O NATAL CAUSA NOVA RUTURA ENTRE JOACINE E RUI TAVARES
O Correio da Manhã teve acesso, em exclusivo, ao email enviado por Joacine Katar Moreira a Rui Tavares, onde a deputada manifesta completo repúdio por uma mensagem enviada pela Direção do partido a todos os militantes, desejando “FESTAS FELIZES”. Reproduzimos, na íntegra, a missiva, onde a deputada exibe a sua total discordância e chega mesmo a acusar a Direção do Livre de desviacionismo, pois o seu conteúdo é, em si mesmo, todo um programa.
O CM apurou, de resto, que o conteúdo do email foi revisto e corrigido por Boaventura Sousa Santos, que se recusou a prestar declarações quando contactado.
Caro Rui Tavares,
Foi com total estupefacção que recebi o e-mail da Direção, desejando a todos os militantes “FESTAS FELIZES”. Não foram estes os princípios programáticos que orientaram a minha adesão ao LIVRE e os pressupostos de tal saudação estão nos antípodas das perspectivas epistemológicas que me animam. Passo a explicar porquê.
Começo pela expressão “FESTAS”.
A ideia das festividades natalícias decorre de uma crença em metanarrativas (grandes narrativas, Rui), em formas universais de legitimação que nós, pós-modernos, recusamos. Até concedo que o Natal e o espírito que o acompanha têm o mérito de derrubar as fronteiras entre cultura popular e erudita. Do Natal dos Hospitais aos concertos de música erudita, somos confrontados com tudo. Mas isso não me pode fazer esquecer que os valores internacionalmente difundidos e aceites do Natal (e isto é decisivo, Rui) são diametralmente opostos aos princípios pós-modernos em que me revejo: todo o conhecimento é parcial, local e específico. Logo, exclui o conhecimento, a estética e a moral que se pretendam universais e ahistóricos, sempre carregados e imbuídos de interesses normativos e de poder. Nesta época de Natal, o que dizer das comunidades que não sabem quem é Jesus, desconhecem a tradição católica, não acreditam na conceção imaculada e valorizam outros mitos e explicações sobrenaturais? No mundo pós-moderno em que vivemos, Rui, as certezas e universalidade do Natal e da criança Jesus há muito que deveriam ter sido substituídas por vivências sem referentes e sem pontos de ancoragem. E é esta falta de centro, com a flutuação de significados, que deveria ser celebrada, em vez da unanimidade em torno de uma qualquer cama de palhas, com todo o consumismo imperialista e neoliberal que inevitavelmente a acompanha. Todas as formas de representação cultural têm uma cumplicidade com o poder e a dominação, Rui. TODAS!
A própria palavra FESTAS tem de ser entendida à luz da desconstrução da linguagem que nós, pós-modernos, há muito temos vindo a realizar. A linguagem, Rui, não é inocente. Enquanto sistema de significação faz bem mais do que descrever e referir. Tenho de invocar Lacan, Foucault, Derrida e Lyotard?
O que é uma festa, Rui? Quem o define? Como se comemoram as festividades? E quem não as subscreve? O que é uma não-festa? O que me impede de não estar em festa? Como exercer esse direito numa cultura de imposição normativa de poder em que me devo sentir festiva?
Percebes agora a complexidade do assunto, Rui? Percebes agora as implicações dessa tua saudação ao partido?
Na qualidade de mulher, a situação agrava-se. A minha feminilidade exige perspectivas e abordagens que permitam pluralidade e diversidades, em vez de unidades bacocas e universais. Ora, o Natal faz parte do pensamento ocidental, cuja tradição resulta de hierarquias em que as preocupações masculinas são universais e as femininas específicas e parciais. Por que razão há um menino Jesus, Rui? Uma menina seria impossível, como sabes. Por que razão a imaculada conceição é feminina? Por que razão exulta o povo (manipulado) com essa conceção sem mácula?
A resposta é simples: a representação feminina está associada a sujidade, desprezo e mácula, Rui. No mundo ocidental, a valorização da racionalidade, do abstrato e da cultura resultam de uma definição masculina da verdade e do consensual, enquanto que se associa ao feminino os elementos desprestigiados - o irracional, o objeto e a natureza. Portanto, assim como o racionalismo é masculino, também as festividades de Natal são anti-femininas.
Enquanto negra, o fenómeno das festas natalícias roça o insulto, pois assume níveis de gritante opressão. Tanto mais opressor quanto subtil, porque é uma dominação insidiosa. São muitos os historiadores a reconhecer, de resto, que Jesus, a existir, seria um judeu negro.
Termino a análise das “FESTAS” dizendo-te isto, Rui: as crenças nas sociedades e comunidades não-ocidentais são secularmente subordinadas ao imperialismo do gosto e dos credos das sociedades ditas desenvolvidas, liberais e capitalistas.
E há nesta tua saudação festiva uma parte, inequívoca e nada despicienda, que deriva dos valores do Iluminismo, valores esses que nós, pós-modernos (porque nada incautos e, sobretudo, muito reflexivos) condenamos há já muito tempo nos corredores das faculdades de ciências sociais e humanas. As grandes narrativas que sustentam e dão corpo a esses valores iluministas beneficiam uma minoria (branca, ocidental, masculina, liberal, capitalista e imperialista) à custa dos habituais oprimidos - as mulheres, os negros e os pobres.
Por isso, Rui, repudio veementemente a expressão FESTAS porque racista, xenófoba, imperialista, homofóbica e neoliberal.
Agora, centremo-nos no adjetivo “FELIZES”
À partida, sendo pós-moderna, deveria satisfazer-me este teu desejo, pois sugere auto-referenciação. Apesar das tentativas neoliberais e capitalistas nesse sentido, com os rankings dos países, os que, como eu, estão imbuídos da elevação reflexiva do pós-modernismo sabem que não há um conceito único de felicidade. Esta é um espaço irredutível de conquista e de orientação individuais, livre, portanto, das imposições da sociedade atual e da sua deriva neo-colonialista dos sentimentos e das emoções. Uma felicidade à Carl Rogers, com o seu humanismo psicológico, numa ótica de auto-descoberta, de humanização, de autenticidade e de total liberdade face à prisão do comportamentalismo positivista e do consumismo neoliberal. Nesta ótica, na minha tripla qualidade de mulher, negra e com NEE, deveria ter o incontestado direito de poder conquistar, no mínimo, os 3 níveis específicos e únicos de felicidade que me aprouvesse. Um para condição do meu self.
Acontece que todo este discurso mais não resulta do que de uma enorme ilusão, Rui. Como tinhas obrigação de saber.
O humanismo psicológico não elimina o conceito de felicidade imposto pela sociedade capitalista, imperialista, homofóbica e racista que nos oprime, Rui! Apenas altera as condições de lá chegar. Carl Rogers e os psicólogos humanistas, com os seus elogios ao indivíduo e a defesa dos processos de auto-descoberta, acabaram por ser utilizados como poderoso instrumento de opressão. Vê, por exemplo, as práticas empresariais, com os coachings, as competências e as abordagens New Wave que, afinal, mais não são do que formas alternativas de utilização abusiva do poder e de perpetuação de um capitalismo selvagem que serve os mais ricos e poderosos, em detrimento dos que mais necessitam.
Digo-te mais, Rui. Este “atrativo” humanismo psicológico, sob a aparente capa de inocuidade (a centragem na pessoa, o auto-direcionamento, o empowerment, o auto-controlo, as sugestões do “olha para ti próprio” e “encontra o teu verdadeiro eu”), é bem mais nefasto do que o positivismo comportamentalista. A disciplina e a normatividade passam a ser auto-impostas! Entregar a responsabilidade da felicidade às pessoas significa, aparentemente, aumentar-lhes o grau de liberdade. Ora, quanto mais liberdade temos e mais responsabilidades assumimos, maior a probabilidade de falhar, pois fazemos parte de uma sociedade onde o espaço de autonomia está muito circunscrito e limitado. Ou seja, os que não conseguem ser felizes passam a ser diretamente responsabilizados por isso, ficando a sociedade - opressora, normativa, racista, imperialista, capitalista, neo-liberal e homofóbica - ilibada de qualquer culpa. Sob o manto ilusório do alargar da liberdade, estamos, afinal, a conseguir níveis superiores de opressão.
Eis uma analogia, para que melhor entendas, Rui: se a felicidade comportamentalista que as sociedades nos impõem é a polícia, esta felicidade auto-responsabilizadora é uma polícia secreta.
Daí que recuse, também, esse desejo de felicidade, pois sei que não constitui senão mais uma forma de opressão, agravada pelo facto de ser mulher, negra e portadora de NEE.
Sugiro, portanto, que envies novo email aos colegas de partido, retratando-te e assumindo o desviacionismo da saudação. Do mesmo passo, repudias os valores do Iluminismo e reiteras o teu empenho na luta das minorias (mulheres, negros, pobres, refugiados, ...), tendo cuidado para que o texto não seja conspurcado com os falsos neutros dos plurais masculinos. Sugiro, até, que, a este respeito, envies uma mensagem política clara, manifestando inequívoco apoio à causa dos mais de 70 géneros já identificados, tão marginalizados que (ainda) são nesta sociedade alienada que separa as pessoas com base no sexo. A teres dificuldade em nomeá-los a todos, pede ajuda ao Rafael, o meu assessor.
Cumprimentos,
Joacine