Embora existam narrativas que situem o conceito de decolonialidade de maneira relativamente exclusiva à esfera acadêmica e que a área de Música seja consideravelmente impactada por tais narrativas, ao mesmo tempo em que é fundamental chamar a atenção para a sua importância, também é necessário dizer que o projeto decolonial emerge antes do próprio uso do termo e, ainda, previamente aos marcos acadêmicos frequentemente narrados como pontos de partida do dito “giro decolonial” (ver Colonialismo).
Sinteticamente falando, por um lado, intelectualidades negras (como é o caso, no contexto brasileiro, de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, Petronilha Silva, Oliveira Silveira, entre outros/as intelectuais, munidos/as do conhecimento proveniente da atuação em movimentos sociais negros) assim como lideranças e intelectuais de povos originários (entre os/as quais, Ailton Krenak, Daniel Munduruku e Davi Kopenawa), há décadas vêm discutindo pautas e posicionando estratégias de ações justamente alinhadas ao que atualmente entende-se como projeto decolonial.
Por outro lado, é fundamental ressaltar que os paradigmas decoloniais dão certa sequência – entre continuidades e rupturas – às reflexões e proposições do grupo de estudiosos pós-coloniais, mesmo que enunciem desde o norte global, como lembram Bernardino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel (2018).
Perceba-se que, longe de ser considerado uma moda ou um maneirismo acadêmico, o paradigma decolonial vem sendo reivindicado como um conjunto de reflexões imbricadas a práticas, estratégias para intervenção no mundo social, mediante as afecções da “colonialidade do poder” (Quijano, 2005). O conceito foi acionado por Aníbal Quijano, pertencente ao grupo talvez mais conhecido de acadêmicos latino-americanos tidos como precursores do giro decolonial, na década de 1990. Tomado como um conjunto de narrativas, acionador de diferentes personagens e pertencimentos sociais, falar em decolonialidade geralmente implica diferentes enfoques, focos, tensões e críticas.
No campo musical, as propostas decoloniais tendem a desacomodar em muitos níveis pontos à primeira vista pacíficos, vivenciados pelos anos 1990 e 2000, como o paradigma da diversidade cultural. Tal paradigma trouxe elementos aparentemente paradoxais, ao promover valorizações de musicalidades “outras”, para além das ocidentais, ao mesmo tempo em que canalizou exotismos e visões ingênuas do dito “multiculturalismo”, a serviço do neoliberalismo, como uma moda (Walsh, 2009). Para Catherine Walsh (2009), é preciso tratar de uma interculturalidade crítica, em contraposição à interculturalidade funcional. Assim, não seria possível abordar o tema da interculturalidade sem denunciar as práticas de exclusão e violência, a subordinação de seres e saberes e a emergência de dispositivos raciais como parte da colonização do poder, mesmo que levando em conta os saberes de resistência construídos por sujeitos colocados em posição de desumanidade.
Apesar de essas leituras terem impacto na área de Música, é preciso mencionar que o campo da etnomusicologia, em sua trajetória interdisciplinar, já vem tematizando experiências interculturais e problematizando questões de diversidade a partir dos encontros musicais provenientes do trabalho de campo, ao mostrar-se “consoante com uma trajetória disciplinar crítica e longe de uma adesão ingênua e celebratória de multiculturalismos, de diversidades e diferenças, de exotismos estéticos” (Lucas, 2013, p. 12). Ao mesmo tempo, embora a subárea tenha uma fundação de pilares colonialistas, internacionalmente, é comum que haja diálogos entre a chamada “Etnomusicologia Aplicada” e os estudos decoloniais. Nas etnomusicologias brasileiras, as experiências de colaboração na esfera da pesquisa e a necessidade de perspectivas comprometidas política e eticamente com as pessoas que estão em foco nos estudos acadêmicos parecem ter sido fundamentais para a emergência de bases teóricas e metodológicas participativas entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000 (ver Cambria; Fonseca; Guazina; 2016, sobre experiências de pesquisas participativas, incluindo o trabalho com o projeto Musicultura, junto ao Complexo da Maré/Rio de Janeiro).
O tema da decolonialidade leva a buscas por alternativas de sobrevivência diante do colonialismo, junto a exames desse sistema e de suas marcas indeléveis, já que o mesmo ditou os discursos de raça, gênero e poder (Smith, 2016). Em Música, parece haver consenso de que essas buscas partam de alguns elementos-chave:
revisão dos valores da música europeia de concerto (cânone narrativo historiográfico, julgamento de valor e a falácia de superioridade estética, como exemplos);
crítica ao eurocentrismo e seus impactos — racismos, violências de gênero, embates religiosos, apagamento de saberes e invisibilização de narrativas;
tentativa de desconstrução de estruturas colonialistas em instituições e, nelas, a revisão das matrizes curriculares e da formação musical e pedagógico-musical;
desconstrução e crítica a binarismos na área de Música e em geral, o que inclui reivindicar a ampliação de entendimentos de gênero e sexualidades. Como consequências diretas, entende-se tanto a revisão de narrativas historiográficas sobre músicas, por meio da construção de “outras” histórias, quanto a busca por miradas e escutas inclusivas para as comunidades LGBTQIAPN+, considerando suas lutas, desafios e contribuições na área de Música;
descentralização em termos geopolíticos quanto às narrativas sobre música e o campo acadêmico musical, contribuindo para a visibilização e sonorização de pessoas para além dos territórios hegemônicos, tanto na esfera global quanto na nacional;
valorização de saberes de povos originários e da diáspora africana, a partir da busca por entendimentos profundos e que compreendam cosmologias envolvidas nas práticas sonoro-musicais, oferecendo narrativas opostas às miradas colonialistas exotizantes e simplificadoras para as musicalidades indígenas e negras;
enfrentamento às questões raciais, como parte de uma postura ética que transcenda escolhas individuais e conduza a um engajamento da área de Música à luta antirracista;
busca por representatividade de pessoas indígenas e negras na área de Música, o que compreende sua presença nos cursos de graduação e pós-graduação — corpo discente e docente — e nas bibliografias e repertórios musicais latinos, especialmente reconhecendo e valorizando os percursos de luta e resistência de populações da diáspora negra e de povos originários.
É bem verdade que alguns desses apontamentos, no Brasil, vêm sendo realizados especialmente — embora não exclusivamente — pelos campos da Etnomusicologia e Educação Musical, de maneiras mais ou menos intensas, cada subárea mais em um que outro ponto.
O tema da necessidade de mudanças estruturais frente a um currículo de marcas conservatoriais é um desses casos, e vêm sendo debatido de maneira relativamente constante em eventos acadêmicos, monografias e publicações da área. Tal necessidade também fica demarcada no dossiê “Música enquanto prática decolonial”, de 2020 (Cohon; Sanchez; Del Pino, 2020). Na publicação, aproximadamente um terço dos artigos é voltado para as questões de formação e currículo em cursos de graduação. Esse modelo também vem sendo questionado a partir das vozes indígenas, a partir de seus acessos e (re)existências nos espaços acadêmicos musicais, como é o caso de Andeson Cleomar dos Santos (2020), ao falar de seu contexto na licenciatura, tendo em vista seu lugar como Pankararu.
A busca por representatividade, em termos de Brasil, é emergente mediante a política de cotas, como parte de um processo que reflete sobre a criação de estratégias para ingresso e permanência de pessoas indígenas e negras nos Cursos de Música, bem como a necessidade de pessoas de povos originários e negras no próprio corpo docente, o que ainda é minoria e processo de luta no Brasil.
Nesse sentido, o movimento Encontro de Saberes, existente desde 2010 na Universidade de Brasília e já sendo implantado em diversas universidades brasileiras e latino-americanas, oferece perspectivas marcantes. Ao reunir mestres e mestras de saberes tradicionais para atuarem como docentes de componentes curriculares de graduação – tendo se expandido para pós-graduação em algumas universidades – busca romper com o paradigma eurocentrado, questionando o ensino fragmentário, ao conectar sons e dimensões sônicas a diversos saberes, junto a mestres/as polímatas (Carvalho; Vianna, 2020) com potencial de diálogo com a Educação Musical (Carvalho et al., 2016).
Iniciativas como o “Encontro de Saberes”, que visam a desconstruir estruturas colonialistas e visibilizar e sonorizar perspectivas pluriepistêmicas, são ainda um desafio nas construções epistemológicas da área de Música e têm mostrado que colocar em ação o projeto decolonial necessariamente demanda novas posturas éticas. Isso quer dizer que, além de visibilizar os processos de resistência das populações negras e indígenas, colocando em prática as contribuições das leis 10.639/03 e 11.645/08, denunciar as implicações do colonialismo e valorizar os saberes de sociedades tradicionais, problematizando seus atravessamentos no mundo capitalista, deve-se realizar de maneira contundente o enfrentamento aos conflitos ocasionados pelos paradigmas eurocentrados. Sendo assim, práticas decoloniais têm conectado-se a perspectivas antirracistas.
O Manifesto das pessoas negras contra o racismo nos Cursos de Música (2021), elaborado pelo coletivo de pessoas negras pesquisadoras de Música Mwanamuziki, denunciou o cotidiano racista na área de Música na contemporaneidade e a necessidade de reparação histórica às pessoas negras. Sendo assim, convoca a uma tomada de atitude urgente, especialmente nas instituições de ensino superior, apresentando uma lista de reivindicações e pressupostos compreendidos como necessários para o combate ao racismo e que, se observados a partir dos princípios frequentemente associados ao giro decolonial, estão em sintonia.
Simultaneamente e na sequência ao Manifesto, diversos eventos acadêmicos da área de Música e em diálogos trans/interdisciplinares no Brasil afora, de maneira online e, com a retomada das atividades presenciais, também ao vivo, inflamavam as problemáticas já acionadas nas bibliografias que criticavam o eurocentrismo e reivindicavam as pautas decoloniais. Tornou-se frequente a reivindicação por lugares sociais diversos na área de Música, principalmente no que se refere às questões étnico-raciais, de gênero, sexualidades e classe, deslocando a centralidade do perfil branco-cis-hetero de classe média, ainda hegemônico no campo acadêmico. Esse movimento parece estar sendo mais demarcado nas recentes publicações, e um marco na área de Música no cenário brasileiro é a coletânea Música e pensamento afrodiaspórico (Santos, Sodré, Santos, 2022), da série “Pesquisa em Música no Brasil”, lançado pela ANPPOM e que teve o coletivo Mwanamuziki à frente na organização. Apesar de não se propor a problematizar diretamente a decolonialidade, o tema parece ser transversal aos capítulos e teve como maior parte dos/as autores/as pessoas não brancas.
É preciso lembrar, contudo, que esse movimento de construção de narrativas “outras” em Música, advindas com a perspectiva decolonial, já vinha sendo construído antes dos tempos pandêmicos da COVID-19. Um exemplo foi o grupo constituído como “Etnomusicologia Negra”, emergente no Encontro Nacional da ABET de 2019 (Oliveira; Nascimento; Rosa, 2019), em Campinas, contexto importante para a consolidação posterior de uma diretoria autointitulada afirmativa, majoritariamente negra, da mesma associação, na gestão 2021-2024. É possível afirmar que esse movimento alinhava-se à trajetória de grupos de pesquisa dos campos da Etnomusicologia e de algumas linhagens da Musicologia de norte a sul do país que já atuavam com perspectivas raciais, feminismos (negros), sexualidades, exercendo o papel de grupos de estudo e de acolhimento junto a enfoques interseccionais e em perspectivas decoloniais ao abordar as performances sonoro-musicais (ver Feminismo).
Entre os desafios da decolonialidade em música, há que se ter em mente os atravessamentos do “pacto da branquitude” (Bento, 2022), considerando-se aqui seu conjunto de privilégios e perspectivas universalistas de impactos excludentes, como quando assume narrativas que invisibilizam práticas musicais ainda periféricas. Com recorrência, na área de Música, esse perfil narcísico (Bento, 2022) situa europeus e seus descendentes — especialmente desde seus perfis mais hegemônicos em termos de gênero e sexualidade — como protagonistas da história outra vez. Nesse sentido, o tema da decolonialidade mantém o lembrete para que a área esteja atenta e perceba a necessidade de escutas sensíveis (ver Escuta) e abertas a timbres (nos seus sentidos literais e simbólicos), sons e cosmologias na composição de alianças. Nessas interações, as narrativas sobre decolonialidade que chamam a atenção para as representatividades têm também reivindicado que as relações interculturais possam se fundar a partir de posições horizontais. Nesse contexto, as edições dialógicas, já presentes em parcerias e escritas acadêmicas, também são uma necessidade quanto ao próprio tema da “decolonialidade em música”.
Finalmente, parece ser pungente a defesa de que compromissos decoloniais são fundados por vínculos éticos e de confiança, possivelmente fortalecidos pela relação com coletivos. Tais vínculos passam pela formação ou intensificação de redes, compreendendo alianças com grupos de outros países da América Latina e para além do campo musical - como os Núcleos de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABs/NEABIs), entre outros núcleos e grupos de estudo e, muito expressivamente, os movimentos sociais. Essas redes são fundamentais para que não se caia nas armadilhas da branquitude e da falta de miradas interseccionais, mediante tantos avanços e desafios ainda a serem enfrentados.
Luana Zambiazzi dos Santos
Referências
Bento, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
Bernardino-Costa, Joaze; Maldonado-Torres, Nelson; Grosfoguel, Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
Cambria, Vincenzo; Fonseca, Edilberto; Guazina, Laize. “Com as pessoas”: Reflexões sobre colaboração e perspectivas de pesquisa participativa na etnomusicologia brasileira. In: Lühning, Angela. Tugny, Rosângela Pereira de (org.). Etnomusicologia no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 93 - 137.
Carvalho; José Jorge de; Cohen, Liliam Barros; Corrêa, Antenor Ferreira; Chada, Sônia. O Encontro de Saberes como uma contribuição à Etnomusicologia e à Educação Musical. In: Lühning, A.; Tugny, R. P. (org.). Etnomusicologia no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 199-236.
Carvalho, José Jorge de; Vianna, Letícia. Encontro de saberes nas universidades: uma síntese dos dez primeiros anos. Revista Mundaú, n. 9, p. 23 - 49, 2020.
Cohon, João Casimiro Kahil; Sanchez, Leonardo Pellegrim; Del Pino, Ramón; Dossiê: Música enquanto prática decolonial. PROA: Revista de Antropologia e Arte, Campinas, v. 1, n. 10, 2020.
Coletivo Mwanamuziki. Manifesto das pessoas negras contra o racismo nos cursos de música. 21 mar. 2021. Publicação online.
Lucas, Maria Elizabeth (org.). Mixagens em Campo: etnomusicologia, performance e diversidade musical. Porto Alegre: Marcavisual, 2013.
Oliveira, Miriam de; Nascimento, Gabriela; Rosa, Pedro Fernando Acosta da. Etnomusicologia Negra: considerações iniciais. In: Anais do Encontro Nacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia, 9, 2019, Campinas: UNICAMP, 2019. p. 50-51.
Quijano, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: E. Lander (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. p. 117-142. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.
Santos, Andeson Cleomar dos; Braga, Simone Marques. A formação do licenciando em música na perspectiva da diversidade cultural. Revista Humanidades e Inovação, v. 7, n. 7, p. 188-202, 2020.
Santos, Eurides de Souza; Santos, Marcos; Sodré, Luan (org.). Música e pensamento afrodiaspórico. Salvador: Diálogos Insubmissos/ANPPOM, 2022.
Smith, Linda Tuhiwai. A descolonizar las metodologias: Investigación y pueblos indígenas. LOM ediciones, 2016.
Walsh, Catherine. Interculturalidad Crítica y Pedagogía De-Colonial: Apuestas (Des)De El In-Surgir, Re-Existir y Re-Vivir. Educação Online, Rio de Janeiro, n. 4, 2009.
Fontes adicionais para estudo do tema
Batista, Leonardo Moraes. Da necropolítica a negropolítica: tensões, questões e perspectivas contracoloniais. In: Candusso, F. (org.). 30 + 30: Pós-Graduação & Música. Salvador: EDUFBA, 2020. p. 195-218.
Gomes, Nilma Lino. O Movimento Negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos. In: Bernardino-Costa, J.; Maldonado-Torres, N.; Grosfoguel, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 251-279.
Miñoso,Yuderkys Espinosa; Correal, Diana Gómez; Muñoz, Karina Ochoa. Tejiendo de otro modo: Feminismo, epistemología y apuestas descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014.
Santos, Andeson Cleomar dos; Silva, Douglas Gomes da. Algumas reflexões sobre uma experiência indígena na graduação e pós-graduação em Música. In: Candusso, F. (org.). 30 + 30: pós-graduação & música. Salvador: EDUFBA, 2020. p. 219-238.
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