Ao longo da vida, aprendi que a ciência, apesar de falível, era indiscutivelmente o que de melhor tínhamos para organizar a vida. A evolução da humanidade assim o comprovava.
Um processo que assenta em experimentação controlada, procedimentos estruturados, regras consensualizadas e revisão de pares, com vista à produção de evidências sistematicamente escrutinadas, pensava eu, ajuda a fugir a dogmas e liberta-nos da arbitrariedade das convicções de quem manda, só porque está em posição de mandar e, portanto, dos absurdos das ditaduras (inclusive e sobretudo as de pensamento).
Aprendi, também, a valorizar os fundamentos da lógica, porque uma importante ajuda para disciplinar o pensamento e facilitar o diálogo.
ENORME ERRO! A lógica, como alguém dizia, é uma batata. E a ciência mais não é do que uma opinião, entre muitas.
Identificar falácias argumentativas é, pelo visto, falacioso. E, claro, pode condicionar as pessoas e as suas opiniões. “O gajo é mesmo académico. Anda lá metido nos livros e não conhece a realidade da vida.”
Pedir que se expliquem as premissas paras as conclusões a que se chega é snobismo intelectual. “Lá está o tipo com a mania das análises e do pensamento lógico. Qual é a parte da inteligência emocional que ele ainda não conhece?”
Valorizar análises cuidadas, percebendo cada ponto antes de se perceber as relações, é ser reducionista, e esquecer a complexidade. “Tudo se relaciona com tudo. As melhores abordagens são as holísticas.”
Reclamar por evidências é redutor, porque há-as para todo o gosto. “Então nunca ouviu falar das verdades e dos factos alternativos? As pessoas têm direito às suas opiniões, sem terem obrigatoriamente de as basear em evidências.”
Depositar confiança na ciência é ingenuidade e merece o rótulo de cientismo. “Olha-me este que ainda acredita nas tretas da ciência. Não sabe que é tudo uma cabala para nos fazer acreditar em certas coisas.”
Em suma, e portanto, ter direito à opinião passou a ser uma forma autoritária de recusar a autoridade de qualquer visão contrária, por fundamentada que seja.
As redes sociais ajudaram a criar este novo paradigma de conhecimento, com consequências bem visíveis.
Vejamos alguns exemplos de opiniões recolhidas na net, por ordem crescente de absurdo:
- Os tradicionais órgãos de comunicação não são de confiança, pois vendem-se a quem mais paga. Jornalismo de investigação não existe (se alguma vez existiu) e os fact-check são mistificações e manipulações.
- A História é escrita pelos vencedores. Os documentos históricos são como romances, porque dependentes da criatividade e subjetividade de quem escreve. Toda a verdade histórica é relativa e está dependente de forças políticas em confronto. A mais forte ganha.
- A astrologia, os mapas astrais e essas práticas esotéricas New Age são perspetivas tão válidas como quaisquer outras, mas o positivismo reinante considera-as heresias. Não devemos negar ciências que não conhecemos. Todas as grandes verdades começaram por ser grandes heresias.
- A ciência é uma construção ocidental que oprime as restantes culturas e formas de pensar, viver e sentir. O facto de ser ocidental já constitui, em si mesmo, uma falha que importa corrigir.
- As alterações climáticas são uma enorme mentira, alimentada por poderosos lobbies ambientais.
- Os medicamentos que devemos ou não tomar e que estão disponíveis no mercado não resultam de investigações científicas submetidas a regras e controlos, mas antes da avidez das farmacêuticas. É tudo um jogo de poderes e de maximização de lucros.
- A medicina ocidental (como se a localização geográfica jogasse algum papel) não é superior a alternativas como homeopatia, acupunctura, aromaterapia, medicina antroposófica, dietas alternativas, infusões de plantas de Bach, Feng Shui, terapia com cristais, medicina naturalista, cupping, terapia magnética, medicina ortomolecular, reflexologia, reiki, shiatsu, cura espiritual, medicina tradicional chinesa, …….. É tudo uma questão de negócio, onde as grandes farmacêuticas mandam.
- O autoritarismo das farmacêuticas e da medicina convencional não gera apenas lucros pornográficos. É danoso para a saúde, como o comprova o facto de as vacinas causarem autismo, verdade que tem vindo a ser escondida.
- Nesta pandemia, as máscaras não só não servem para nada, como são causadoras de doenças. Há muitas empresas a ganhar com isto.
- A OMS não se baseia em critérios científicos. É apenas uma arena onde se jogam exclusivamente interesses geopolíticos.
- As soluções para a pandemia mais não são do que uma forma de os poderosos exercerem o seu poder e nos manterem como carneiros.
- As vacinas para o COVID, altamente perigosas, são uma manobra das farmacêuticas ganharem dinheiro.
- As vacinas são, também, uma forma de nos introduzirem chips, tal como Bill Gates pretende, para mais facilmente nos controlarem.
- Há uma Nova Ordem Mundial e o Deep State, com os poderosos a manobrarem os cordelinhos para sermos controlados e manipulados.
- A Terra é plana e o Homem nunca foi à lua. Trata-se de uma gigantesca conspiração orquestrada, entre outros, pela NASA.
- Está provado que somos regularmente visitados por extraterrestres e que há OVNI, havendo uma cabala para silenciar episódios como o de Roswell.
- Há uma conspiração internacional, orquestrada pela esquerda, com redes pedófilas, e da qual fazem parte muitas personalidades famosas como o Papa, a rainha de Inglaterra, Tom Cruise, Obama, Hillary Clinton, …..
- Estes e outros poderosos mandam raptar e torturar crianças, de forma a recolherem adrenalina, destinada a fabricar adrenochrome, um fármaco que faz rejuvenescer.
- Há um conjunto de forças demoníacas a atuar no mundo (como algumas aqui referidas), sob a dependência de Satã, sendo Trump o Messias enviado para nos salvar.
- Vivemos num jogo de computador, concebido por alguém, e só alguns de nós despertaram e conseguiram sair da Matrix.
- ………
O inalienável direito à opinião obriga, portanto, a que tenhamos de ouvir e ler enormidades e silenciar. Por muita vontade e segurança que tenhamos para rapidamente descartar absurdos com um simples “isso nem sequer é mentira”, estamos impedidos de o fazer, sob pena de sermos considerados arrogantes, autoritários, absolutistas, fascistas ou, nas versões mais gentis, “adormecidos” e “carneiros”.
Estas novas formas de conhecer o mundo têm um aroma pós-moderno.
Desde logo, pelo facto recusar verdades universais. Cada um tem a sua verdade e, claro, o incondicional direito de a exprimir. Pode recusar-se a alguém o direito a uma opinião?
Em segundo lugar, assenta na suspeita (quando não mesmo, negação) da racionalidade e da ciência. Ironicamente, estas “verdades” precisam, como de pão para a boca, da chancela da Academia. Os divulgadores destas “novas perspetivas” adoram poder mencionar as habilitações das fontes. A credibilidade dos “pensadores” e “investigadores” resulta reforçada quando o nome vem precedido de um “dr.”, “eng.” ou, sobretudo, um “PHD”. Seja esse título verdadeiro ou não e independentemente de como e onde foi obtido. Isso interessa de pouco. Ironia suprema: estes pseudo-pensadores refugiam-se na Academia para mais facilmente poderem atacar a ciência.
Por fim, estas delirantes pós-verdades assentam numa singular forma de construir conhecimento: parte-se de uma crença estabelecida e faz-se cherry picking de argumentos, de forma a… validar a crença. Não há problema se a crença e as afirmações contrariarem tudo o que a comunidade científica internacional tiver consensualizado como verdadeiro e o saber acumulado de décadas. O que se afirma pode e deve ser igualmente considerado como válido, porque constitui uma verdade alternativa. Logo, não pode nem deve ser descartada sem mais. Em teoria, todas as explicações são possíveis e nada pode ser completamente negado. Como provar que algo não existe?
O raciocínio é tão simples quanto isto e justifica que investigadores, com assuntos bem mais importantes a que dedicar o seu tempo, tenham de vir a terreiro provar o que está provado há anos. E, não raro, correndo o risco de serem insultados.
Infelizmente, a própria Academia, designadamente nas áreas das Ciências Sociais e Humanas, não se vem constituindo como um bom contraponto, pois tem tolerado (quando não mesmo incentivado) demasiadas práticas investigativas assentes nesta lógica, com as consequências que se conhecem.
Onde fica a ciência que aprendi a respeitar e cujos critérios e regras permitiam, ainda que com fronteiras ténues, dispor de alguma racionalidade, separando trigo de joio? (pelo menos, permitindo separar o que era credível, verosímil e consensual para um lado, mesmo que carecendo de confirmação, e o mágico, irreal, imaginário e mesmo surreal, para outro)
De que serve a alguém a curiosidade por um tema, as questões, as pesquisas, as leituras, os estudos, as reflexões, as investigações, as certezas e as dúvidas, em áreas a que dedica anos da sua vida?
Valendo de pouco, veja-se o meu caso. Cursei Filosofia. No intervalo das Queimas, achei piada às questões epistemológicas e li umas coisas. Tive a sorte de poder trocar opiniões com professores e obter mais sugestões. Acabado o curso, trabalhei na indústria farmacêutica. À escala das minhas funções, tive de estudar sobre ciência, designadamente alguns assuntos de medicina e farmacologia. Ao longo da minha vida, a curiosidade levou-me a devorar livros de cientistas e investigadores, complementados com leituras sobre epistemologia, paradigmas, complementaridades/rivalidades entre positivismo e construtivismo e diferentes posições sobre a verdade, o conhecimento e o erro. Por questões profissionais e de interesse pessoal, nos últimos anos, consumi dezenas de publicações sobre o pós-modernismo e sua relação com a ciência, a razão, o humanismo e o progresso. Um tema que me seduziu, até e desde logo pelas suas enormes e atuais implicações. Pelo caminho, li e confrontei inúmeras obras sobre a relação entre ciência e pseudociência. De forma a melhor poder entender os dois lados da questão, li fontes esotéricas, new age, de ocultismo e crenças orientais. Acabei rendido ao peso das evidências, expressas, por exemplo, em várias meta-análises disponíveis (e credíveis) que comprovam, à saciedade, as vantagens da medicina dita convencional.
Acabei percebendo que a ciência é o resultado de fundamentados e generalizados consensos, não permitindo, no entanto, um simples preto ou branco. Na qualidade de produção humana que recusa dogmas, é exatamente o reconhecimento da sua falibilidade que constitui uma das suas principais vantagens. É o confronto de investigações, rigorosamente controladas e avaliadas pelos pares, que determina (mais tarde ou mais cedo) o consenso, num processo de acumulação/revisão do conhecimento que não tem fim à vista. E é esse equilíbrio instável entre o que afirma conhecer e o espaço do desconhecido que justifica a sua importância e o seu fascínio.
No entanto, a não aceitação de dogmas não significa que as conquistas científicas sejam apenas ilusões, a qualquer momento descartáveis e, portanto, meras opiniões. A ciência e as suas produções são, indiscutivelmente, o melhor que temos. É o seu beyond doubt que, em bom rigor, nos permite viver e que se tem revelado essencial para o desenvolvimento da humanidade.
Neste mundo da pós-verdade e do alternativo, contudo, as evidências, os factos, as regras e cuidados investigativos, a procura estruturada de rigor, a sistematização na busca da verdade (com minúscula, propositadamente, pois o caminho é, afinal, o da minimização do erro) … servem de pouco. Ou mesmo de nada.
O importante mesmo é a opinião de cada um e o inalienável direito que tem de a expressar.
Num mundo destes, onde desapareceram os alicerces que nos permitiam viver com sentido entre o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o plausível e o imaginário, o belo e o feio, o erudito e o popular, o bem e o mal, o que fica? Os soundbites (a atenção é um bem escasso), a sedução do bizarro (quanto mais estranho, melhor), a valorização da suspeita (quanto mais maliciosa, melhor) e o império de uma espécie de maoismo digital.
O que nos resta fazer? Escrever e denunciar? Insistir e persistir? Não desistir, mesmo quando se prega no deserto?
Este texto é um bom exemplo da pertinência das minhas dúvidas. Poucos o lerão até ao fim. Dos que o fizerem, só se converterão os já convertidos.
A correr bem, irrito alguns.
Pois que seja.
Esta porra também a mim me irrita.
Ao menos, ficamos quites.
Vila do Conde
4 de novembro de 2020