária”, é relevante retornar à abrangência da “música”.
A definição de comunidade é complexa. Higgins (2018) apresenta diversas perspectivas etimológicas de termos latinos, como por exemplo: communio, significando espaço exclusivo de partilha protegido do exterior (Kant, 1998); Communis (com+munis), significando comum e defesa, e communes (com+munnus) como deveres ou funções comuns, enfatizando o fazer ao outro (Corlett, 1995); e communitas, a expressão latina para pertencimento (Turner, 1969). Para o autor, a definição de comunidade, para música comunitária, trata da hospitalidade (hospitality): uma ação ética direcionada à relação com o outro. Higgins ressalta o caráter acolhedor que as práticas musicais comunitárias assumem.
O conceito Música Comunitária se aproxima de termos como música e transformação/justiça/ação/impacto social, arte comunitária/participativa e arte popular. Os termos não são sinônimos, porém podem ressaltar aspectos diferentes de práticas parecidas. Enquanto aproximações, os termos citados compreendem uma dimensão política da ação, vinculada à busca pela superação das opressões, desigualdades e violências por meio de prática artística/musical.
Os programas, projetos e ações em música comunitária geralmente buscam promover o acesso à educação musical institucionalizada e a valorizar a comunidade em que se insere. A música comunitária pode ser uma ação no campo da educação musical que assume a centralidade na comunidade em que está inserida.
A abertura e pluralidade do conceito não são compreendidos como falha, mas como potência, conseguindo abranger a diversidade e complexidade de suas ações. Ações de música comunitária são intervenções intencionais com líderes musicais que orientam experiências de prática musical em grupo (Higgins, 2010). Tal autor ressalta o caráter participativo, a relação com o contexto, as oportunidades igualitárias e a diversidade: “Os músicos que atuam nesse campo procuram criar experiências práticas musicais relevantes e acessíveis para os participantes que escolhem estar no grupo” (Higgins, 2010, p. 9).
Higgins (2012) chega a essas definições partindo de um histórico na perspectiva britânica, afirmando que as artes comunitárias surgem após a segunda guerra mundial, junto à necessidade de reconstrução das comunidades e seu senso de pertencimento. Visando o desenvolvimento social e econômico, a educação comunitária passa a incluir atividades culturais relacionadas com ideais políticos (contracultura, igualdade racial, movimento feminista, movimento gay e lésbico, contra guerra e armamentos). Nesse contexto, as artes comunitárias tiveram como foco oferecer ferramentas necessárias para que as comunidades participantes conduzissem seus próprios projetos culturais. A partir daí, a liderança e orientação de grupos de música comunitária emerge enquanto profissão, presente até os dias de hoje. Vale salientar a presença comum de espaços públicos onde membros de uma comunidade se reúnem para oferecer atividades artísticas, esportivas, de lazer e espaços de convivência, chamados centros comunitários. Algumas correlações podem ser estabelecidas com o contexto brasileiro através das “casas de cultura”, bibliotecas públicas, equipamentos públicos (como Centros Educacionais Unificados-SP) e privados (unidades do Serviço Social do Comércio - SESC e Serviço Social da Indústria - SESI), ou ainda associações e centros de ação social relacionados a instituições religiosas.
As ações em música comunitária estão presentes em múltiplos contextos. As pesquisas da CMA relacionadas ao contexto latinoamericano dos últimos anos (ISME, 2014, 2016, 2018) tratam de experiências em orquestras e outros grupos com fins sócio-pedagógicos, organizações da sociedade civil (projetos sociais e organizações não-governamentais), espaços de saúde pública, culturas populares, projetos musicais no contraturno escolar e atividades de contexto universitário (estágio curricular em espaços não-escolares, programas de formação de professores e extensão universitária), tais como: Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia - Neojiba (Brasil-BA), Projeto de Ação Social pela Música (Brasil-RJ), Projeto Guri (Brasil-SP), La Red de Escuela de Musica (Colombia), Orquesta y Tambores de Siloe (Colombia-Santiago de Cali), Fundación Nacional Batuta (Colombia), oficinas de Capoeira angola do Mestre Cobra Mansa, Nação do Maracatu Porto Rico, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Brasil) e programa de televisão Hip Hop Sul. Dado o caráter participativo, as abordagens mais utilizadas são a prática musical coletiva, muitas vezes aliada ao ensino coletivo de instrumento musical, bem como as próprias práticas das culturas populares.
Para ilustrar o conceito, apresento a Orquestra de Metais Lyra Tatuí (Lyra Tatuí) e a Orquestra Experimental da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A Lyra Tatuí foi uma banda marcial formada por metais e percussão (Soares, 2018). Foi criada em 2002, por Adalto Soares e Sílvia Helena Zambonini Soares na cidade de Tatuí, interior do Estado de São Paulo, e encerrou suas atividades em 2015. O ensino coletivo de instrumentos de metais e percussão se iniciou com alunos de uma escola pública estadual, da periferia da cidade, atendendo moradores locais e de bairros rurais. Ao longo de sua história, o grupo se destacou pela qualidade das performances, atestadas pelos prêmios em concursos de bandas bem como pela projeção nacional e internacional. Ressignificando o caráter marcial, coreografias eram criadas especialmente para esse grupo para apresentações na rua e no teatro.
A Lyra Tatuí mesclava ação social e a formação artística, onde alguns se interessavam em profissionalizar e outros em realizar a atividade como lazer. O aprendizado coletivo musical em uma Banda Marcial promovia a democratização do acesso ao fazer musical, o incentivo para o estudo da música, a continuidade da manifestação artística, a troca de saberes, a transmissão de valores socioculturais e a “formação de amizades saudáveis, calcadas pelas experiências de vidas compartilhadas em um bem comum” (Soares, 2018). A qualidade técnico-musical não era tratada como oposta à qualidade das relações humanas, mas como potencializador. Uma ação em educação musical, quando está fundamentada no exercício do respeito, da amorosidade, da busca pela superação das opressões, desigualdades e violências, e que preza pela qualidade do que se faz, pela rigorosidade técnico-instrumental, sonoro-musical e artística, pode potencializar ação social pretendida (Arruda, 2016).
A Orquestra Experimental da UFSCar é uma orquestra comunitária, aberta a pessoas de diferentes idades e níveis técnico-musicais, que promove experimentações na instrumentação (incluindo xilofones, flautas doce, saxofone, teclado e baixo elétrico, por exemplo) e no repertório. Esse projeto de extensão universitária foi criado em 1991, a partir de um projeto de musicalização infantil iniciado em 1989, ambos idealizados pela professora Ilza Zenker Leme Joly. Esses projetos se desdobraram, em 2004, na criação do curso de Licenciatura em Música (Habilitação em Educação Musical) da UFSCar, que a tomou como parte das atividades curriculares do curso, contribuindo para integração entre Extensão, Ensino e Pesquisa. O grupo realizava dois ensaios gerais e três ou quatro ensaios de naipes por semana. Chegou a contar com cerca de 95 músicos, a maioria amadores, com idades entre 10 e 60 anos e a realizar aproximadamente 30 concertos anuais (Joly; Joly, 2014).
A prática musical coletiva da Orquestra Experimental da UFSCar envolve ensaios, apresentações, viagens e festas, o caráter intergeracional e integrador de pessoas com diferentes níveis técnico-musicais para o fazer coletivo, favorecendo o diálogo (Freire, 2014) entre seus integrantes, gerando aprendizagens pessoais e sociais relevantes.
A partir de tais ilustrações, é possível perceber que a música comunitária pode ser definida mais pelo “como” e “porque”, do que pelo “o que” se faz. Os meios e as razões das ações em música comunitária costumam envolver a participação ativa no fazer musical, acolhimento, democratização do acesso, ação político-sócio-educativa como parte do objetivo, foco na comunidade, convivência e a educação como ato de amor e respeito à vida e ao mundo.
Murilo Ferreira Velho de Arruda
Referências
Arruda, Murilo F. V. Prática musical coletiva na Orquestra de Metais Lyra Tatuí: contribuições para o desenvolvimento humano. Dissertação (Mestrado em Educação), Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016.
Corlett, William. Community without unity: A politics of Derridian extravagance. Durham: Duke University Press, 1995.
Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. 57ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
Higgins, Lee. Community music: in theory and in practice. New York: Oxford University Press, 2012.
Higgins, Lee. Representação de prática: música na comunidade e pesquisa baseada nas artes. Revista da Associação Brasileira de Educação Musical, Porto Alegre-RS, v. 23, p. 7-14, 2010.
Higgins, Lee. The community within community music. In: McPherson, Gary E.; Welch, Graham F. (Eds.). Special needs, community music and adult learning - An Oxford Handbook of Music Education v. 4. New York: Oxford University Press, 2018.
ISME Community Music Activity Commission. In: International Seminar of the ISME Commission on Community Music Activity, 16, 2018, Tbilisi,. Proceedings […]. Tbilisi: International Society for Music Education, 2018.
ISME Community Music Activity Commission. In: International Seminar of the ISME Commission on Community Music Activity: Innovation and Change in Community Music. Mary L. Cohen (Eds.), 15, 2016, Edinburgh, Proceedings […]. Edinburgh: International Society for Music Education, 2016.
ISME Community Music Activity Commission. In: International Seminar of the ISME Commission on Community Music Activity: Listening to the World - Experiencing and Connecting the Knowledge from Community Music, 14, 2014, Salvador. Proceedings […]. Salvador: International Society for Music Education. 2014.
Joly, Maria Carolina Leme; Joly, Ilza Zenker Leme. Práticas musicais coletivas: um olhar para a convivência em uma orquestra comunitária. Revista da Associação Brasileira de Educação Musical, [S. l.], v. 19, n. 26, 2014.
Kant, Immanuel. Critique of pure reason. Translated by P. Guyer & A. W. Wood. Cambridge: Cambridge University Press. 1998.
Small, Christopher. Musicking: the meanings of performing and listening. Middletown: Wesleyan University Press, 1998.
Soares, Adalto. Orquestra de Metais Lyra Tatuí: a trajetória de uma prática musical de excelência e a incorporação de valores culturais e sociais. Tese (Doutorado em Música) - Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
Turner, Victor W. The ritual process: Structure and anti-structure. New York: Penguin Books, 1969.
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