Tendo prestado atenção aos comentários feitos a propósito da resolução europeia sobre o nazismo e o comunismo (na maior parte dos casos, julgo, produzidos sem a ler), fui juntando paciência para não reagir epidermicamente e, ao mesmo tempo, resgatando leituras há muito consumidas.
Comecemos pela questão da legitimidade da resolução e dos sistemas que relaciona. A comparação dos dois sistemas não visa, como alguns afirmam, relativizar o nazismo e o Holocausto. Antes pretende analisá-los em relação com....
Em momento algum se poderá depreender, das linhas que se seguem, qualquer alinhamento com argumentos que visam negar ou suavizar os brutais crimes do nazismo ou, sequer, sugerir, como alguns fazem, que o bolchevismo (“a origem de todos os males do século”, segundo eles) constituía uma ameaça que justificou a reação alemã.
Portanto, sendo criticável qualquer tentativa de identificação dos dois modelos, nazismo e comunismo, pode e deve-se compará-los. Comparar permite aferir, qualificar, distinguir, especificar e, portanto, estabelecer o caráter singular de determinado evento, ator ou fenómeno. Daí a sua utilidade.
Curiosamente, não é esta a querela que a resolução europeia deveria suscitar, pois o que aí se equipara é o nazismo e Hitler com o regime estalinista. E, desse ponto de vista, a associação é bem fácil de sustentar.
Faça-se, então, uma análise comparativa. Aproveitando o ensejo e mencionando o comunismo sempre que justificável, eis uma análise possível às semelhanças e diferenças entre nazismo e bolchevismo (o terror e o totalitarismo soviético não se resumem a Estaline).
Indo ao encontro do que, por alturas da II GG, o Wall Street Journal publicou, afirmando que a principal diferença entre Estaline e Hitler era o tamanho do bigode, comecemos, então, pelas semelhanças.
Nazismo e bolchevismo nasceram com a guerra e ambos foram reações à mundialização.
Ambos constituíram tragédias de dimensões planetárias e crimes contra a humanidade.
Bolchevismo e nazismo agiram em nome de valores antidemocráticos, antimorais e anti-humanos.
Tendo pontos de partida diferentes, ambos põem em prática uma dinâmica totalitária, que se caracterizava por uma hostilidade declarada às liberdades do indivíduo e que tinha como contraponto a democracia liberal. Toda as liberdades de uma sociedade liberal - liberdade de expressão, religião, direito e lei, expressão individual - não tinham qualquer valor face às necessidades do Estado. E eram Estaline e Hitler quem, em cada um dos países, conheciam e determinavam quais eram essas necessidades. A partir da violência geral, característica da sociedade russa, e da violência particular instaurada por Lenine e os bolcheviques, criou-se uma dinâmica de terror, onde a ideologia de origem fica diluída e onde todos são, à vez, carrascos e vítimas. Diferentemente do terror ditatorial, que apenas ameaça adversários autênticos, o terror totalitário chega a cidadãos inofensivos e sem opiniões políticas. De referir, no entanto, que havia já no pensamento de Marx um lado bastante violento e radical: quem o contradizia era encarado como inimigo a eliminar (Proudhon e Bakunin assim o afirmavam, nas conversas que tinham). Fica, inclusive, a dúvida de saber se o apoio de Marx à Comuna de Paris, em 1872, responsável por várias atrocidades, resulta de uma reação conjuntural e oportunista ou de uma crença profunda na ideia de que os fins justificam os meios.
Nenhum dos movimentos, nazi ou bolchevique, era originariamente nacionalista. Como Hannah Arendt afirma, a propaganda nacionalista nazi “era dirigida aos simpatizantes e não aos membros convictos do partido. Ao contrário, este jamais perdeu de vista o alvo político supranacional. O nacionalismo nazi assemelha-se à propaganda nacionalista da União Soviética, que também é usada apenas para alimentar os preconceitos das massas. Os nazis sentiam genuíno desprezo, jamais abolido, pela estreiteza do nacionalismo e pelo provincianismo do Estado-nação. Repetiram muitas vezes que o seu movimento, de âmbito internacional (como, aliás, é o movimento bolchevique), era mais importante para eles do que o Estado, o qual necessariamente estaria limitado a um território específico”. Também o comunismo era um movimento internacional.
No entanto, ambos os regimes se alicerçaram, sempre que necessário, no reforço do nacionalismo.
Nazismo, bolchevismo e comunismo opunham-se à burguesia.
Apesar do seu ódio recíproco, havia entre o comunismo e o nazismo um denominador comum: o coletivismo.
Eram também ambos antiliberais. Goebbels, por exemplo, frequentemente realizou discursos conciliatórios com os comunistas, pedindo-lhes que reconhecessem que os principais objetivos dos nacional-socialistas e comunistas de derrubar o capitalismo e alcançar o socialismo eram os mesmos - e que a única diferença significativa entre ambos era que os comunistas acreditavam que o socialismo poderia ser alcançado em nível internacional, enquanto os nacional-socialistas acreditavam que ele poderia e deveria ocorrer em nível nacional. As diferenças entre o nacional-socialismo e o comunismo resumiam-se a uma escolha entre a ditadura do Volk e a ditadura do proletariado.
Ambas as ideologias são essencialmente deterministas: determinismo racial para os nazis e determinismo económico para o marxismo. Em ambas se acredita que o homem não escolhe livremente o seu destino, antes este lhe é imposto pela natureza ou pela história. E daí retiram a conclusão de que existem inimigos objetivos e que, portanto, certas categorias de seres humanos podem e devem ser legitimamente eliminados. naompelo que fizeram ou sequer pensaram, mas pelo que são. Apenas diferem, a este respeito, pela definição das categorias: para os nacional-socialistas, os judeus, os ciganos, os polacos e ainda os doentes mentais; para os bolcheviques, os kulaques, os burgueses e os desviacionistas do Partido Comunista. No fundo, é a mesma coisa - recusam ambos o homo economicus do capitalismo, o homem egoísta, individualista, prisioneiro da sua ilusão da liberdade, em benefício de um homo faber - um homem a fazer. O homem comunista estava a ser construído pelos bolcheviques e o nacional-socialista perfeito pelos nazis. E é este homem a fazer que justifica a liquidação de tudo o que é ineducável e justifica, num caso, a Gestapo e, no outro, a NKVD.
O fascismo e o comunismo pretendiam interpretar as leis da história com as suas políticas que visavam estabelecer sociedades perfeitas. Estes dois regimes praticavam uma “engenharia utópica” que era mais um ato de fé, uma religião, do que uma filosofia racional, ou seja, algo essencialmente anticientífico.
Os dois sistemas de pensamento (e aqui podemos, também, incluir o comunismo) colocavam, no centro da sua visão do mundo, a imagem do “inimigo”. Nos casos de Hitler e dos bolcheviques, o inimigo nada tinha a ver com o adversário político tradicional, mas era antes um inimigo absoluto, irredutível, cujo extermínio era necessário para assegurar a sobrevivência. No caso de Hitler, a conspiração judaico-bolchevique e, após a liquidação dos comunistas em 1933/34, apenas o judeu. Com Lenine e os seus sucessores, o capitalista ou o kulak (resumindo, o burguês). E, em ambos os casos, o ódio foi um dos motores do totalitarismo e do massacre de vítimas, não tanto pelo que tinham feito (resistir ao regime), mas pelo que eram (judeus ou kulaks).
Nazismo como comunismo orientavam-se por ideais de ordem e de pureza. Prometiam uma sociedade ordenada, onde nada fosse deixado ao acaso, propósito com o qual se comprometiam removendo tudo o que colidisse com o postulado da pureza. Esta tendência revelou-se totalitária até ao extremo: no caso do nazismo, condensando a complexidade do problema na "pureza da raça"; o comunismo bolchevique na pureza da classe.
Ambos os regimes apresentaram um forte antissemitismo, de resto, sentimento que vinha na esteira dos tempos. Com Hitler, esse antissemitismo foi público, intencional e estratégico. Estaline assumiu-o de forma mais reservada e menos conhecida, mas igualmente brutal. Dos 5 milhões de judeus exterminados, cerca de 1,3 milhões foram fuzilados na URSS e, principalmente, na Jugoslávia. É forçoso que se refira, no entanto, que a Alemanha de Hitler se tornou o epicentro da hostilidade contra os judeus, juntando o antigo antijudaísmo, o antissemitismo e o racismo biológico.
O Estado era, para Hitler como para Estaline, um meio para um fim. Hitler repetiu-o muitas vezes, sendo o fim a preservação da raça. Do mesmo modo, segundo a propaganda bolchevique, o Estado era apenas um instrumento na luta de classes. A “teoria estatal” de Estaline era um complicado imbróglio: “Somos a favor da morte do Estado e, ao mesmo tempo, defendemos o fortalecimento do proletariado, que representa a mais forte e poderosa autoridade entre todas as formas de Estado que já existiram até hoje. O maior desenvolvimento possível do poder do Estado com o fim de preparar as condições para a morte do Estado: eis a fórmula marxista”.
A Alemanha nazi e a Rússia Soviética foram dois regimes assentes em propaganda. Depois da tomada de poder, a rua tornou-se, com Estaline, um lugar de espetáculo. O mesmo aconteceu com Goebbels que, entre outras iniciativas, estabeleceu mesmo calendários e feriados: em janeiro, celebrava-se a ascensão ao poder; em fevereiro, festejavam-se os heróis; abril era o mês do aniversário do Fuhrer, etc. Para Goebbels, a dogmática do partido contava menos do que a fusão do povo alemão. Por isso, controlou a rádio, os jornais, o teatro e, sobretudo, o cinema (nenhum político passou tanto tempo em estúdios de montagem - duas noites por semana durante a guerra). Para além disso, Goebbels acompanhava de perto a preparação dos noticiários, neles incluindo pequenos sketchs que dão lições de “civismo”. E utilizava magistralmente, em forma de exorcismo, a contra-informação, uma das suas principais técnicas como Ministro da Educação do Povo e da Propaganda. Por sua vez, na URSS, aos desfiles e festas históricas (vitória de outubro, a Comuna de Paris), somavam-se as festas profissionais (dos geólogos, dos professores). A falsificação, no país dos sovietes, incidia na ocultação dos erros ou na substituição de uma visão “burguesa” da história por uma análise progressista. Retiraram autores da Biblioteca socialista (Dostoiévski, Trotsky e Bukharin, por exemplo), por terem “enganado e traído”. Para o povo, as bibliotecas tinham apenas as obras definidas como justas. Com Estaline, a falsificação fraudulenta (das notícias como da História) tornou-se uma arte. Estas eliminações/deturpações não eram apenas acertos de contas, pois, segundo Estaline, os homens “apagados” enganaram-se e, dado que o partido encarnava a verdade da História, era justo e até desejável que desaparecessem da memória. Com menos margem de manobra junto de Estaline, Jdanov foi o Goebbels da URSS - o realismo socialista tinha a função de glorificar o regime, educar e instruir. A margem de autonomia de Jdanov era menor pois Estaline, a partir de determinada altura, impõe os seus gostos pessoais, considerando-se (e quem o contrariaria?) competente em linguística, biologia, história, literatura, cinema, etc. A seguir à guerra, por exemplo, Estaline exigia ver todos os filmes antes da sua projeção pública. E, no ano que antecedeu a sua morte, três quartos dos filmes realizados foram proibidos e não saíram das prateleiras.
Como é apanágio dos regimes totalitários, nos dois casos (nazismo e bolchevismo) havia um enorme fascínio pelos líderes, que gozavam de imensa popularidade. Os chefes totalitários, enquanto vivos, sempre comandaram com base no apoio das massas. Hitler não poderia ter mantido tal ascendência sobre a população, sobrevivido a tantas crises internas e externas e enfrentado tantos perigos de lutas intrapartidárias se não tivesse contado com a confiança das massas. O mesmo se aplicava a Estaline.
No nazismo como no bolchevismo, essa popularidade dos líderes junto das massas não se podia atribuir apenas (nem mesmo, sobretudo) ao sucesso de uma magistral e mentirosa propaganda. Os nazis estavam convencidos de que o mal tinha uma atração mórbida e os bolcheviques diziam não reconhecer os padrões morais comuns, afirmação que, dentro e fora da Rússia, se tornou um dos pilares da propaganda comunista. Ora, e como afirma Arendt, a experiência demonstrou que o valor propagandístico do mal e o desprezo geral pelos padrões morais exercem enorme atração junto da ralé.
Nos dois totalitarismos, foi desconcertante o altruísmo dos seus adeptos. Para além de as convicções de nazis ou bolcheviques não serem abaladas pelos crimes (fossem quais fossem) cometidos contra os seus inimigos, aqueles também não vacilavam quando os respetivos regimes começaram a devorar os próprios filhos e nem mesmo quando eles próprios, nazis ou bolcheviques, são vítimas da opressão, incriminados e condenados, expulsos do partido ou enviados para campos de concentração. No caso do estalinismo, “O zero e o infinito”, de Arthur Koestler, e “The God that failed”, obra escrita por vários ex-comunistas, ilustram-no bem.
Os totalitarismos bolchevique e nazi descobriram um meio de subjugar e aterrorizar eliminando, para efeitos de imagem, a distância entre governadores e governados, convencendo todos de que não tinham qualquer desejo pelo poder. Hitler e Estaline eram meros funcionários das massas que dirigiam e não indivíduos sedentos de poder que impunham as suas vontades tirânicas e arbitrárias. Sem eles, as massas perdiam a sua representação e ficariam reduzidas a bandos amorfos; sem as massas, os líderes seriam nulidades.
Em ambos os casos, o fascínio e a popularidade dos líderes caiu juntamente com o regime (ao ponto de significarem muito pouco). Esta é, de resto, uma das características dos regimes totalitários, que só conseguem manter-se no poder enquanto estiverem em movimento e o transmitirem a tudo o que os rodeia. O facto de haver, passados todos estes anos, apenas uns quantos saudosos e defensores, de Hitler como de Estaline, sem expressão política significativa, não significa, contudo, que as massas estejam curadas da ilusão totalitária.
Embora Hitler e Estaline se detestassem, admiravam-se mutuamente. O único homem por quem Hitler sentia respeito incondicional era por Estaline, o génio. Ainda nos inícios dos anos 20, Hitler reconhecia a afinidade entre os regimes comunista e nazi: “No nosso movimento, os dois extremos tocam-se - os comunistas da esquerda e os oficiais e estudantes da direita (...). Os comunistas foram os idealistas do socialismo”. Paralelamente, sabemos, desde o discurso de desestalinização de Kruchtchev perante o Partido em 1956, que Estaline também só confiava num homem e que esse homem era Hitler. O que os unia era o facto de ambos serem detentores de uma ideologia. Rohm, o chefe das SA, reconhecia, na década de 20, que muito os separava dos comunistas, mas que respeitavam a sinceridade das suas convicções e a sua disposição para sacrifícios em benefício da sua causa. Hitler, em 1943, defendia que os países que têm uma ideologia ostentam uma vantagem sobre os Estados burgueses e que no Leste encontravam um oponente que também alimenta uma ideologia, ainda que errada.
Comunistas como fascistas alimentavam um projeto de “um homem novo”, num futuro mais exaltante do que as reformas consideradas troca-tintas das formações políticas defensoras do parlamentarismo.
Nazismo e comunismo foram uma espécie de religião e de ciência enviesadas: pretendiam ser científicos (as raças de um lado e as classes de outro) e, ao mesmo tempo, faziam apelo a uma lealdade, a um culto do sacrifício e a um culto do líder que eram aspetos tomados emprestados da religião. Há mesmo quem afirme que o comunismo é uma pseudociência e o nazismo uma pseudoreligião.
Em ambos os regimes, a denúncia era incentivada e uma prática do quotidiano.
Nazismo como comunismo tiveram a adesão de um grupo de intelectuais, cuja responsabilidade teve a exata medida da sua notoriedade.
Ambos se caracterizam por episódios e aspetos delirantes. Estaline decapita o seu próprio exército, a sua própria elite (tem mais medo do seu povo do que de Hitler), lançando-se em grandes purgas que prejudicam e desestabilizam o país. Hitler, por seu turno, quando toma consciência de que a guerra não pode ser ganha, considera mais importante destruir judeus do que lutar contra os inimigos. Estes exemplos revelam o paroxismo irracional de ambos os regimes.
Atente-se, agora, nas dissemelhanças, que têm significado suficiente para que se perceba que, entre as duas ideologias, não se trata apenas de diferenças de grau:
O nazismo tinha como emblema a desigualdade e a violência. Portanto, uma doutrina com essência e intenção criminosas. Por seu lado, o comunismo, propondo a supressão do Estado, tem por base um ideal universalista e igualitário.
A ideologia comunista e bolchevique afirmava pretender o bem de toda a humanidade, enquanto o nacional-socialismo era mais egoísta, pretendendo exclusivamente o bem dos alemães. Na sociedade sem classes de Marx, a tornar-se realidade, todas as classes se dissolveriam no comunismo, o que não seria o caso da sociedade nacional-socialista.
Sendo certo que ambas as ideologias (nazismo e comunismo) continham uma doutrina de salvação (no caso do nazismo, os mil anos do reinado do Terceiro Reich), a sociedade sonhada pelo comunismo está aberta a todos os homens e baseia-se na lei universal, enquanto que a dos nazis se encontra confinada a uma nação e identificada com uma raça. A História, tal como vista por Hitler e seus seguidores, está dominada por uma luta entre raças em tudo comparável a lógicas de vencedores ou presas e, portanto, o seu objetivo último tem pouco ou nada que ver com a realização do destino humano.
O totalitarismo bolchevique foi mais abrangente e completo do que o nazismo, mais focado num grupo (ainda que mais radical). Na Alemanha nazi, quem fosse judeu ou doente mental era pura e simplesmente destruído e quem resistisse ao regime era colocado num campo de concentração. Mas os alemães apolíticos, que se entretinham apenas com as suas profissões e fossem gerindo as suas vidas, podiam sobreviver. Não havia uma penetração tão efetiva e sistémica da política em todas as esferas da vida humana e do pensamento, tal como o que veio a ser característico do bolchevismo (em particular, no período estalinista). Deste ponto de vista, a prática do terror soviético é mais “avançada” do que a nazi, pois a sua arbitrariedade não é determinada por diferenças raciais. A aplicação do terror na URSS segundo a classe (origem socioeconómica) foi rapidamente abandonada logo a seguir à revolução - qualquer pessoa podia, subitamente, tornar-se vítima de terror policial.
Sendo ambos os sistemas antagónicos à burguesia, o comunismo pretendia a igualdade total e o fim da desigualdade resultante do poder do dinheiro, enquanto que o nazismo valorizava uma elite aristocrática e estética, desprezando a enfadonha burguesia e manifestando uma nostalgia romântica por heróis.
O nazismo foi a reação, qual canto de cisne, de um grupo tradicional hierárquico guerreiro contra o espírito da universalidade anunciado pelo cristianismo, pela burguesia e, mais tarde, pelo marxismo. É a afirmação da elite combatente, do homem que se realiza, acima de tudo, no combate e na guerra. A voz da força e da crueldade, que se opõe à voz dos fracos. “Tanto pior para os fracos“, grita o nazismo. É uma ideologia que se liberta de todos os constrangimentos morais e institucionais que estão na base da civilização.
No respeitante ao inimigo, ainda que Estaline tenha deportado povos e etnias inteiros e que tenha havido, crescentemente, dimensões étnicas e racistas nas suas obras de destruição (o genocídio no Camboja foi uma terrível mistura de racismo e ideologia), o comunismo visava desembaraçar-se do inimigo de classe (os burgueses), enquanto que o verdadeiramente característico e singular do nazismo é o delírio obsessivo antissemita. Num caso, a raça. No outro, a classe.
O Gulag e os campos de concentração russos obrigavam os presos a trabalhar até à morte, em condições horríveis e degradantes. Mas a empresa de negação da humanidade do nazismo é, desse ponto de vista, singular. Mesmo que Estaline tenha gerado mais mortes do que Hitler (e Mao mais do que os dois juntos), Hitler era mais radical, pois pretendia destruir completamente um povo, que considerava não ter o direito de existir.
Tendo ambos sido responsáveis por um número aterrador de mortes, cada regime (nazismo e bolchevismo) tinha o seu estilo e a sua mitologia própria. De um lado, uma purificação racial levada a cabo por uns sábios torcionários; do outro, uma purificação política no quadro de uma planificação que assumiu contornos de demência.
O regime de dominação nazi é biológico, totalmente pensado a partir de conceitos das ciências naturais e de um assumido darwinismo social. O projeto nazi era internacional e visava criar um espaço onde pudesse vingar um biótopo adequado à raça germânica, às suas necessidades e ao seu crescimento futuro. E isto deveria ser feito num curto espaço de tempo - era preciso matar muito e rápido, pois a Alemanha de então enfrentava problemas de baixa natalidade e elevados níveis de mortalidade. Há, portanto, um sentido biológico e escatológico que não pode ser comparado com a violência em massa de Estaline. A racionalidade do nazismo era biológica e não política, como a de Estaline. O comportamento de Hitler e do seu séquito no final da guerra ilustrou bem esta característica - a solução final teve continuidade até ao final da guerra, mesmo quando esta se revelava perdida, porque, mesmo que o Reich perdesse a guerra, os judeus não poderiam beneficiar da derrota. A solução final continua a ser uma especificidade nazi, tanto pelo ritmo e intensidade de assassínio em massa que constitui, como pelas categorias que a fundamentam.
Embora os dois regimes (nazismo e bolchevismo) matassem indiscriminadamente (os documentos enviados a Estaline solicitando autorização para fuzilar mais pessoas, fruto de uma ânsia em agradar ao ultrapassar as metas traçadas, evidenciam bem a lógica industrial na morte - destrói-se como se produz), Auschwitz e outros campos de concentração contêm algo de verdadeiramente inédito, em termos de crueldade, de que são horroroso exemplo as experiências médicas realizadas com presos. Por isso, e embora os crimes bolcheviques se possam comparar aos do nazismo, em amplitude como ferocidade, a comparação deve parar aí, uma vez que o nazismo se distingue por dois aspetos essenciais: o caráter racial do crime e o método industrial que o caracteriza.
As mortes nos campos de concentração soviéticos, em muitos casos, resultavam mais de negligência criminosa, indiferença, acaso, abandono, pragmatismo, cinismo e até escassez de recursos do que exclusivamente de uma intenção e vontade sistemáticas de extermínio. Os campos soviéticos, como afirma Hannah Arendt, combinavam o abandono com um trabalho forçado caótico, enquanto que, nos campos nazis, o conjunto da vida foi minuciosa e sistematicamente organizado para gerar enormes tormentos.
Explicitadas as semelhanças e diferenças entre nazismo e bolchevismo, impõe-se uma primeira conclusão: é completamente absurdo contabilizar mortes ou escolher entre estratégias de extermínio, de forma a poder afirmar qual dos sistemas se revelou pior. Como Margarete Buber-Neumann (esposa do líder comunista alemão Heinz Neumann e que sofreu os tormentos dos dois sistemas) bem explica, ”é difícil decidir o que é menos humano - se gasear as pessoas em 5 minutos ou matá-las pela fome num espaço de 3 meses”.
E quem considera que o verdadeiro terror na Rússia se resume a Estaline, referindo as purgas de 1936 a 1939, está, na prática, a afirmar que o assassínio de “bons comunistas” conta como crime bem pior do que, por exemplo, o extermínio de kulaks, iniciado por Lenine e Trotsky. Ou seja, a ideia de Estaline como o “homem mau” do socialismo ajuda a esquecer que o sistema iniciado com Lenine e que durou até Gorbatchev era, em si mesmo, mau..
Os guardiões de cada um dos templos, quando negam, banalizam ou procuram minimizar os crimes praticados “nas suas trincheiras”, mais não fazem, afinal, do que revelar as suas enquistadas preferências ideológicas.
No entanto, subsiste ainda a dúvida: sendo todas estas considerações conhecidas, até porque devidamente analisadas e divulgadas por abundante produção histórica, o que justificou, então, a querela e o extremar de posições? Qual foi a verdadeira questão?
Havendo consenso quanto à enormidade dos crimes cometidos, em quantidade como ferocidade, a verdadeira questão centra-se, afinal, em saber se os crimes do bolchevismo (em bom rigor, a resolução europeia menciona explicitamente Estaline) constituem um desvio à matriz original ou, em contrapartida, se o comunismo constitui, em si mesmo, o fator propulsor de todo o terror totalitário bolchevique.
A este respeito, de um lado e do outro abundam as certezas, com pretos e brancos bem definidos. Pelo meu lado, não saio do cinzento. Explico porquê.
Em primeiro lugar, parece-me algo falacioso os defensores do comunismo virem refugiar-se na ”intenção de origem” para fechar a porta a qualquer comparação com o horror nazi. Defender o comunismo a partir deste argumento contraria mesmo Marx, que considerava que as sociedades não devem ser julgadas pela sua ideologia, mas antes pela vida que proporcionam aos homens. No prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política, Marx afirma que "não é a consciência dos homens que determina a sua existência; pelo contrário, é a sua existência social que determina a sua consciência. Um dos grandes méritos do marxismo (e um significativo progresso da consciência ocidental) foi exatamente ter-se aprendido a confrontar as ideias com o funcionamento social que elas supostamente devem animar. Por isso, considerar que a ideologia (superestrutura) é mais determinante do que a economia (infraestrutura), daria direito, na URSS, a condenação com o Artigo 58.
Já Raymond Aron o afirmava sem rodeios: os marxistas, como todos os homens de ação, sempre tenderam a valorizar as ações mais do que as intenções, as consequências das ações mais do que o seu conteúdo descontextualizado e a influência histórica das ideias e dos comportamentos mais do que as motivações.
Por isso, pergunta Aron, será que a revolução, tal como concebida pelos marxistas - com as suas ideias de coletivização da propriedade, planeamento central e poder do proletariado - e sobretudo a revolução levada a cabo por Lenine - conquista do Estado por um partido minoritário, num país pré-capitalista, com industrialização forcada - levam inevitavelmente a uma sociedade como a soviética, com Estaline?
A resposta que dá é simples: a burocracia, imitando as classes dominantes tradicionais, gera uma hierarquia de poder e riqueza que serve os seus próprios interesses, consome uma grande parte da riqueza nacional e impõe uma ideologia que justifique tudo. Ou seja, produz o equivalente à exploração que o marxismo tanto denunciou durante mais de um século. A planificação centralizada e a propriedade coletiva dos meios de produção acabam inevitavelmente por produzir um estado omnipotente.
Acresce a este conjunto de argumentos que, no bolchevismo como no nazismo, há dúvidas quanto à existência de uma ideologia de base. Quem o afirma é Hannah Arendt, para quem Hitler e Estaline, de modo a poderem impor o totalitarismo e a garantir lealdade total e incondicional, esvaziaram ambos os movimentos de conteúdo e de ideologia.
Hitler, ao organizar o movimento nazi, conseguiu a proeza de libertar o movimento do antigo programa do partido (a que Arendt chama “os 25 pontos redigidos por um economista amador e político maluco”) pois, como chegou a referir publicamente, “Quando tomarmos o governo, o programa virá por si mesmo”. Himmler institucionalizou esta forma de estar com o lema que definiu para as SS: “A minha honra é a minha lealdade”.
Estaline, que tinha a tarefa mais dificultada pela carga mais incómoda do programa socialista do partido bolchevique, esvaziou também a doutrina de todo o seu conteúdo, operando inúmeros ziguezagues na linha partidária comunista e constantes reinterpretações e aplicações do marxismo, tornando impossível qualquer previsão do rumo ou ação que a ideologia ditaria. Com Estaline, o conhecimento do marxismo e do leninismo, por perfeito que fosse, já não servia de guia para a conduta política. Só se servia a linha do partido se se repetisse, cada manhã, o que Estaline havia decretado na véspera.
A concordarmos com esta linha argumentativa, segundo a qual ambos os totalitarismos se encontravam esvaziados de ideologia, com vista a poderem garantir lealdade cega, total e incondicional, o comunismo resulta ilibado de qualquer responsabilidade nas atrocidades bolcheviques enquanto fonte doutrinária e de influência. Do mesmo passo se poria fim ao argumento de a “ideologia nacional-socialista” ter intenções e fundamentos bem mais macabros e desumanos, pois tal ideologia, em bom rigor, nunca existiu. Mesmo que se pretenda considerar os 25 pontos do programa e o Mein Kampf como ideologia orientadora, eles foram rapidamente esquecidos por necessidade do próprio regime.
Com ou sem ideologia de base, há autores que consideram que a pretensão de absoluto e a conceção guerreira de nazismo como de comunismo (entendido a partir dos regimes que o representam - Estaline, Mao e Pol Pot, para não mencionar senão estes) não os permite distinguir. Afinal, a qualidade das árvores mede-se pelos seus frutos.
Foucault, que não ficou conhecido por posições antimarxistas, criticava qualquer “reducionismo teórico” - a falácia de que “se ao menos” uma ideia tivesse sido posta em prática corretamente, os efeitos negativos teriam sido evitados, pois as críticas são desviadas da própria teoria e dirigidas à pessoas que a implementaram. Segundo ele, intenções declaradas e efeitos reais frequentemente diferem, sendo apenas os últimos os que verdadeiramente interessam nas vidas das pessoas. Como ele próprio afirma, “a análise não se deveria ocupar do poder ao nível da intenção ou decisão conscientes. (...) O que se impõe é um estudo do poder no ponto em que se encontra em relação direta e imediata com aquilo que provisoriamente podemos designar por seu objeto, seu alvo, seu campo de aplicação, ali - onde se instala o poder e produz os seus efeitos reais”.
A haver o tal reducionismo teórico, somos tentados a afirmar que quem defende o marxismo com base na pureza das suas intenções quer ter todas as vantagens e nenhum dos inconvenientes.
Recorde-se, também, que nem todos os teóricos e analistas consideram a revolução do proletariado preconizada por Marx como (necessariamente) não violenta. Junte-se a isto o facto de a repressão, a polícia política e os campos de concentração terem começado com Lenine (que, contrariamente a Estaline, não esvaziou o movimento bolchevique do marxismo ou de qualquer conteúdo doutrinário/ideológico). E remate-se recordando, entre outros, Mao, Pol Pot e, ainda, um lunático na Coreia do Norte, que, sob o manto do comunismo e de Marx, revelam os mesmos traços - culto delirante do chefe, terror e poder absoluto. Deste ponto de vista, há, portanto, elementos transversais que não podem ser facilmente descartados e que permitem pensar que Estaline não constitui, necessariamente, um “desvio” do comunismo.
Há, inclusive, um registo histórico que é difícil ignorar. Foi com base na doutrina comunista e na política dos bolcheviques na Rússia que se criou, em 1919, uma organização mundial - Komintern (Internacional Comunista). Esta organização agrupava todos os revolucionários que pretendiam romper com o socialismo tradicional e democrático, impunha uma disciplina severa, quase militar, e operava uma rigorosa seleção dos seus quadros. Todos os partidos afiliados vieram a constituir secções nacionais desta Internacional Comunista.
A partir de 1917, os bolcheviques construíram, assim, pouco a pouco, um sistema comunista mundial assente em: 1) países de regime comunista; 2) poderosos partidos comunistas na oposição; 3) alianças, de Moscovo ou de Pequim, com regimes de partido único ou com movimentos revolucionários em luta com os seus governos.
Por isso, o comunismo, até Lenine uma filosofia social, teve como base uma doutrina, uma organização internacional e uma estratégia mundial fortemente ligada a e condicionada por Moscovo e que se revelou muito pouco recomendável.
É a incontestável unidade deste movimento que justifica a utilização do termo comunista para designar e definir realidades (aparentemente) tão distintas quanto a experiência bolchevique de Lenine e Estaline, a revolução maoista na China, a tomada de poder em “democracias populares”, o comunismo asiático (da Coreia do Norte de Kim Il-Sung ao Vietname de Ho Chi Minh, passando pelo inferno de Pol Pot), ou ainda os golpes de estado transformados em regimes comunistas de Castro em Cuba, Mengistu na Etiópia e mesmo José Eduardo dos Santos em Angola.
Todos estes regimes, partidos, chefes e seus quadros têm como elementos comuns a adesão à doutrina marxista-leninista, o reconhecimento da experiência leninista como fundadora de uma ”luta final” entre o comunismo e o capitalismo imperialista, a aplicação dos mesmos modelos de organização e de funcionamento do poder e, ainda, o facto de a maior parte dos líderes e quadros ter sido selecionada, formada, nomeada e controlada no quadro do Komintern dirigido por Estaline. Os arquivos entretanto tornados acessíveis em Moscovo e na Europa de Leste têm vindo a deixá-lo cada vez mais claro (ficam por revelar os segredos dos arquivos chineses).
Acresce a tudo isto que o comunismo no poder, para além da catástrofe económica que sempre se revelou, dos crimes ambientais que originou, dos ataques e destruição a aspetos culturais e de património da humanidade, destacou-se precisamente como brutal na dimensão humana e na morte. Quando no poder, o comunismo premeditou e organizou o massacre de dezenas de milhões de pessoas, de acordo com modalidades como execução pura e simples, deportação ou encerramento em campos de concentração e, não menos importante, fome (responsável por uma parte importante das vítimas do comunismo).
Estas práticas criminosas, para poderem ter ocorrido, em muito terão beneficiado de uma firme crença no ”sentido da História” e na “necessidade histórica”. Há, em muitas destas práticas (senão mesmo todas), uma lógica transversal de atuação que é difícil de explicar apenas com base em megalomanias paranóicas e distúrbios psicológicos. Desse ponto de vista, não é completamente absurdo associar, às razões explicativas do terror, a adoção de uma filosofia estritamente materialista e histórica que vê as massas como um barro que pode ser trabalhado (aniquilado) como muito bem se entender, à luz de uma promessa de sociedade onde “os amanhãs cantam”. Filosofia essa de contornos quase religiosos (a religião secular de que falava Raymond Aron), onde os sacerdotes detentores da verdade suprema não olham a meios para atingir os fins.
Este tipo de crença (quase religiosa) é, de resto, característica de movimentos totalitários, que se distinguem dos demais pela exigência de lealdade total, incondicional e inalterável de cada membro individual (base psicológica do domínio total). Essa exigência decorre da alegação, contida na sua ideologia, de que a organização abrangerá, em devido tempo, toda a raça humana. E não se pode esperar uma lealdade assim senão de seres humanos completamente isolados e desprovidos de laços sociais (inclusive família, amizade e camaradagem), que só adquirem lugar no mundo quando participam do movimento. Esta lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de qualquer conteúdo concreto, de forma a evitar possíveis mudanças de opinião. O partido tem sempre razão. Todos os objetivos, programas, conteúdos ou iniciativas que sejam específicos e que, portanto, não incluam a evolução totalitária, o domínio mundial e não se refiram a “questões importantes durante séculos” são entraves que importa suprimir.
Piatakov (parceiro de Lenine e de Trostky e que veio a ser vítima de Estaline), em 1928, afirmava que os bolcheviques não eram como as outras pessoas. O Partido era constituído por pessoas que faziam o impossível possível... E se o partido assim o exigisse, se fosse necessário ou importante, seriam capazes, por um ato de vontade, de expulsar do cérebro, em 24 horas, ideias que defendiam há anos. Veriam preto onde achavam estar branco (ou ainda lá estivesse), pois para um bolchevique não havia vida fora do partido ou em desacordo com ele.
Este conjunto de considerações não permite, portanto, que se descarte, sem mais, qualquer comparação entre nazismo e comunismo. Quem o fizer revela mais as inclinações ideológicas de que é portador do que rigor, objetividade e isenção na análise.
Isto dito, tendo a crer que, bem para além de procurar diferenças e/ou semelhanças entre nazismo, bolchevismo e comunismo, sejam elas quantitativas ou qualitativas, o verdadeiramente importante é, afinal, perceber como puderam ter lugar os fenómenos de terror que originaram, identificar o que os permitiu e garantir que não mais aconteçam, destas ou de outras formas. Em vez da comparação nazismo/bolchevismo/comunismo, a reflexão deveria centrar-se, sobretudo, no conflito de métodos - liberalismo, liberdade de expressão e instituições representativas, de um lado, autoritarismo, repressão, sacrifício da liberdade, violência, sacrifícios e disciplina, do outro.
Esta reflexão e tomada de consciência, além de necessária, é bastante oportuna, pela enorme apreensão que nos devem gerar os “absurdos políticos” (movimentos e líderes, de esquerda como de direita) que têm vindo a surgir um pouco por todo o mundo e que não parecem escassear de apoiantes. Nem mesmo por parte de algumas “elites e intelectuais”, que deveriam, ao invés, constituir um contraponto à irracionalidade grassante.
A este respeito, é pertinente resgatar, de novo, Arendt e as explicações que adianta para a adesão de elites intelectuais a movimentos totalitários como o nazismo e o bolchevismo.
Em primeiro lugar, os regimes totalitários convidam ao ativismo (ação pura), que responde com “És o que fizeste” à incómoda questão “Quem sou eu?” (questão esta que surge com redobrada insistência em momentos de crise). A própria preferência pelo terrorismo, enquanto forma de atividade política, era objeto de atração por elites e intelectuais, pois encarado como uma espécie de filosofia através da qual se exprimia frustração, ressentimento e ódio cegos - uma expressão política que usa bombas como linguagem.
A elite intelectual dos anos 20, e muita da que se lhe seguiu em França até à denúncia por Kruschev dos crimes de Estaline (e mesmo depois disso), estava convencida de que se podia épater le bourgeois começando por chocar a sociedade com a caricatura da sua conduta. Para além de alguma cegueira ideológica a explicar posições insustentáveis, o que atraía a elite era, portanto, o radicalismo em si.
A exultação de André Gide quando Céline propôs que se massacrassem todos os judeus, por exemplo, não resultou, obviamente, do facto de concordar com a morte de todos os judeus em França, mas antes da circunstância de haver alguém, sobretudo Céline, que assumisse tão frontalmente esse desejo e, ainda, pela fascinante contradição entre a rudeza da proposta e a polidez hipócrita reinante sobre a questão judaica. O impulso para desmascarar a hipocrisia era de tal forma intenso que nem a perseguição (bem real) de Hitler aos judeus prejudicou ou enfraqueceu as suas convicções.
Tenho igualmente presente, com algum desprezo à mistura, Sartre e a defesa intransigente do regime bolchevique, argumentando que, por muito liberal que fosse, um regime comunista seria sempre preferível a qualquer outro, pelos princípios em que assentava. Mesmo quando as evidências em sentido contrário abundavam.
É difícil não cair na tentação de encontrar semelhanças entre a adesão dos intelectuais a movimentos totalitários como o nazismo e o bolchevismo e a situação atual.
No contexto académico, o pós-modernismo e a sua crítica aos valores do Iluminismo (razão, ciência, humanismo e progresso) têm gerado absurdos em corredores de universidades, de par com movimentos disruptivos (fraturantes) nas sociedades, cujas consequências já se fazem sentir e cuja plena extensão se encontra ainda por determinar.
Na política, a importação acrítica de ideias pós-modernas (o relativismo epistemológico, estético e moral, a impossibilidade de distinguir a verdade da mentira, a crise da ciência moderna, ...) deu origem ao que, sem qualquer tipo de pudor, se denomina por “verdades alternativas”, sem que isso apoquente ou inquiete alguns exemplares das “elites” económicas, políticas e intelectuais.
As massas, por sua vez, reagem às elites e aos políticos “tradicionais” com desconfiança crescente, substituindo-as por quem se afirma contra o sistema, mesmo que o faça de forma boçal, ignorante, mentirosa, demagógica e populista. Ignorando o conteúdo, exultam com o estilo e o que consideram ser um combate ao establishment e à hipocrisia generalizada. Como num mundo de generalizadas mentiras ninguém deve ser levado demasiadamente a sério, os excessos, por absurdos que sejam, são tolerados, quando não mesmo apreciados.
As analogias com os contextos que fizeram medrar os movimentos totalitários do século XX são muitas e constituem, portanto, um importante alerta para potenciais perigos e a necessidade de os prevenir.
Eis porque não considero que a resolução europeia tenha sido tendenciosa, muito menos precipitada. Na redação da proposta, houve o cuidado de centrar denúncias nos crimes de Estaline, pelo que, à luz de tudo o que aqui se refere, a ter de criticar o documento seria pela sua excessiva prudência. Atribuo o facto de não incluir o maoismo ao receio de gerar fricções com a China (atualmente inoportunas e de difícil gestão), assim como a ausência de responsabilizações explícitas do comunismo ao cuidado de não agitar alguns setores políticos europeus, num contexto geopolítico e intraeuropeu que precisa, cada vez mais, de cerrar fileiras em torno do projeto europeu.
Mesmo com todos estes cuidados, a reação epidérmica dos setores mais à esquerda à proposta não se fez esperar. Por sua vez, certa direita aproveitou a oportunidade para ensaiar um ajuste de contas com a História.
Merecendo críticas pelo facto de não entender o alcance estratégico da resolução e o comedimento nas reações que deveria suscitar, não podemos, no entanto, omitir o facto de esta reação epidérmica de alguma direita ter algumas explicações históricas.
A queda do comunismo não originou o equivalente aos julgamentos de Nuremberga, onde, para ironia da História, os soviéticos foram, também, juízes. O estatuto de ex-comunista não trouxe (nem traz) qualquer estigma. Basta lembrar muitos dos intelectuais franceses fervorosos adeptos de Estaline ou Mao (mesmo quando as evidências abundavam) e que continuam a ser referência em meios intelectuais e universitários ocidentais (Sartre, André Gide, Louis Aragon, Marcuse, Derrida e, nas artes, Pablo Neruda, Bertolt Brecht, Jorge Amado, Jean-Luc Godard, entre tantos outros).
A estátua de Lenine ainda está presente em várias cidades e a sua múmia repousa honoravelmente num mausoléu em Moscovo. Em todo o mundo comunista, quase nenhum dos seus responsáveis e dirigentes enfrentou tribunais ou foi punido, mesmo tendo feito parte do regime de terror totalitário estalinista (a não ser pelo próprio regime, e não pelas razões certas).
Em contrapartida, qualquer ligação ao nazismo, por indireta ou remota que seja, constitui uma mancha irreparável no currículo. De facto, à hipermnésia dos crimes nazis corresponde uma certa amnésia dos crimes cometidos por regimes de ideologia comunista, razão suficiente para que se possa valorizar a coragem intelectual, moral e política de assumir, analisar e perceber os crimes do passado.
Ora, à luz desse intuito, não me parece adequado começar a análise excluindo, logo à partida, potenciais responsáveis, por muito que isso custe a quem não goste de ser incluído na lista de suspeitos. Mas também me parece desadequado (para não dizer perigoso e demagógico) qualquer tipo de macarthismo fora de tempo, com uma nova caça às bruxas.
Portanto, e em suma, o problema estará menos na resolução europeia e mais nos exageros ideológicos de quem dela pretende retirar proveito, seja na qualidade de vítima ou de carrasco. Acho, até, que, se devidamente interpretada e lida, esta resolução europeia poderia constituir um importante contributo para o atual esforço de (re)unificação europeia, tarefa vocacionada ao fracasso caso não se reconheça, compreenda e condene a imensa tragédia vivida a Este.
Por fim, e a ser-me permitido algum entaoeaquilismo, recordaria aos detratores mais virulentos da resolução europeia (e que consideram Estaline um desvio do comunismo) que não podem criticar o facto de alguém poder tender a associar comunismo e estalinismo. Afinal, há mais de 150 anos que os marxistas criticam o capitalismo, responsabilizando-o por quase todos os males do mundo. Ainda recentemente (janeiro de 2020), o Bloco de Esquerda publicou uma imagem, a propósito dos brutais e devastadores incêndios na Austrália, com o comentário “Não é fogo. É capitalismo.”
Marx (ainda respeitado por muitos e idolatrado por alguns) afirmava que o capitalismo contém em si o germe da sua própria destruição. Será assim tão insultuoso afirmar o mesmo do comunismo?
João Gouveia
Vila do Conde (2020)
Bibliografia consultada:
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Courtois, Stéphane et al, (1999), “The Black Book of Communism: crimes, terror and repression”, London, Harvard University Press.
Crossman, Richard, (edit.), (1949), “The God that failed”, New York, Harper & Brothers.
Ferro, Marc, (2017), “A Cegueira, uma outra história do nosso mundo - cem anos de guerra, política e religião”, Amadora, Cavalo de Ferro.
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L’ Histoire, “Les mondes du Goulag”, nº 461, 462, julho e agosto de 2019.
Littel, Jonathan, (2006), "As Benevolentes", Alfragide, Publicações D. Quixote.
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Serge, Victor, (2016), "O caso do Camarada Tulaev", Silveira, E-Primatur.
Shalamov, Varlam, 1980, “Kolyma Tales”, New York, W.W. Norton.