A classificação vocal, na música erudita, é um artifício utilizado para classificar a voz cantada e tem por objetivo reunir vozes de características semelhantes numa mesma categoria. Essa categorização oferece a compositores e cantores a possibilidade de compor e/ou selecionar repertório que seja condizente com as características específicas de determinada voz.
Historicamente, a amplitude da tessitura musical aplicada à arte vocal nem sempre foi abordada tão amplamente como hoje a percebemos. A tessitura passou de melodias com poucas notas a melodias mais complexas, a partir de experimentações polifônicas e harmônicas. Inicialmente, sobreposições de vozes começaram a ser realizadas de modo horizontal, ou seja, com melodias independentes cantadas simultaneamente (polifonia) e, mais adiante, essa sobreposição passou a ser também pensada de modo vertical, ou seja usando-se algumas vozes em simultâneo, mas de modo pontual, como acordes (harmonia), formando a base para a voz que conduzia a melodia principal.
Diferentes traços de classificação vocal apareceram até século XVIII, quando surgiu a ópera, antes de chegar ao que ficou determinado no século XIX e que utilizamos até hoje. Durante o século XVIII, com a reduzida participação de mulheres em ambientes teatrais, por proibição da igreja, eram sobretudo os homens que atuavam em cena. Nesse período surgiu a prática da castração de meninos cantores. Essa prática diminuía o nível de testosterona e impedia a mudança da voz, fazendo com que os meninos mantivessem a tessitura super aguda com que os permitia fazer os papéis femininos na cena teatral. Estes cantores eram chamados castrati.
Sundberg, em seu livro Ciência da Voz, afirma que “a qualidade vocal peculiar dos cantores castrati derivava em grande parte do aspecto infantil de suas pregas vocais” (Sundberg, 2015, p. 268). Para o autor, as pregas vocais das crianças são milimetricamente menores que as dos adultos, influenciando na sonoridade. O aspecto infantil das pregas vocais dos cantores castrati, milimetricamente menores que as pregas vocais de um adulto, influenciam na sonoridade, conferindo a esses cantores uma qualidade vocal própria. E não apenas o comprimento, mas também a espessura das pregas vocais é diferente em crianças e adultos, o que justifica a diferença sonora. Além disso, também a capacidade pulmonar de um adulto e a de uma criança são diferentes (Sundberg, 2015). O tamanho dos pulmões e a sua capacidade de armazenamento de ar também atuam diretamente sobre o resultado sonoro vocal. Portanto, no que se refere aos castrati, eles tinham reunidas três qualidades interessantes para o canto: pregas vocais de uma criança, o que possibilitava o alcance de notas mais agudas, a técnica, e a capacidade pulmonar de um adulto, ambos possibilitando realizações vocais mais elaboradas. Até então, portanto, os cantores eram predominantemente do sexo biológico masculino. A partir do século XIX, as mulheres passaram a ter “autorização” para participar ativamente da performance musical, e então nesse período é que surge mais especificamente a classificação vocal como a conhecemos hoje no canto erudito.
Grosso modo, classificam-se as vozes nas categorias femininas e masculinas, ou seja, dentro de um critério binário. Para cada uma dessas duas categorias, aplicam-se as tessituras agudo, médio e grave. Para classificar uma voz, aplicam-se análises de suas características mediante alguns parâmetros vocais, com atenção mais acentuada aos parâmetros extensão, tessitura e timbre. Encontramos, dentre autores de pesquisas em fonoaudiologia e em música vocal (nomeadamente Behlau (2001). Behlau; Pontes; Moreti (2016). Rubim (2019). Miller (2019)), as definições dos diversos parâmetros vocais, dentre eles extensão, tessitura e timbre. Nessas áreas de pesquisa, encontramos também esclarecimentos sobre a diferença entre extensão e tessitura. Os investigadores, em geral, concordam que a tessitura compreende todas aquelas notas que uma pessoas consegue emitir sem esforço na voz cantada, desde a mais grave à mais aguda, enquanto a extensão abrange todos os sons que aquela voz consegue produzir, ainda que sem qualidade. Tais pesquisadores também descrevem o timbre como a identidade vocal, aquela sonoridade que nos faz identificar imediatamente quem está cantando ou falando. O timbre pode ter característica aveludada, metálica, clara ou escura. O conjunto formado pela característica do timbre mais o alcance da tessitura, são dois dos parâmetros dentre aqueles que determinarão a classificação vocal de uma pessoa (Rubim, 2019). Para além disso, será importante também observar quais as notas de maior destaque dentro da tessitura de cada pessoa. Geralmente há um grupo pequeno de três ou quatro notas que oferecem qualidade bastante acentuada, quando emitidas. É a partir dessas observações que normalmente se classifica uma voz. Como a voz não treinada pode mudar com o passar do tempo de treino técnico, nem sempre é simples classificá-la com apenas uma primeira avaliação.
Desde o século XIX, passou-se a considerar seis categorias mais específicas para a classificação vocal de cantores eruditos solistas, que, no canto coral, são também conhecidas como naipes. Da mais aguda à mais grave, são elas: Soprano, Mezzo-Soprano e Contralto, para as vozes consideradas femininas; e Tenor, Barítono e Baixo para as vozes consideradas masculinas. Vale ressaltar que, independente de serem essas classificações masculinas ou femininas, são todas tradicionalmente usadas no masculino. Portanto, mesmo as classificações femininas são ditas da seguinte forma: o soprano, o mezzosoprano, o contralto.
A partir dessas seis classificações, há ainda subclassificações para cada categoria vocal. Por exemplo, dentre as vozes de sopranos, encontram-se o soprano ligeiro, soprano lírico, soprano spinto, soprano dramático. O que vai definir cada subclassificação são as características mais específicas de cada soprano. Alguns terão facilidade para atingir notas super agudas e realizar coloraturas, por exemplo, que são passagens rápidas de uma nota a outra. Outros sopranos terão sonoridades mais densas, apresentando um centro de voz às vezes mais pesado, com menor facilidade para as notas super agudas e coloraturas. Da mesma forma que os sopranos, os demais naipes poderão receber subclassificações. Encontram-se então Tenor Ligeiro, Tenor Lírico e Tenor Dramático, Barítono Lírico e Barítono Dramático, Baixo Cantante e Baixo Profundo. Para cada uma dessas sub-categorias, haverá então um conjunto específico de características associadas à extensão, à tessitura e ao timbre.
Identidade vocal
Com base na definição de classificação vocal do século XIX, ainda hoje amplamente utilizada, as vozes são categorizadas a partir de um critério binário, com base no sexo biológico. No entanto, nem sempre o sexo biológico de alguém é aquele com o qual a pessoa se identifica. Levantam-se, então, questões de gênero que nos remetem a novas reflexões referentes às classificações vocais. O conceito de gênero refere a atributos socialmente construídos e não ao sexo biológico, este último determinado por distinções cromossômicas e anatômicas (Behlau; Dornelas; Ribeiro, 2024, Capítulo 1). Essas questões nos levam, por exemplo, à Teoria da Auto Verificação (1980), conceito da psicologia social que sugere que os indivíduos busquem alcançar consistência entre a maneira como se percebem e a maneira como os demais avaliam, reagem e respondem a eles. Este é um aspecto extremamente sensível para o indivíduo transgênero que procura adequar seu corpo e sua voz à expressão de gênero com a qual se identifica. Há que se considerar que a voz reflete, portanto, aspectos físicos, psicológicos e sociais.
As vozes cantadas de pessoas biologicamente masculinas, dentro de uma avaliação que toma a classificação dos seis naipes por referência, tendem a abranger uma tessitura que fica aproximadamente entre o dó1 e o mi3. E há ainda aqueles que conseguem realizar o falsete, alcançando notas que podem ir até aproximadamente o dó5. As vozes cantadas de pessoas biologicamente femininas, seguindo o mesmo estilo de avaliação, tendem a abranger uma tessitura que fica entre o lá2 e o mi5. Algumas alcançam poucas notas mais abaixo ou acima desse intervalo.
Investigações na área da fonoaudiologia mostram que homens trans, ou seja, pessoas que nasceram com o sexo biológico feminino mas que se reconhecem no gênero masculino, e que passam pelas aplicações de testosterona, perdem agudos e ganham graves. A testosterona altera a estrutura da laringe, que fica mais espessa. As mulheres transgênero, pessoas que nasceram com o sexo biológico masculino e se reconhecem no gênero feminino, e que se submetem a hormônios femininos, ganham agudos, mas não perdem o grave (Lopes; Lessa, 2024). Dentre as mulheres transgênero, aquelas que se submetem a hormônios femininos podem desenvolver uma tessitura mais ampla do que as demais pessoas. Surge, a partir dessa descoberta, o seguinte questionamento: se algumas vozes trans mantêm seus padrões biológicos originais e ainda ganham novos alcances, como incluí-las dentro das seis classificações tradicionais, utilizadas no canto erudito? Essa é uma pergunta ainda sem resposta. No entanto, entrevistas realizadas em 2024, na cidade do Rio de Janeiro, com pessoas transgênero, revelaram que diversas pessoas transgênero são mais a favor da ausência de classificações do que da criação de novas classificações, sob a justificativa de que qualquer classificação põe pessoas “em caixas” (Oliveira, 2024).
Há ainda a possibilidade de um homem ou mulher transgênero optar por manter sua voz dentro dos padrões de classificação conforme o sexo biológico. Esses casos possibilitam a manutenção das classificações tradicionais, utilizando-se do sistema de seis naipes. No entanto, se fisicamente essas pessoas não se identificam com o sexo biológico e se apresentam com características do sexo oposto, num grupo coral poderemos encontrar, por exemplo, uma mulher transgênero cantando com os barítonos, ou um homem transgênero cantando com os sopranos. Desse modo, torna-se importante rever a forma como os regentes dirigem-se ao grupo, evitando utilizar termos padrões como vozes femininas e vozes masculinas, ou naipes dos homens e naipes das mulheres. Ao utilizar tais termos, a pessoa estaria desconsiderando a possibilidade da existência de mulheres em naipes biologicamente masculinos e de homens em naipes biologicamente femininos. Desconsiderar a existência de algo possível, quando se trata de seres humanos, é desconsiderar a existência do próprio humano que ali está.
Futuras pesquisas deverão apontar para respostas quanto à necessidade ou não de se criar novas classificações vocais para a voz cantada erudita, de modo a melhor acolher as pessoas transgênero em grupos vocais e corais.
Identidade vocal, mais considerações
Outra questão referente à identidade vocal diz respeito à identificação de uma pessoa a partir da escuta de sua voz. Embora essa identidade esteja presente no canto erudito, esse tema parece surgir de modo mais relevante no canto não erudito, muitas vezes chamado, de forma generalizada, de canto popular. Dentro do que se chama frequentemente de canto popular, encontram-se estilos tão variados que não se pode dizer, por exemplo, que a cantora brasileira Elizeth Cardoso teria a mesma forma de canto popular que as cantoras Marina Lima, Alcione, ou Nara Leão, por exemplo. Ou ainda, que as cantoras também brasileiras Liniker, Maria Bethânia, Maria Rita, e Marisa Monte, por exemplo, teriam a mesma forma de cantar. Essas cantoras têm repertórios de estilos musicais diversos umas das outras. Cada estilo tem as suas características sonoro-vocais próprias. Portanto, no que se refere a estilos e padrões vocais, não se pode reduzir todos os cantos ditos populares a um único padrão sonoro. Dessa forma, antes de tudo, talvez seja preciso repensar o termo “canto popular” como a única forma de nos referirmos ao canto não erudito.
Dito isto, traz-se aqui também um questionamento sobre formas de classificação vocal e a relevância da singularidade no canto popular. No canto popular, no que se refere a classificação vocal, é mais frequente a utilização dos termos voz aguda, voz média e voz grave, do que os termos soprano, mezzo-soprano, contralto, tenor, barítono e baixo, como utilizados no canto erudito. As pessoas consideradas cantoras populares, com certa frequência são autodidatas, e partem daquilo que já têm naturalmente em termos de potencial sonoro (Pacheco; Baê, 2020). Diversas dessas pessoas não estão especialmente interessadas em padronizar as suas vozes e, muito menos, em encaixá-las em classificações. Sobre os cantores populares, alguns discordam da sistematização de uma técnica, pois o canto popular sempre teve uma natureza intuitiva, sendo mais relevante a singularidade vocal de cada intérprete do que uma uniformização sonora (Nascimento, 2016).
Além disso, o canto popular permite livre alteração de tonalidades das canções (Leite, 2009), conforme aquilo que seja mais adequado a cada voz, o que elimina a necessidade de se buscar canções para determinadas classificações vocais. O mais relevante no canto popular é a forma como cada pessoa irá realizar determinada peça, tirando proveito de suas qualidades vocais naturalmente existentes. A identidade vocal, portanto, parece tomar lugar de maior importância no canto popular do que a classificação vocal.
Deborah Moraes Gonçalves de Oliveira
Referências
Barbara, Marisa; Behlau, Mara. Identidade Social e a Pessoa Trans: explorando a neurociência na diversidade de gênero. In: Dornelas, R.; Ribeiro,V.; Behlau, M. (orgs.). Identidade Comunicativa: pessoas trans, travestis e não binárias. São Paulo: Thieme Revinter, 2024.
Behlau, Mara (org.). Voz: O Livro do Especialista. Vol I. São Paulo: Thieme Revinter, 2001.
Behlau, M.; Pontes, P.; Moreti, F. Higiene Vocal: Cuidando da Voz. São Paulo: Thieme Revinter, 2016.
Behlau, M.; Dornelas, R.; Ribeiro, V. Identidade de Gênero e Comunicação. In: Dornelas, R.; Ribeiro,V.; Behlau, M. (orgs.). Identidade Comunicativa: pessoas trans, travestis e não binárias. São Paulo: Thieme Revinter, 2024.
Dornelas, R.; Ribeiro,V.; Behlau, M. (orgs.) Identidade Comunicativa: pessoas trans, travestis e não binárias. São Paulo: Thieme Revinter, 2024.
Leite, Marcos. Canto Popular Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 2009.
Lopes, João; Lessa, Jordan. Estratégias Terapêuticas na Clínica Vocal com Homens Trans. In: Dornelas, R.; Ribeiro,V.; Behlau, M. (orgs.). Identidade Comunicativa: pessoas trans, travestis e não binárias. São Paulo: Thieme Revinter, 2024.
Miller, Richard. A Estrutura do Canto. Rio de Janeiro: É Realizações, 2019.
Nascimento, Carlos Eduardo. O Cantor Crossover: um estudo sobre a versatilidade vocal e algumas diferenças básicas entre o canto erudito e popular. (Dissertação, Mestrado). Universidade Estadual Paulista, 2016.
Oliveira, D. M. G. Relato de Experiência: Aplicação da Fonoaudiologia em Vozes Trans. Teresina: Universidade Federal do Piauí, 2024. Inédito.
Pacheco, Claudia; Baê, Tutti. Canto - Equilíbrio entre corpo e som: Princípios da fisiologia vocal. São Paulo: Irmãos Vitale, 2020.
Rubim, Mirna. Voz. Corpo. Equilíbrio. São Paulo: Thieme Revinter, 2019.
Sundberg, Joahn. Ciência da Voz. São Paulo: Ed. USP, 2015.