O termo cosmopolítica é apresentado pela filósofa da ciência Isabelle Stengers, como uma proposição para a construção do pensamento, a partir de múltiplos sentidos — da ecologia política, da ecologia de saberes, da luta contra o poder de definir o cosmo, o mundo, as coisas e os seres. Nas sociedades ocidentais modernas, a ciência constituiu hegemonia, autoafirmando-se enquanto universal, global e central, em oposição às “visões de mundo outras” — regionais, locais, periféricas, as quais, no decorrer da história foram descartadas ou convenientemente toleradas, não sendo integradas enquanto conhecimentos possíveis no âmbito da pretensa “universalidade”. No centro das questões suscitadas pela autora está o desafio de fazer pensar, sem incorrer nas afirmações imperativas de autoridade e nas generalidades da ciência que se oferecem como lente racionalizante da modernidade, politicamente neutra, capaz de promover o progresso e de oferecer classificações, definições, conceitos, técnicas e outras generalidades.
Nos sentidos apresentados por Stengers, a cosmopolítica é uma proposição que requer a desaceleração dos raciocínios que objetivam construir “chaves universais” — sentidos comuns para o entendimento de diferentes mundos. Reconhece a inerência da política na construção do pensamento. E nesta arena, demanda que se atente às situações, aos “interstícios” de relações que produzem o questionamento da autoridade da ciência, “nossos saberes”, “nossas técnicas”, “nossas práticas” — conhecimentos dos quais julgamos ser os detentores. Na análise da autora, as proposições políticas e cosmopolíticas são inseparáveis, e uma de suas dificuldades é a distinção destas duas dimensões. Em seu exercício reflexivo, localiza nas preocupações sobre as questões ecológicas o momento em que a política e a cosmopolítica se encontram — quando os saberes dos povos tradicionais parecem responder aos anseios e preocupações sobre um futuro possível para o planeta, por exemplo.
Stengers (2018) esclarece que quando intitulou seu trabalho, em 1996, como "Cosmopolítica", pensava estar criando um neologismo, e desconhecia que Kant havia usado este termo. A autora esclarece que, no entanto, o uso de Kant se deu no sentido generalizante, pensando em uma paz mundial, onde todos os cidadãos viveriam segundo direitos unificados. Ao protagonizar a retomada da expressão, os sentidos atribuídos pela autora são construídos numa direção contrária a esta. Ela quer chamar a atenção para os múltiplos cosmos e a política necessária para que esta multiplicidade não seja “engolida”; para que seja levada a sério nas particularidades de cada caso concreto. Para Stengers, o “cosmos” de sua proposição cosmopolítica, pouco tem a ver com a unificação do pensamento antigo sobre o mundo ou a noção de um território comum, mas sim com o seu contrário: é o que se separa do entendimento comum, que comunica em outra língua, com outra linguagem, com algo que não se sabe e que coloca em dúvida os significados do que sabemos. Na concepção da autora, o termo “cosmo” articula o interesse por algo “enigmático”, que não é um cosmo particular, mas mundos múltiplos, divergentes e desconhecidos. O cosmo a que se refere a autora é um “operador de colocação em igualdade”, responsável por mostrar que nos vários desenvolvimentos do conhecimento, não é possível produzir definições absolutas. A intercambialidade de posições nos faz perceber que nem tudo é equivalente e, portanto, não permite conclusões definitivas. Na cosmopolítica, as práticas científicas possuem significados políticos, reconhecendo-se que as ciências modernas respondem às demandas políticas e de poder, indagando-se as relações que envolvem aquele que pode falar, o assunto sobre o qual se pode falar, quem pode ou não ser representante ou porta-voz de algo. Na proposição desenvolvida ao longo de sua obra, Stengers defende que ao fazer ciência estamos construindo mundos e que nesta construção, não devemos desconsiderar as relações estabelecidas, por exemplo, entre os seres humanos e não humanos, outras formas de considerar natureza e cultura, e assim por diante.
Em seus trabalhos mais recentes, Stengers tem dialogado com a escritora e ativista neopagã Starhawk, discutindo as possibilidade de reclaim, traduzido por Renato Sztutman como “reativar”, ou como “retomar”. Sztutman comenta como certas práticas marginalizadas e desqualificadas pelo mundo moderno-capitalista, como a magia e a feitiçaria, são vistas pela filósofa como modalidades de resistência política. "Filósofa da ciência, Stengers atenta para o processo de afirmação das ciências modernas a partir da obliteração de práticas julgadas equivocadas, irracionais. Tal obliteração jamais poderia ser dissociada da expansão do capitalismo e sua profusão de poderes. Por isso, insiste Stengers, é preciso trazer as ciências para a política, descortinar toda uma cosmopolítica que pode conferir novos sentidos para a aventura da experimentação e da especulação que envolve a ciência e toda forma de pensamento, oferecendo um antídoto à economia do conhecimento vigente, que transforma todo saber em mercadoria e destrói as capacidades de pensar e agir em conjunto” (Sztutman, 2018: 339-340).
A proposição cosmopolítica ganha força quando as mudanças climáticas se impõem e surgem os debates sobre o Antropoceno. Se até o século XX, entendíamos as grandes mudanças climáticas como eventos geológicos, naturais, agora enfrentamos uma grande mudança causada pelo homem, daí o termo Antropoceno. Alguns autores e autoras questionam o termo, ressaltando que não foram todos os humanos que causaram estas alterações no planeta, e localizam no capitalismo o problema, propondo o termo Capitaloceno para esta nova era. Neste debate, a maneira como foi concebida a divisão entre cultura e natureza, ou o humano e a natureza, é um ponto central, considerado causador da situação a que chegamos. Há uma forte crítica ao antropocentrismo, este pensamento que coloca o homem no centro de tudo. E as filosofias dos povos indígenas, por exemplo, vêm nos mostrando este equívoco há muito tempo. Duas publicações de autores indígenas, que causaram grande impacto nos últimos anos, são as obras de Ailton Krenak (2019), Idéias para adiar o fim do mundo, e Kopenawa e Albert (2015), A queda do Céu. Um dossiê intitulado “Entreviver – desafios cosmopolíticos contemporâneos” traz várias contribuições a esta reflexão (Bailão et al., 2018).
Cosmopolítica e música
Esta proposição foi muito bem recebida na antropologia e na etnomusicologia, entre outras áreas, principalmente quando o universo em questão são povos indígenas, quilombolas, povos tradicionais em geral. O que as etnografias dedicadas às artes verbais, às musicalidades, ao xamanismo revelam são as relações de respeito, de escuta, entre os humanos e os outros seres, sendo estas linguagens sensíveis justamente as preferenciais em tais relações.
Os Guarani, por exemplo, cantam, tocam seus instrumentos e dançam, cotidianamente, desde o surgimento do mundo, para sobreviver, e para manter a vida da terra, mantendo relações dialógicas com seres espirituais, ancestrais, e com as manifestações destes, como o Sol e os relâmpagos (Montardo, 2009). As autorias das canções, em muitos povos, são de outros seres, como por exemplo, entre os Kĩsêdjê. Segundo Seeger a música kĩsêdjê tem sempre uma origem externa — em outros grupos humanos ou não humanos. Muitos cantos foram e são ensinados a eles, tanto no tempo mítico, como na atualidade, por animais (Seeger, 2015).
O que chamamos de instrumentos musicais, para muitos desses povos, são seres que têm suas vozes. Os atabaques nas religiões afro-brasileiras, por exemplo, são alimentados, tratados e respeitados. No caso dos povos indígenas, a música tem um papel forte também nas lutas políticas de conquistas de direitos, como podemos ver, por exemplo, nos Acampamentos Terra Livre, que têm acontecido anualmente no mês de Abril, em Brasília. Quando cantam nestes eventos, os indígenas estão movendo o mundo, estão atuando efetivamente; a música aí é uma arma de luta, no sentido mais literal possível. A tese de Paola Gibran (2021) sobre a relação entre os cantos kaigang e os seus movimentos políticos é um dos exemplos do uso do conceito de cosmopolítica nos estudos sobre música. No trabalho, a autora detalha como através dos cantos/danças/movimento/ritual, o coletivo Nẽn Ga Kaigang ativa seus antepassados e realiza os movimentos de retomadas territoriais, retomadas da guerra e o que a autora chama de retomadas existenciais, num empenho contra colonial.
No texto coletivo "A memória das canções como um território de resistência entre os povos indígenas da América do Sul”, Rodgers et alii indicam "que a própria continuidade de um povo ou etnia é vista como dependente dessa cosmopolítica em sua incidência sobre um vitalismo generalizado, que tem nas práticas musicais, sobretudo através de vozes e aerofones, seus instrumentos preferenciais de ação.” (Rodgers et al., 2016, p.175)
Outro exemplo é o Dossiê "Diplomacias cosmopolíticas e os desafios da linguagem: perspectivas das terras baixas sul-americanas”, que reúne artigos de pesquisadores indígenas e não indígenas, os quais tratam das propriedades pragmáticas da comunicação, sua eficácia no fazer, agir sobre o mundo. Os discursos cerimoniais, aconselhamentos, cantos rituais, todos formas de linguagem, as quais, em diferentes povos, são os meios pelos quais se dão a comunicação e a atuação dos diferentes seres, humanos e não-humanos, inserida aí o que conhecemos como natureza (Gibran et al., 2020).
Estes são apenas exemplos de uma vasta literatura, que não temos como esgotar aqui. O que é importante frisar na proposição cosmopolítica é a chamada para que sejam levados a sério os conhecimentos resistentes ao hegemônico, na sua integridade, e suas consequências para uma transformação da ciência e do mundo.
Deise Lucy Oliveira Montardo
Luciano Cardenes Santos
Referências
Bailão, André et al. Entreviver - desafios cosmopolíticos contemporâneos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, 2018.
Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Gibram, Paola. Cantos sem fim: formas políticas Kaingang e seus movimentos. (Tese em Antropologia Social). São Paulo: USP, 2021.
Gibram, Paola; Vanzolini, Marina; Sztutman, Renato. Diplomacias cosmopolíticas e os desafios da linguagem: perspectivas das terras baixas sul-americanas. Campos - Revista de Antropologia, v. 21, n. 1, p. 09-19, nov. 2020.
Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Rodgers, Ana Paula Lima; Montardo, Deise Lucy Oliveira; João, Izaque; Jamal Júnior, José Ricardo; Rosse, Leonardo Pires; Stein, Marília Raquel Albornoz; Pereira de Tugny, Rosângela; Pimentel, Spensy Kmitta; Aldé, Verônica; Benites da Silva, Vherá Poty. A memória das canções como um território de resistência entre os povos indígenas da América do Sul. Um projeto coletivo de documentação. In: Luhning, A; Tugny, R (org.). Etnomusicologia no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 140-183.
Montardo, Deise Lucy. Através do Mbaraka: música, dança e xamanismo guarani. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
Seeger, Anthony. Por que cantam os Kĩsêdjê. São Paulo: Cosac Naify, 2015. [Cambridge: Cambridge University Press, 1987].
Stengers, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 69, 2018.
Sztutman, Renato. Reativar a feitiçaria e outras receitas de resistência — pensando com Isabelle Stengers. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, 2018.
Fontes adicionais para estudo do tema
Danowski, Débora et al (Org.) Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra: volume 1. Rio de Janeiro: Ed. Machado. 2023.
Stengers, Isabelle. L’invention des sciences modernes. Paris: La Découverte, 1993.
Stengers, Isabelle. Cosmopolitiques I. Paris : Éditions la Découverte, 1997.
Stengers, Isabelle. Cosmopolitiques II. Paris : Éditions la Découverte, 1997.
Stengers, Isabelle. L’hypnose entre magie et science. Paris: Les Empêcheurs de penser en rond/Seuil, 2002b.
Stengers, Isabelle. Préface à l’édition française. In: Starhawk. Rêver l’obscure: femmes, magie et politique. Paris: Les Empêcheurs de penser en ronde/Le Seuil, 2003.
Stengers, Isabelle. Au temps des catastrophes: résister à la barbarie qui vient. Paris: La Découverte, 2009.
Stengers, Isabelle. Gaia, the urgency to think (and feel). Colóquio Internacional Os mil nomes de gaia: do antropoceno à idade da Terra. Rio de Janeiro: Departamento de Filosofia/PPGAS, Museu Nacional/UFRJ.
Stengers, Isabelle. Reativar o animismo. Caderno de Leituras, n. 62. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2017.
Stengers, Isabelle; Pignarre, Philippe. Capitalist sorcery: breaking the spell. Trad. Andrew Goffey. New York: Palgrave Macmillan, 2011.