A incoerência dos seguidores de Marx é proverbial. A caminho de dois séculos sobre o pensador, pode dizer-se que este foi castigado com a humilhação de ter uns seguidores de que, a ser vivo, pouco se sentiria orgulhoso.
De resto, como diz Armando Plebe, “não se pode pretender fundar um movimento político que permaneça para além da vida do fundador e, ao mesmo tempo, presumir ter encerrado num livro, ainda que seja tão grande como O Capital, as prescrições para o comportamento político, inclusive em situações futuras que, inevitavelmente, são sempre imprevisíveis".
O que dizer do catolicismo de esquerda? Marx nunca poderia ter previsto este fenómeno e, no entanto, os clérigos progressistas e os teólogos da libertação chegaram a constituir uma classe bem mais importante e decisiva do que os proprietários rurais.
Raymond Aron dizia, a este respeito,
"Um católico está no direito de crer que o regime de propriedade coletiva ou de planificação é mais favorável ao bem-estar da maioria do que o regime batizado de capitalista. É uma opinião sobre matéria profana, com a qual se pode concordar ou não. Ele está no direito de crer que a história evoluirá na direção do regime da sua preferência e de reconhecer como fato a luta das classes sociais pela repartição da renda nacional e pela organização da sociedade. Mas, se ele considerar o advento do socialismo o sentido da história, se transfigurar o poder do Partido Comunista em libertação operária, se conferir um valor espiritual à luta de classes, ele então terá se tornado marxista e inutilmente se esforçará para combinar uma heresia cristã com a ortodoxia católica." (O ópio dos intelectuais)
O que dizer, também, do facto de as revoluções comunistas (assim as denominaram) terem todas lugar em sociedades que, de acordo com Marx, não reuniam as condições sociais e económicas para evoluir para o socialismo (quanto mais para o comunismo, a sociedade inevitável do futuro)?
Lenine e Mao, por exemplo, realizaram saltos argumentativos dignos de mérito, ao sentirem necessidade de adaptar Marx às suas circunstâncias. Isto para não falar de Estaline, claro. Os arautos da supressão do Estado acabaram por criar os estados mais absolutistas do século XX.
Já agora, e em jeito de dúvida, também: se o comunismo é uma realidade inelutável, a que mais tarde ou mais cedo se chega, para que é necessária a revolução?
Quanto a pensadores e a golpes de cintura, há vários.
Nas ruas de maio de 68, os jovens gritavam 3 M – Marx, Mao e Marcuse. Ora, Marcuse não era, propriamente, um marxista ortodoxo.
Sobretudo, na década de 60, não havia muitas dúvidas quanto às agradáveis condições de vida e de bem-estar de que o proletariado gozava e que eram fruto de sociedades capitalistas. Essa tomada de consciência fez com que vários marxistas achassem que o proletariado já não tinha mais as condições para se revoltar. Por isso, Marcuse defendia a existência de grupos de revolucionários profissionais (ele constituiu inspiração a vários movimentos terroristas dos anos 70) que comandassem a revolução. Era uma espécie de nova classe dominante (de que Marcuse era a figura tutelar) e que, ironicamente, mais não tinha para propor ao proletariado do que uma revolução que lhes iria baixar os padrões de vida.
Para esta classe de revolucionários, a razão de existência deixava de ser a defesa de uma classe e de instauração de uma sociedade comunista, para passar a ser a luta enquanto meio e fim. Como compatibilizar o ímpeto violento da revolução com o bem-estar da sociedade comunista, quando esta fosse atingida?
Uma outra contradição tinha a ver com a especialização e as competências profissionais, algo que Marx tanto criticava. Segundo este, grande parte dos males da sociedade resultava do preconceito de se considerar a cultura e a preparação profissional como importantes. A história da humanidade demonstrava, segundo Marx, que não só é desnecessário ser pintor para julgar um quadro e sapateiro para saber de sapatos, como também é desnecessário ser cientista para realizar descobertas científicas.
“O relojoeiro Watt inventou a máquina a vapor, o barbeiro Arkwright inventou o tear mecânico e o joalheiro Fulton, o barco a vapor”, diz Marx, avançando para a ideia dos inegáveis perigos a que conduz o mito da especialização científica.
Ou ainda,
“Na sociedade comunista não existe um esfera de atividade exclusiva para cada um, uma vez que se pode aperfeiçoar, ao seu gosto, em qualquer especialidade; a sociedade regula a produção geral, de um modo tal que me permite fazer, hoje, uma coisa, amanhã outra, sair à caça, pela manhã, ir à pesca ao meio-dia, cuidar do gado, à tarde, conversar depois da ceia, tudo à minha vontade, sem me converter em caçador, nem em pescador, nem em pastor, nem em conservador”.
Parece inequívoco que Marx confundia o “homem interessado em tudo” com o “homem que brinca com tudo sem fazer nada a sério”.
Mas, e já que se fala de cultura e de marxismo cultural, onde ficam os intelectuais neste esquema social? Sabemos bem o que Pol Pot e Mao lhes resolveram fazer, certo?
E Bourdieu? O que dizer de Bourdieu? Em vez do sistema económico e do capital financeiro (a infraestrutura) serem o vetor determinante das sociedades e das suas possibilidades de mudança, este sociólogo transformou o capital cultural e as ideias de habitus, doxa e campo social como determinantes (e perpetuadores do status quo).
Daí o combate à cultura “das elites”, que considerava diletante e daí também o entendimento da educação como exclusivamente destinada a preparar pessoas aptas para o sistema económico. O que tinha de comum com Marx era o ódio à cultura.
Mas, em contrapartida, para Marx, as ideias não são importantes, nem sequer são revolucionárias. O que conta são as relações económicas. O proletariado levantar-se-á e realizará a revolução.
Ora, assim sendo, onde ficam também os teóricos marxistas, a quem caberia o papel de ensinar algo à revolução?
Rosa Luxemburgo, por exemplo, dizia que “as revoluções não se deixam dirigir por um mestre de escola”.
E Mao não se limitou a decretar a cruzada da ignorância (“O livrinho Vermelho”). Promoveu-a, dirigiu-a e levou-a a cabo.
“No que toca à leitura de um livro, é muito mais difícil a tarefa do cozinheiro, que tem de preparar uma refeição… Tem de apanhar o porco e o porco pode escapar-se-lhe e quando o degola o porco chia. Um livro em cima de uma mesa não pode fugir nem chiar, podeis dispor dele como melhor vos agrade. Nada há mais fácil no mundo”. (Mao)
Não parece ter criado problemas de maior a Mao o facto de Marx não conseguir matar porcos e ter escrito os livros em que a revolução se baseava. Também o apelo (mais admoestação) de Lin Piao a propósito do Livro Vermelho (“Estudai os escritos do presidente Mao, segui os seus ensinamentos e atuai de acordo com as suas diretrizes) não parece entrar em contradição com a elevação da matança de porcos a atividade nobre.
Assim sendo, o que dizer do intelectual engajado de Sartre? Como deveremos entender o artista agente da transformação do mundo (realismo socialista e Djanov)?
Por fim, mas não menos importante, como entender a admiração ainda hoje sentida por Gramsci? Este importante e influente marxista defendia a autonomia do intelectual, enquanto “força autónoma”, independente da camada social em que gravita.
Reza a história que Marx, no final da sua vida, terá afirmado não ser marxista. Se calhar ninguém o foi verdadeiramente.
Vila do Conde
21 de novembro de 2020
PS: algumas das ideias foram adaptadas do livro de Armando Plebe (1974) - "O que Marx não disse".