O século XXI vem sendo marcado por drásticas mudanças climáticas, ambientais, tecnológicas, sociais, culturais e comportamentais, às quais o homem tem encontrado dificuldade de se adaptar. Mas em que medida o homem deve ou consegue se adaptar — ou procurar meios para mudar essa realidade? É possível encontrar meios para minimizar ou erradicar as guerras, as desigualdades econômicas, sociais, o racismo, o machismo, os preconceitos religiosos, a dissolução dos valores humanistas, a quase anomia trazida pelo uso indiscriminado e acrítico da tecnologia — incluindo a inteligência artificial? Pais e escolas estão preparados para trabalhar dentro desse quadro? Será utópico pensar que o processo educativo, iniciado após o nascimento, e o pensamento crítico, desenvolvido e exercido ao longo de toda a vida do indivíduo, poderiam amenizar o quadro? Essa é uma tarefa cuja responsabilidade cabe aos pais, aos profissionais da educação, da saúde, da comunicação e da política.
Diante desse quadro, qual o significado e limites da responsabilidade que nos cabe enquanto educadores, professores de música e pesquisadores? O que é responsabilidade — um conceito ético; uma forma de ser; um traço de caráter? Existe responsabilidade sem liberdade? Quais conceitos filosóficos e psicológicos procuram explicá-la?
Conceitos em panorama histórico
Desde o tempo dos gregos, três diferentes correntes – livre arbítrio, determinismo, indeterminismo – buscam explicar a natureza do impulso que as funda e movimenta, e suas relações com a ação responsável.
Segundo o determinismo, todos os fatos e ações que ocorrem na vida humana, na natureza e no universo, dependem, são determinados, por uma longa, ininterrupta e regressiva cadeia de causas anteriores imutáveis e interligadas. Para Robert Kane (1996, p.7), somos sempre determinados a agir por motivos e desejos mais fortes, sejam eles inatos (determinismo biológico), ou condicionados por fatores externos, tais como a educação e o ambiente social (determinismo social), isto é, a pessoa seria então destituída da liberdade de decidir e de influir nos acontecimentos em que toma parte. Freud (1856-1939) e a psicanálise enfatizam que muitas das causas psicológicas determinantes de nossas escolhas e ações nos são desconhecidas porque inconscientes (determinismo psicológico), podendo-se, pois, concluir como ilusória a ideia de sermos livres e responsáveis. A verdade do determinismo parece implicar que nossas ações não dependem conscientemente de nós, já que são consequências inevitáveis de fatos e eventos vividos, sobre os quais não temos controle.
Entre os filósofos que defenderam o determinismo incluem-se: o grego Demócrito (cerca de 460-380 a.C.), contemporâneo de Sócrates, conhecido por sua teoria atomista da matéria, para quem todos os eventos seriam determinados pelo movimento dos átomos; Baruch Spinoza (1632-1677), filósofo holandês, que afirmava serem todas as coisas, na natureza, determinadas por leis naturais e acontecerem em conformidade com a estrita necessidade; e Albert Einstein, físico alemão (1879-1955), que afirmava ser o universo regido por leis naturais fixas e determinadas, e a quem é atribuída a frase “Deus não joga dados”.
As ideias de causalidade — todo evento é causado por outro que o antecede, em um processo contínuo de regressão —, inevitabilidade e universalidade são também traços implícitos do determinismo, donde a designação necessitarianismo, ao qual se contrapõe o libertarianismo, doutrina antideterminista, pela qual o homem não é desprovido da capacidade de escolha entre alternativas, e goza de liberdade absoluta para pensar e agir.
Por outra via filosófica, a do indeterminismo, o curso natural das coisas não se acha submetido a nenhuma lei, a nenhuma causalidade inteligível, seja em relação aos atos humanos ou aos fatos naturais; os acontecimentos não têm causas fixas e regulares, ou podem ter causas não-lineares — apenas acontecem, ocorrendo uma quebra da causalidade.
A respeito do livre arbítrio, o Dicionário Prático de Filosofia (Clément et al., 1999, p.233), traz o significado de “julgamento do árbitro”, “poder de escolha”. “No sentido antigo: sinônimo de liberdade; capacidade de determinar por si próprio, espontaneamente e voluntariamente”. E sobre o “sentido moderno”, aponta: “capacidade de escolher entre dois ou mais comportamentos, sem se inclinar a priori para um lado ou outro. Por outras palavras, capacidade de ser a causa primeira e absoluta dos nossos atos”. Na tradição cristã, a expulsão de Adão do Paraíso pressupõe ter ele agido segundo seu livre-arbítrio — poderia Deus tê-lo condenado, caso não tivesse tido escolha?
Para Descartes (1591-1650), além da capacidade de agir, ou não, em determinada situação, livre arbítrio significa aceitar, recusar, ou duvidar de um enunciado, de postulados impostos pela tradição ou pela Igreja, dos costumes vigentes em sua época — ou seja, significa o exercício de diferentes tipos de atos que implicam em liberdade.
Segundo Kant (1724-1804), o livre arbítrio faculta ao homem agir como ser autônomo, não havendo oposição insolúvel no conflito entre natureza e liberdade, já que dispomos da capacidade de interferir no curso natural, na medida em que podemos escolher agir segundo as normas incondicionadas da razão.
Para Robert Kane (1938-2024), livre arbítrio “é o poder dos agentes de serem os criadores (originadores) (...) e sustentadores de seus próprios fins ou propósitos” (Kane, 1996, p.4). O autor entende “free will” — vontade livre, livre arbítrio — como uma força: “agir livremente é estar desimpedido na busca de seus propósitos” (geralmente manifestos por intuições). Também considera obscura e até mesmo ininteligível a expressão ultimate creator (criador último ou final) ou prime mover (motor primário ou primeiro), na medida em que remete para a ideia de uma cadeia causal que regride continuamente em direção às fontes dos agentes, regressão que pode chegar a um fim, os ‘quereres’ (‘willings’) – escolhas, decisões ou esforços – que provocam os propósitos. Se esses ‘quereres’, por sua vez, forem causados por outra coisa, e se as cadeias explicativas puderem ser rastreadas até a hereditariedade ou ao ambiente, a Deus ou ao destino, então a decisão última não estaria nos agentes, mas nessa outra coisa. A ideia de Kane leva à associação da vontade livre – o livre arbítrio – com a dignidade humana, que na tradição religiosa cristã considera serem os homens feitos à imagem de Deus e criadores ab inicio de, no mínimo, algumas coisas no universo, cujos propósitos e fins originam-se nesses mesmos propósitos e fins.
O debate sobre determinismo teológico e livre arbítrio foi problematizado por poetas e romancistas – Milton e Dostoiévski, para citar alguns –, como também por teólogos como Lutero, Calvino, e talvez mesmo Santo Agostinho, para quem o poder, a onisciência e a providência divinas ficariam comprometidas caso seu controle final ficasse nas mãos do homem. Segundo Santo Agostinho (354-430), a vontade é uma faculdade ativa da alma pela qual o homem, no exercício de sua liberdade, projeta-se no mundo, dela decorrendo nossa dimensão ética e moral (mediante ideias de erro, reprovação, pecado/acerto, aprovação, louvor). Em Descartes, vontade e liberdade são interdependentes, e tê-las nos torna responsáveis pelas nossas decisões e ações.
Para Baruch Spinoza, vontade é a energia, o esforço para afirmar ou negar uma ideia ou ação, uma força de auto-afirmação intrínseca à própria ideia — e diferente da vontade, o desejo tem uma motivação particular e determinada. De acordo com Schopenhauer (1788-1860), a vontade é o princípio fundamental da natureza, a força cega, incontrolável, que move o mundo, e que se manifesta em toda a natureza, mas adquire características específicas nos seres humanos, cuja existência está subjugada à pressão universal da vontade. Para ele, a vontade é o Eu real do ser humano, o verdadeiro núcleo do seu ser, ele mesmo sendo da maneira que quer e querendo da maneira que é.
Entre liberdade (do livre-arbítrio) e necessidade (do determinismo) existe uma relação de dependência, expressa pelo compatibilismo ou pelo incompatibilismo. No compatibilismo, não há conflito entre determinismo e livre-arbítrio, ou seja, são considerados aspectos compatíveis que podem coexistir. Compatibilistas como Hobbes (1588-1679) e Hume (1711-1776) acreditavam que nossas ações podem ser determinadas por causas naturais e ainda sermos livres para o agir moral e para a responsabilidade. Incompatibilismo, por sua vez, significa um conflito excludente, ou seja, determinismo e livre arbítrio são logicamente incompatíveis. Para o pensamento determinista, a hereditariedade e o ambiente exercem uma coerção irresistível e todas as nossas ações são controladas por forças que nos são exteriores. Caso ações ocorram como fruto do acaso serão, então, sem determinação precedente ou sem causa final, caso em que a causalidade será rompida.
Ainda sobre a ideia de liberdade, em panorama histórico, temos que os estóicos a pensaram como independência interior concebida como o estado ideal do ser humano, que atinge a serenidade através do domínio das paixões e pela integração na natureza. Posteriormente, na filosofia de Spinoza, liberdade significa independência interior e capacidade moral de se determinar seguindo unicamente os conselhos da razão e da inteligência não orientada pela paixão. Em Kant, “designa a faculdade de instaurar uma cadeia de eventos a partir de uma causa originária, incondicionada e espontânea” (Figueiredo, 2006, p. 232). Jean-Paul Sartre, por sua vez, atribui ao homem um “livre arbítrio” absolutamente original e criador, que simultaneamente concebe como absoluta responsabilidade.
Como se pode observar ao longo do texto, livre arbítrio, vontade e liberdade relacionam-se estreitamente com responsabilidade. Para Sartre (1905-1980), responsabilidade é a “contrapartida inseparável da liberdade. Todo ato implica uma escolha; toda escolha é livre; logo, é preciso responder por todo ato, sem que se possa jamais evocar quaisquer justificativas que teriam determinado a escolha em agir deste e não de outro modo” (Figueiredo, 2006, p. 236). Sartre não só afirma que a liberdade é incondicional como estamos condenados a ser livres: “condenados porque [o homem] não se criou a si próprio; e, no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo que fizer” (Sartre, 1984, p.9); suas decisões levam em conta não apenas sua própria vida, mas o impacto sobre aqueles que o cercam, o que implica reconhecer que não existe uma moralidade preestabelecida. Ao homem, cabe, pois, criá-la através de suas ações conscientes, o que, desse modo, lhe faculta eleger uma imagem de ser humano e do mundo.
Particularmente, no difícil momento e nas circunstâncias em que ora vivemos, quase beirando a distopia, o exercício da vontade, da liberdade e da plena responsabilidade no exercício do magistério, da educação musical e da pesquisa pode e deve necessariamente contribuir para o desenvolvimento da capacidade de todos, de pensar criticamente, quer expondo nossas reflexões, quer recebendo as que nos são propostas.
Salomea Gandelman
Referências
Clément É. (et alii). Dicionário Prático de Filosofia. Portugal: Terramar, 1999.
Figueiredo, V. Seis filósofos na sala de aula: Para ler Platão, Maquiavel, Descartes, Voltaire, Kant, Sartre. Berlendis editores, 2006.
Kane, Robert. The significance of free will. New York: Oxford University Press, 1996.
Kant, Immanuel. A fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2011.
Lalande, Andre. Vocabulaire technique et critique de la philosophie.12éme édition. Presse Universitaire de France, 1976.
Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia. S. Paulo: Martins Fontes, 2000.
Sartre, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Stanford Encyclopedia of Philosophy. “Moral responsibility”. Department of Philosophy, Stanford University, 2024. https://plato.stanford.edu/entries/moral-responsibility/
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