Vale a pena começar por referir que a palavra “liberal” representa coisas diferentes nos nossos dias. Nos EUA, por exemplo, foi mudando de sentido até querer dizer “radical” ou mesmo “socialista”.
Há, no entanto, aspetos que Vargas Llosa destaca como transversais ao pensamento liberal e que vai buscar a vários dos pensadores que mais o influenciaram. Referimo-nos a Adam Smith, Friedrich Hayek, Ortega y Gasset, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel.
Aqui apresentamos uma síntese de várias ideias que vão sendo defendidas ao longo do livro, no que respeita à caracterização do que é um liberal.
Para um liberal, a liberdade é um valor supremo e não é divisível nem fragmentado. É só uma e tem de manifestar-se em todos os domínios - económico, político, cultural e social - numa sociedade genuinamente democrática. O próprio avanço da ciência, como recordava Popper, depende da livre concorrência do pensamento e, por isso, da liberdade.
O liberalismo não é dogmático. Sabe que a realidade é complexa e que, muitas vezes, as ideias e os programas políticos se lhe devem adaptar, se quiserem ter êxito, em vez de tentarem prendê-la dentro de esquemas rígidos, o que costuma fazê-los fracassar e desencadeia a violência política.
Por exemplo, Adam Smith tolerava que se mantivessem temporariamente alguns privilégios, como subsídios e controlos, quando a sua supressão pudesse implicar, no imediato, mais desvantagens do que benefícios. Esta tolerância de Smith para com o adversário talvez seja o mais admirável dos traços da doutrina liberal: aceitar que poderá estar errada e que o adversário pode ter razão. Um governo liberal deve enfrentar a realidade social e histórica de maneira flexível, sem acreditar que todas as sociedades se podem encaixar num único esquema teórico.
Um liberal não é anarquista e não quer suprimir o Estado. Pelo contrário, quer um Estado forte e eficaz, o que não significa um Estado grande, empenhado a fazer coisas que a sociedade civil pode fazer melhor, num regime de livre competitividade. O Estado deve garantir a liberdade, a ordem pública, o respeito pela lei e a igualdade de oportunidades (este último um princípio profundamente liberal).
O liberalismo de Karl Popper, por exemplo, está profundamente impregnado de uma vontade de justiça que está ausente nos que concebem o destino da liberdade apenas na existência de mercados livres. Estes esquecem-se que os mercados livres, só por si, como afirmava Isaiah Berlin, acabam a permitir que os lobos comam todos os cordeiros. A liberdade económica que Popper defendeu devia ser complementada com uma educação pública de elevado nível e diversas iniciativas de ordem social, como a criação de instituições para proteger o economicamente débil do economicamente forte - a aposentação, seguros de desemprego e de acidentes de trabalho, educação gratuita em escolas públicas, proibição do trabalho infantil - e uma vida cultural intensa e acessível ao maior número de pessoas, a fim de se criar uma igualdade de oportunidades que combata, em cada geração, os dogmas religiosos e o espírito tribal.
No entanto, para um liberal, a igualdade perante a lei e a igualdade de oportunidades não significam a igualdade de retribuições e de rendimentos. Por essa razão, é importante, para um liberal, oferecer a todos os jovens um sistema educativo de alto nível, que assegure a cada geração um ponto de partida comum e que permita, depois, as diferenças legítimas de retribuição, de acordo com o talento, o esforço e o serviço que cada cidadão presta à comunidade.
A igualdade de oportunidades no domínio da educação não significa que seja necessário suprimir o ensino privado em benefício do público.
O Estado pequeno é geralmente mais eficaz do que o grande: esta é uma das convicções mais firmes da doutrina liberal. Quanto mais o Estado cresce e mais atribuições assume na vida de uma nação, mais diminui a margem de liberdade de que os cidadãos gozam. A descentralização do poder é um princípio liberal, a fim de que o controlo exercido pelo conjunto da sociedade sobre as diversas instituições sociais e políticas seja maior. Exceptuando a defesa, a justiça e a ordem pública, nas quais o Estado tem primazia (não monopólio), o ideal é que, no resto das atividades económicas e sociais, se dê impulso a uma maior participação civil num regime de livre competitividade.
A propriedade que cada homem tem do seu próprio trabalho é a mais sagrada é inviolável, dado que é a base de todas as outras. A propriedade privada deve ser protegida por leis e autoridades que as façam cumprir e o mercado livre é o motor do progresso.
O que impulsiona o progresso não é o altruísmo nem a caridade, mas sim o egoísmo - trabalhando para materializar os seus próprios anseios e sonhos egoístas, o homem comum contribui para o bem-estar de todos.
O mercado livre pressupõe a existência de propriedade privada, igualdade dos cidadãos perante a lei, rejeição dos privilégios e divisão do trabalho. Sendo que este sistema económico não é criado, mas espontâneo. É um mecanismo não inventado por alguém e a que a humanidade foi chegando através do comércio. Este intercâmbio contínuo produziu a divisão do trabalho e o aparecimento do mercado, sistema distribuidor de recursos para o qual, sem o pretender nem sequer saber, todos os membros da sociedade - vendedores, compradores e produtores - contribuem, fazendo avançar a prosperidade geral.
Esta ordem espontânea tem a liberdade como sua base - liberdade de comércio, de intervir no mercado como produtor e consumidor em igualdade de condições perante a lei, de assinar contratos, de exportar e importar, de se associar e formar empresas, etc.
Segundo Hayek, bons exemplos destas ordens espontâneas são a linguagem, a propriedade privada, a moeda, o comércio e o mercado. Nenhuma destas instituições foi inventada por uma pessoa, comunidade ou cultura singulares. Foram surgindo de forma natural, em lugares diferentes, como consequência de determinadas condições a que a comunidade respondeu criativamente, seguindo mais uma intuição ou um instinto do que um raciocínio intelectual e que, depois, a experiência vivida iria legitimando, modificando ou eliminando e substituindo-a por outra diferente.
Uma das críticas a fazer ao marxismo, por parte de um liberal, é exatamente a de ser uma expressão de soberba intelectual. O contrário, portanto, da humildade intelectual que constitui a essência do verdadeiro liberalismo, que considera com respeito as forças espontâneas através das quais os indivíduos criam coisas mais importantes do que as que poderiam criar intencionalmente.
O monopólio, no entanto, distorce a oferta e a procura ao conferir a um fabricante ou a um comerciante o poder de alterar os preços para satisfazer o seu apetite de lucro; ao eliminar a concorrência, a qualidade do produto degenera e o comércio deixa de ser um serviço para se converter em exploração do comprador.
Um liberal não é um ser cerebral e desumanizado. É sensível ao horror da pobreza e acredita na igualdade de oportunidades. Adam Smith, por exemplo, falava das fontes de receita que mantêm o soberano ou o governo, isto é, dos impostos, defendendo algumas teses que agora seriam consideradas sociais-democratas. Acreditava que os impostos devem servir para “igualar” as receitas, cobrando mais aos ricos e menos aos pobres, e evitando cargas fiscais que, porque excessivas ou arbitrárias, convidam à evasão.
O liberal não é religioso. De resto, muitos dos pensadores liberais eram ateus ou, pelo menos, agnósticos. Ortega y Gasset defendia a incompatibilidade profunda que existe entre o pensamento liberal e o de um católico dogmático, que qualificava como antimoderno. Não obstante, são vários os liberais que consideram que, sem sólidas convicções morais (religiosas ou laicas), o liberalismo não funciona.
Segundo Ortega y Gasset, a democracia liberal é a forma que, em política, tem representado a mais alta vontade de convivência e a quem tem mostrado um espírito de tolerância sem precedentes na história, já que o liberalismo, considerava ele, é o direito que a maioria concede à minoria, a decisão de conviver com o inimigo.
O liberalismo não se reduz a uma receita económica de mercados livres, regras do jogo equitativas, tarifas alfandegárias baixas, despesas públicas controladas e privatização das empresas. O liberalismo é, primeiro que tudo, uma atitude perante a vida e a sociedade baseada na tolerância e no respeito, no amor pela cultura, numa vontade de coexistência com os outros e uma defesa firme da liberdade como valor supremo. Uma liberdade que é, ao mesmo tempo, motor do progresso material, da ciência, das artes e das letras e dessa civilização que tornou possível o indivíduo soberano, com a sua independência, com os seus direitos e deveres em permanente equilíbrio com os outros, defendidos por um sistema legal que garante a convivência e a diversidade.
A LIBERDADE ECONÓMICA É UMA PEÇA FUNDAMENTAL, MAS DE MODO ALGUM A ÚNICA, DA DOUTRINA LIBERAL. As receitas económicas por si só podem fracassar estrepitosamente se não forem apoiadas por um corpo integrado de ideias que as justifique e as torne aceitáveis para a opinião pública.
Aqueles que esgrimem hoje como prova do fracasso do liberalismo as dificuldades que atravessam a Rússia e alguns dos seus antigos satélites omitem, por ingenuidade ou má-fé, que o liberalismo não consiste em liberalizar os preços e abrir as fronteiras à competitividade internacional, mas sim na reforma integral de um país, na sua privatização e descentralização a todos os níveis, e em transferir para a sociedade civil - para a iniciativa dos indivíduos soberanos - as decisões económicas essenciais. E na existência de um consenso relativamente a regras do jogo que privilegiem sempre o consumidor acima do produtor, o produtor acima do burocrata, o indivíduo perante o Estado e o homem vivo e concreto de agora acima da abstração com que os totalitários justificam todos os seus desaforos: a humanidade futura.
O individualismo é, portanto, um fator central do liberalismo. O indivíduo goza de soberania e, embora parte do que é se explique pelo meio em que nasce e se forma, há nele uma consciência e um poder de iniciativa que o emancipam dessa placenta gregária e lhe permitem atuar livremente, de acordo com a sua vocação e talento, e, frequentemente, imprimir uma marca no meio em que vive.
Acontece, também, que a liberdade, filha e mãe da racionalidade e do espírito crítico, coloca nos ombros do ser humano uma carga pesada: ter de decidir por si mesmo o que lhe convém e o que o prejudica, fazendo face aos inúmeros desafios da existência. Trata-se de um fardo demasiado pesado para muitos homens. E isso ajuda a perceber retrocessos, sucumbindo ao “apelo da tribo”, tendo em conta a atração daquela forma de existência em que o indivíduo, escravizando-se a uma religião, doutrina ou caudilho que assume a responsabilidade de dar resposta por ele a todos os problemas, evita o compromisso árduo da liberdade e a sua soberania de ser racional. O medo da mudança, do desconhecido, da responsabilidade ilimitada - consequência do espírito crítico, da racionalidade e da liberdade - faz com que a sociedade fechada, adotando as aparências mais diversas (a do futuro, a de um mundo sem classes, a da cidade de Deus encarnada, ...) sobreviva até aos nossos dias, com formas equivalentes ao obscurantismo e gregarismos da sociedade primitiva.
O liberalismo é, portanto, incompatível com qualquer forma de dogmatismo e sectarismo. Isso constata-se, desde logo, pelo facto de albergar correntes e perspetivas diversas. Smith, Hayek, Mises e Friedman, por exemplo, todos eles pensadores liberais, tinham ideias bem diferentes quanto ao funcionamento da economia (Vargas Llosa chega a incluir Keynes no lote dos pensadores liberais, apesar da sua defesa do Estado enquanto regulador da economia.
O liberalismo recusa as ditaduras e os regimes totalitários. O regime ditatorial está interessado no exercício de um poder autoritário (e, muitas vezes, em roubar). O totalitário (embora também possa roubar) tem ideias que considera verdades absolutas e faz, por isso, esforços inauditos para as inculcar no público, convencendo-o, através de propaganda, de que aquelas ideias são as suas, as que o povo sempre ansiou, apesar de não o saber de forma clara. E é tanto mais irrefutável quanto mais ficarem abolidas todas as ideias contrárias àquelas que esgrime para justificar a sua política, sem vias de expressão possível, censuradas nos meios de comunicação, erradicadas dos planos pedagógicos, condenadas nas aulas universitárias, nos livros, revistas, jornais, rádios e canais de televisão. No regime totalitário, o conhecimento passa a ser, como na teologia, um ato de fé. A verdade deixa de ser algo independente, um produto da investigação científica ou intelectual, e passa a ser algo fabricado - na maior parte dos casos, uma mentira apresentada como verdade por razões políticas de controlo do poder.
Para um liberal, os homens, contrariamente à velha crença democrática, não nascem iguais. Isto não significa que proponha um tratamento discriminatório entre os seres humanos; pelo contrário, o liberal defende a necessidade imperiosa de todos os homens serem iguais perante a lei. E é exatamente essa igualdade perante a lei que faz com que surjam diferenças entre os seres humanos - resultam das desigualdades que há de talento, ambição, capacidade de trabalho, criatividade, imaginação, formação, etc. Um liberal sabe, portanto, que a liberdade é inseparável de alguma desigualdade. O que se deve garantir, para ser eticamente aceitável, é que é essa desigualdade apenas reflita as diferenças de talento e esforço dos empreendimentos humanos e não resulte de privilégios ou de uma qualquer forma de discriminação ou injustiça.
UM LIBERAL NÃO É UM CONSERVADOR
O desígnio de um conservador é ditado pelo medo da mudança e do desconhecido, pela sua tendência natural favorável à “autoridade”. Tende a ser benévolo para com a coerção e com o poder arbitrário, que pode chegar a justificar se, usando a violência, acreditar que atinge “bons fins”.
Isto estabelece um abismo intransponível com um liberal, para quem nem os ideais morais nem os religiosos justificam, alguma vez, a coerção (algo em que acreditam tanto socialistas como conservadores). Por outro lado, estes costumam culpar a democracia por todos os males de que a sociedade sofre.
Os conservadores, manietados pelas ideias herdadas de um tempo passado, veem na própria ideia de mudança e de reforma uma ameaça para os seus ideais sociais. Por isso, os conservadores são frequentemente obscurantistas, isto é, retrógrados em matéria política.
Também costumam ser nacionalistas, não entendendo que as ideias que estão a mudar a civilização não conhecem fronteiras e que, portanto, valem por igual em diferentes culturas e geografias.
Um conservador dificilmente entende a diferença, clara para os liberais, entre nacionalismo e patriotismo.
O patriotismo, segundo um liberal, é um sentimento benfeitor, de solidariedade e de carinho para com a terra em que nasceu, os seus antepassados, a língua que fala, a história que os seus viveram, portanto, algo perfeitamente saudável e legítimo.
O nacionalismo, em contrapartida, é uma paixão negativa, uma perniciosa afirmação e defesa do próprio contra o estrangeiro, como se o nacional constituísse por si só um valor, algo superior. É, portanto, uma ideia que é fonte de racismo, de discriminação e de teimosia intelectual.
Liberais e conservadores partilham uma certa desconfianca para com a razão e a racionalidade; um liberal está consciente de que não dispõe de todas as respostas e de que não é certo que as respostas que tenha sejam sempre as mais justas e certas. Para ele, a dúvida constante e a autocrítica são indispensáveis em todos os campos do saber.
Um liberal costuma ser um cético, alguém que tem como provisórias até mesmo as verdades que lhe são mais caras. Este ceticismo sobre si próprio é justamente o que lhe permite ser tolerante e conciliador com as convicções e crenças dos outros, por muito diferentes que sejam das suas. Este espírito aberto, capaz de mudar e superar as convicções próprias, é pouco frequente e muitas vezes inconcebível para quem, como tantos conservadores, julga ter alcançado verdades absolutas, invulneráveis a qualquer questionamento ou crítica.
Os conservadores costumam estar identificados com uma religião, enquanto que muitos liberais são agnósticos. O que não significa que sejam inimigos da religião. O espiritual e o terreno são esferas diferentes e é preciso que se mantenha essa independência recíproca. Quando ambas se confundem numa só entidade, costuma rebentar a violência. Os liberais tendem a não favorecer uma religião sobre as outras em termos sociais e económicos e, sobretudo, rejeitam que uma religião se arroguei direito de se impor a alguém pela força.
Por fim, devo socorrer-me Tony Judt que, em Past Imperfect - French Intellectuals, 1944-1956, critica o pensamento político francês por sistemática e historicamente rejeitar o liberalismo. Nessa obra, ele afirma:
“ O liberalismo, como a liberdade, é um conceito problemático e contestado. As suas origens, nas construções racionais do Iluminismo, tornam-no tão vulnerável a tiranias conceptuais (e reais) como outras visões do bem-estar humano: felicidade, socialismo, igualdade. Mas qualquer que seja a capacidade do liberalismo para ficar aquém ou contradizer as suas intenções de base, não pode sequer começar a tornar-se o princípio organizador do pensamento público e da prática política sem que duas premissas sejam inquestionavelmente aceites: em primeiro lugar, a importância e a primazia do indivíduo; em segundo lugar, as necessárias e desejáveis complexidade, pluralidade e indeterminação da vida política.
O liberalismo é obrigatória e necessariamente indeterminado. Não resulta, portanto, de um qualquer projeto liberal para a sociedade. Tem antes a ver com uma sociedade em que a turbulência, a desarrumação, a confusão e a abertura da política mpedem a aplicação de projetos de grande escala, por muito racionais e ideais que sejam. Sobretudo, se forem racionais e ideais.
Uma democracia liberal consiste e assenta num desordenado compromisso entre reivindicações que concorrem entre si, sendo a sua consistência o resultado de interferir menos com as questões de cada um enquanto se esforça por ir ao encontro das necessidades e da defesa dos interesses de todos.
Voilà!
Vila do Conde, 8 de junho de 2020
Fontes:
Mario Vargas Llosa (O apelo da tribo)
Tony Judt (Past Imperfect, French Intellectuals, 1944-1956)