Nutro especiais sentimentos por aquela pessoa de esquerda que…
… quando vai ao supermercado e agradece os preços baixos, se esquece de que isso é resultado de uma economia capitalista, com lógicas de oferta e procura. A mesma lógica de mercado que agilmente repudia.
… quando reclama pela ignorância dos outros, do alto da sua licenciatura, esquece o privilégio ainda minoritário que resulta da exclusão de muitos outros. Esquece, ainda, que lhe cabe precisamente, porque privilegiada, dar o exemplo.
… quando reclama por melhores salários, o faz no contexto de uma sociedade de mercado, onde os vencimentos são, em grande medida, resultado da procura e da oferta.
… quando se vangloria da expertise que detém, vantagem competitiva no mercado de trabalho, alegando que é merecida e resultado de anos de investimento pessoal e que lhe permitiu chegar onde chegou, esquece que o Marx que tanto a encanta repudiava a especialização profissional, considerando-a uma das derivas indesejadas do tão odiado sistema capitalista.
… quando reclama dos mercados e as suas ditaduras económicas e financeiras que impõem às pobres nações, esquece que são esses mesmos mercados quem cede dinheiro para que possamos continuar com as nossas vidas. E vai, logo a seguir, pedir um empréstimo ao banco para comprar a casa, negociando draconianamente o spread.
... critica os mercados financeiros, pela sua ausência de escrúpulos, mas tem umas ações que vai trocando, na perspetiva de uns ganhos.
… quando critica o capitalismo, esquece que não é necessariamente sinónimo de liberalismo ou de selvajaria; esquece, sobretudo, que uma parte importante e significativa das nossas vidas atuais é um inegável resultado histórico da emergência e implantação do capitalismo, de mãos dadas com a evolução da ciência e da técnica e que um se alimenta do outro.
... quando arma ao pingarelho, critica Friedman e a Escola de Chicago, por defensores do capitalismo selvagem e laissez Faire, ao mesmo tempo que elogia as políticas de quantitative easing do Presidente do BCE, porque as considera keynesianas.
… quando defende os direitos inalienáveis dos refugiados, não lhe passa pela cabeça que poderia reagir da mesma forma caso lhe aparecessem aos milhares, no quintal ao lado.
… quando critica os que votam Le Pen ou Salvini, se esquece que há pessoas que, fruto de políticas europeias muito discutíveis, vivem em condições como Callais ou algumas zonas do sul de Itália que, não sendo extremistas de direita, estão completamente descrentes de todas as outras opções políticas. NYMB ou pimenta no rabo dos outros, como se costuma dizer.
… defende a escola pública e coloca os filhos em instituições privadas (ou semi), sem pensar no contributo social que, afinal, dá (aliás, nega).
… quando compra roupa ou utensílios de marca, deveria recordar-se das críticas marxistas ao valor acrescentado. No caso das marcas, por maioria de razão.
… quando escolhe uma casa confortável, afastada do “granel” do povo, em zonas decentes, contradiz, com o elitismo da sua prática, as ideias que tanto apregoa (e quando a envolvente do sítio onde vive se vê invadido por pessoas e famílias de níveis socio-económicos desfavorecidos, pragueja pela desvalorização da habitação quando a pretende vender).
… quando se considera um paladino na defesa dos ultrajados e esquecidos, esquece olimpicamente que quem votou Ventura, Bolsonaro e Trump faz parte do lote.
… quando não tolera quem pensa de forma diferente e subscreve propostas e iniciativas que inibem outros de dar conta das suas opiniões, diz, afinal e na prática, que todos têm liberdade de expressão, ainda que uns tenham mais do que outros. Tudo depende, afinal, do que se defende.
… quando apela a uma sociedade mais compreensiva, democrática, participada e aberta, onde todos possam assumir-se sem receios e com possibilidades de realização profissional, se esquece dos freios que (porventura sem querer) coloca aos pensam de forma diferente e que rapidamente apelida de conservadores (adjetivo generoso, face aos que costuma utilizar).
… quando acusa a sociedade dos rótulos e dos estereótipos (ciganos, romenos, pretos, amarelos, .....), se esquece da facilidade com que adjetiva os adversários de racistas, misóginos, fascistas, homofóbicos, transfóbicos, ….
… quando defende as Gretas deste mundo para a lista dos nobelizáveis, ao mesmo tempo que se insurge contra o flagelo do desemprego, desconhece que, a aplicarem-se 10% das sugestões dos ambientalistas radicais, um conjunto significativo de trabalhadores ficaria na miséria.
… defende o relativismo cultural e de valores enquanto tenta impor, em muitos casos à força, a sua visão do mundo (não raro a dos amanhãs que cantam, sendo maquiavelista na abordagem - os fins justificam os meios; quaisquer que sejam; desde que os amanhãs cantem, a música de que gosta e apenas essa).
… quando tem oportunidade de criar o seu próprio negócio, ou beneficia financeiramente de um bom negócio ou prestação de serviço, na qualidade de microempresário ou profissional livre, olimpicamente omite o que o marxismo defende a propósito da propriedade privada, da exploração do proletariado, da mais-valia e do valor acrescentado.
… quando se socorre dos melhores gadgets ou sucumbe às modas (nas roupas, no vinil, nas viagens a sítios exóticos, nas compras, enfim, na forma como vive a sua vida...), se esquece de que faz parte integrante do consumismo que tanto denuncia e da exploração capitalista desenfreada que tanto a incomoda.
… se esquece que, a ter de prestar atenção a todas as situações injustas e de exploração de pessoas e a reger a sua vida em função de uma total coerência, não conseguia tomar uma única decisão de compra, em dia algum da sua vida; mas é ágil a atirar pedras aos telhados dos outros.
… defende a indústria e a produção nacional, desconhecendo que há empresas estrangeiras que trazem maiores contributos para o emprego e a economia nacionais.
… critica o Salgado, o Zeinal, o Oliveira e Costa e todos os vigaristas que usaram de expedientes ilegais em benefício próprio, bem como os empresários que utilizam paraísos fiscais (colocando todos no mesmo saco), depois de negociar com o veterinário e o operário que lhe vai pintar o quarto que o serviço seja feito sem recibos.
… defende o estado providência e a justiça social e, enquanto beneficiário de subsídio de desemprego, faz uns biscatos por fora.
… quando beneficia de uma situação confortável, económica e socialmente, não se questiona quanto ao contexto social que o permite - em muitos casos, contextos onde algumas minorias estão afastadas, dessa forma causando menos mossa e concorrência.
A lista continuaria, como é fácil de perceber. A incoerência é uma parte integrante da vida. Apenas me parece que valeria a pena ser-se menos conclusivo e dogmático. Afinal, todos temos telhados de vidro. Algum comedimento seria, por isso, mais desejável.
Em jeito de remate: a ter de ser alguma coisa, sou centro-esquerda. O que quer que isso signifique.
Vila do Conde,
12 de outubro de 2019