1. Instrumento
Considera-se instrumento “qualquer objeto, aparelho ou utensílio que serve para executar uma obra ou levar a efeito uma operação mecânica em qualquer arte, ciência, ofício ou mister” (Aulete, 1986). Nesta acepção geral, é um objeto que auxilia ou fomenta a realização de uma ação. Em música, instrumentos são dispositivos que produzem sons e operam como meios para a expressão de ideias musicais.
Ao apontar os mitos sobre origem da música centrados no símbolo sacrificial, Wisnik (1989) diz que os instrumentos tornam visível esse sacrifício: “as flautas são feitas de ossos, as cordas de intestinos, tambores são feitos de pele, as trompas e as cornetas de chifres”. Na confecção de instrumentos de madeira, esta é obtida, geralmente, pela derrubada de árvores ou pelo reaproveitamento. Alguns desses materiais são extraídos com o cumprimento de rituais relacionados a fatores como o período do ano ou o ciclo lunar — dois exemplos estão na construção dos tambores utilizados no Tambor de Crioula (Ferretti, 2002) e da viola de cocho, no Cururu matogrossense.
Com o desenvolvimento do uso de ligas metálicas, surgem instrumentos feitos com esses materiais, e desde o início do século XX desenvolvem-se também instrumentos elétricos e eletrônicos — um dos primeiros a ser patenteado foi o Theremin, por seu inventor, o físico russo Lev S. Termen, em 1928. Avanços tecnológicos e científicos na música são percebidos com o advento da gravação sonora, dos meios de difusão, dos diferentes suportes fonográficos e da tecnologia de síntese e processamento digital do som. Andrés e Borém notam que a evolução dos instrumentos elétricos e eletrônicos “tem acompanhado o desenvolvimento acelerado da informática” (Andrés; Borém, 2011, p. 170).
A manufatura de instrumentos musicais pode ser artesanal ou industrial. Em ambas, pode haver produção em maior escala ou mais limitada, em caráter especialmente artesanal. Essas variações geram diferenças em aspectos relacionados à qualidade sonora, à estética, ao custo do instrumento, entre outros. A palavra luthier, termo francês que deriva de luth (alaúde), originalmente designava a pessoa que construía instrumentos de cordas, com caixa de ressonância (Brito; Brito, 2009); gradualmente, o termo passou a qualificar o artesão que constrói, repara e modifica instrumentos musicais, de qualquer natureza.
Os instrumentos musicais costumam ser agrupados em famílias e naipes, que dizem respeito às características da produção sonora de cada grupo. As bandas civis, em municípios de todas as regiões do Brasil, e as fanfarras, em diversas escolas do Ensino Básico, se organizam à base de sopros e percussão, enquanto uma formação como a orquestra sinfônica é comumente pensada em três grandes grupos — de cordas, sopros (metais e madeiras) e percussão. Com perspectiva universalista, e procurando dar conta de instrumentos e práticas musicais em lugares e tempos distintos, a organologia desenvolveu-se inicialmente como ciência que estuda e propõe classificações para os instrumentos, do ponto de vista acústico, mecânico e histórico. Para o exame mais localizado em sociedades e práticas específicas, os instrumentos aparecem como objetos de estudo relevantes em musicologia e etnomusicologia. Entende-se que, por suas particularidades de sonoridade e registro, suas possibilidades e limitações de articulação e volume — entre outros fatores relacionados aos materiais e técnicas presentes em sua construção e uso —, cada instrumento musical participa na caracterização do tipo (ou tipos) de música em que é empregado.
De acordo com produções de teoria social, podemos compreender o papel dos instrumentos como “meios de trabalho” — como no materialismo histórico (v. Harnecker, 1971) —, meios com que o/a musicista opera sobre a matéria-prima (sons), a fim de produzir música. Uma aplicação da teoria ator-rede (Latour, 2005) ao estudo de práticas musicais também faz reconhecer nos instrumentos o papel de agenciar e tornar possível um acontecimento musical: qualquer defeito, dano físico ou ausência pode descaracterizar, prejudicar ou mesmo impedir a realização daquele evento — concepção que propõe uma rede de interdependência entre agentes “humanos” e “não-humanos” em qualquer ramo de produção.
Quanto à variedade de culturas musicais, vemos — ainda mais nitidamente em setores de atividade profissional — que a transmissão de saberes e valores técnicos e estéticos, assim como a ideia da “construção de uma sonoridade própria” por cada instrumentista, se organizam historicamente, diferenciando os usos de um mesmo instrumento em “escolas” e “estilos” distintos (Liebman, 1989. Salgado, 2005). Técnicas de construção, entre o artesanal e o industrial, também se diferenciam conforme os usos mais tradicionais ou mais afeitos à inovação tecnológica, e conforme os contextos de prática com determinado instrumento (Salgado, 2023). É possível analisar ainda, inclusive como objeto de pesquisa, aspectos de valoração econômica e de hierarquização social entre instrumentos e entre instrumentistas (v. Lehmann, 1998. Bates, 2012).
2. Instrumentista
O termo instrumentista refere “à pessoa que toca um instrumento. É dito especialmente em oposição aos cantores e para distinguir, em uma performance de conjunto, os membros do coro dos membros da orquestra” (Brenet, 1981). Designa assim o papel de quem toca um instrumento e se utiliza dessa expertise para a realização do seu trabalho com música. Ou seja, a pessoa que desenvolve atividades como: participar de grupos musicais, apresentar-se sem acompanhamento, ou atuar no ensino-aprendizagem de instrumentos musicais variados.
Em contexto contemporâneo e profissional, os usos do termo estão ligados à especialização do trabalho musical, em suas diversas frentes (Cardoso, 2023). Além das situações em que há uma orquestra e um coro, como na música sinfônica, outros gêneros de música se organizam por canto e acompanhamento de um ou mais instrumentistas; por outro lado, os muitos gêneros de “música instrumental” se organizam em formações e funções variadas — com ou sem destaque para solistas, marcando festas populares ou comemorações cívicas, com função religiosa, em combinação com outras linguagens e espetáculos (cinema, teatro, dança etc.).
Os itinerários de formação de um/a instrumentista são igualmente variados, e correspondem à ênfase em determinados tipos de repertório e frentes de trabalho no campo da música. Nas instituições brasileiras de ensino formal, principalmente em universidades, predomina a orientação para a música de concerto, e os instrumentos que estão há mais tempo no currículo são aqueles que integram a orquestra sinfônica e os conjuntos camerísticos. Em décadas recentes, os cursos de bacharelado passaram a incluir bandolim (EM-UFRJ, em 2010), cavaquinho (EM-UFRJ, em 2011) e viola caipira (ECA-USP, em 2009), por exemplo. Conservatórios e escolas de ensino técnico-profissionalizante, por outro lado, têm mostrado crescente abertura para instrumentos mais utilizados nas músicas populares.
Outras organizações musicais, como as bandas civis, as escolas de samba, as oficinas, os cursos livres e diversas igrejas, têm papel importante na iniciação e atuação continuada de instrumentistas. Os modos de transmissão de saberes nesses diferentes espaços, assim como a aprendizagem em práticas tradicionais ou por meios virtuais, têm sido observados e analisados em pesquisas de graduação e pós-graduação em Música (p. ex. Costa, 2008. Prass, 2004. Ribeiro, 2023).
Em estudos de etnomusicologia, nota-se que em certas sociedades e certas práticas culturais, a palavra “instrumentista” não tem equivalente, assim como não é comum identificar “música” como algo separado do corpo mais amplo de um ato ou ritual coletivo — situações em que as pessoas que tocam instrumentos podem ter papel definido e estruturante, embora não marcado por sentidos de “trabalho” ou “profissão”, na visão dos praticantes.
3. Questões de gênero
Ao estudar o trabalho do músico, Segnini (2014) descreve o âmbito orquestral como espaço constituído hegemonicamente por homens brancos. Segundo a autora, quando há mulheres participando, dificilmente elas ocupam postos mais destacados. Nesse sentido, Pichoneri aponta: “de fato, é possível observar um conjunto de dados, como a distribuição sexuada por instrumentos e posição (solistas/“tuttistas”)” (Pichoneri, 2010, p.3-4). A autora evidencia as dificuldades da construção de carreiras em música, por exemplo: contratos precários de trabalho sem a proteção de direitos sociais, mesmo quando musicistas de ambos os sexos apresentam níveis de qualificação semelhantes. Certamente é importante destacar que há diferenciações entre práticas musicais, contextos e tipos de instrumentos.
Essa discriminação por gênero é ainda mais pungente quando acompanhada por outras, tais como as discriminações por raça, classe, sexualidade, regionalismo, idade. Um exemplo da afirmação de que a carreira de instrumentista é um lugar mais ocupado por homens é trazido por Requião: estudando o trabalho de mulheres musicistas no Rio de Janeiro, nos séculos XX e XXI, a autora aponta que: “[...] o cadastro do Sindicato dos Músicos do Estado do Rio de Janeiro [...] mostra o número de 8.146 músicos do sexo masculino e 1.805 do sexo feminino” (Requião, 2020, p. 242). Observa-se, no campo musical brasileiro da atualidade, que no ofício de instrumentista a predominância de homens ainda é a “norma” (Requião, 2020). Esse cenário vem sofrendo modificações e, mesmo que ainda de forma incipiente, surgem políticas públicas, festivais instrumentais com mulheres, formação de coletivos (Velón, 2022), entre outras ações, que buscam diminuir a invisibilidade das instrumentistas e a diferença de direitos e oportunidades, quando comparadas ao trabalho dos instrumentistas.
Nos estudos de música e gênero, é também relevante analisar a associação, que se faz de modo mais ou menos explícito, entre certos instrumentos (incluindo as vozes), o gênero da/o instrumentista e o contexto de prática — investigando preconceitos e outras dificuldades (Oliveira, 2017. Rêgo, 2022), bem como caminhos de transformação no acesso à formação e no exercício profissional.
Tânia Maria Silva Rêgo
José Alberto Salgado
Referências
Andrés Artur; Borém, Fausto. O grupo UAKTI: três décadas de música instrumental e de novos instrumentos musicais acústicos. Per musi (23), Jun 2011.
Aulete, Caldas. Dicionário. 3ª ed. 5 volumes. Editora Delta, 1986.
Bates, Eliot. The Social Life of Musical Instruments. Ethnomusicology, vol 56, no. 3, pp. 363-395, 2012.
Brenet, Michel. Diccionario de la música. 4ª ed. Barcelona: Editorial Iberia S.A.,
1981.
Brito, Armando A. de Sousa e; Brito, Andrea Suzana de Sousa e. O Violino – A Sublimação da Madeira. Ciência & Tecnologia dos Materiais, Vol. 21, n.º 3/4, 2009.
Costa, Luiz Fernando Navarro. Transmissão de saberes musicais na Banda 12 de Dezembro. Dissertação (Mestrado) - CCHLA, Universidade Federal da Paraíba, 2008.
De Nora, Tia. Beethoven and the construction of genius: musical politics in Vienna, 1792-1803. California: University of California Press. Ltd., 1995.
Ferretti, Sérgio Figueiredo (org.). Tambor de Crioula: ritual e espetáculo. 3ª ed. São Luís: Comissão Maranhense de Folclore, 2002.
Harnecker, Marta, Conceitos elementais do materialismo histórico. Ed. Cortez e Morais, 1971.
Latour, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford; New York: Oxford University Press, 2005.
Lehmann, Bernard. O avesso da harmonia. Debates, Rio de Janeiro, n. 2, p. 73-102, 1998.
Liebman, David. Developing a personal saxophone sound. Medfield: Dorn Publications, 1989.
Oliveira, Anne Caroline. Mulheres instrumentistas de sopro em orquestras e bandas do Rio de Janeiro: uma análise dos desafios da inserção feminina no âmbito musical no período de 2011 a 2016. Monografia de Conclusão de Curso, Licenciatura em Música, EM-UFRJ, 2017.
Prass, Luciana. Saberes musicais em uma bateria de escola de samba: uma etnografia entre os Bambas da Orgia. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
Rêgo, Tânia Maria Silva. As instrumentistas, suas trajetórias, práticas e expectativas: uma etnografia com viés feminista e interseccional sobre trabalho com música em São Luís do Maranhão. Tese (Doutorado em Música) Programa de Pós-Graduação em Música - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2022.
Requião, Luciana. Mulheres musicistas e suas narrativas sobre o trabalho: um retrato do trabalho no Rio de Janeiro na virada do século XX ao XXI. Dossiê A Música e suas Determinações Materiais, v. 23, n. 1, 2020.
Ribeiro, Jamerson Farias. O campo de trabalho de músicos-cavaquinistas na cidade do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Música) Programa de Pós-Graduação em Música - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2023.
Salgado, José Alberto. Construindo a profissão musical: uma etnografia entre estudantes universitários de Música. Tese (Doutorado em Música). Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005.
Salgado, José Alberto. Estudando práticas de Música — cinco escritos sobre pesquisa e formação. Rio de Janeiro: Riobooks, 2023.
Segnini, Liliana Rolfsen Petrilli. Os músicos e seu trabalho: diferenças de gênero e raça. Tempo Social — revista de sociologia da USP, v. 26, n. 1, p. 75-86, 2014.
Toffano, Maria Jaci. As Pianistas dos Anos 1920 e a Geração Jet-Lag: o paradoxo feminista. Brasília: Editora UnB, 2007.
Velón, Marcela S. Ação e obra de três coletivos de mulheres música na cidade do Rio de Janeiro — análise feminista e decolonial. Tese (Doutorado em Música) Programa de Pós- Graduação em Música - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2022.
Wisnik, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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