Roustainguismo no Brasil

O texto abaixo foi extraído do Livro de José Herculano Pires, "O Verbo e a Carne", capítulo XIII.

Quais os motivos da penetração da Roustainguismo no Brasil? Como e porque ele

conseguiu enraizar-se na chamada "casa mater"? Por que nos defrontamos agora com uma

recrudescência dessa pseudo-doutrina? Parece-nos que tudo se resume numa questão de

formação religiosa, tendo por fundo a formação racial brasileira e o período medieval do nosso

desenvolvimento nacional. O Roustainguismo chegou ao Brasil num momento crítico, quando

a nossa cultura estava sendo abalada por várias infiltrações européias. Entre essas, o

Espiritismo, que chegara da França e empolgara alguns espíritos cultos na segunda metade

do século passado. O Roustainguismo se apresentava como integrado no Espiritismo e

tocava de perto a sensibilidade mística de alguns ex-católicos.

A França era então o centro da Civilização e Paris o cérebro do mundo. A obra de

Roustaing chegava amparada pelo prestígio da França e do Espiritismo. Trazia ainda a

chancela de Roustaing, nome respeitado nos meios jurídicos de Bordeaux, e fora recebida

mediunicamente por Madame Collignon, pertencente a prestigiosa família de juristas. Todo

esse aparato impunha

Roustaing à nossa inteligência. Mais do que isso, porém, a obra

trazia um grande alívio aos espíritos místicos, quebrava a frieza racional da obra

de Kardec e restituía ao Cristo a sua condição sobrenatural.

Para homens profundamente religiosos como Bezerra Menezes, que fora exemplo

de católico praticante, Antônio Luiz Sayão, Bittencourt Sampaio e outros, cujos atos atestam o

predomínio do sentimento religioso a razão crítica, a obra de Roustaing surgia como tábua de

salvação, livrando-os do racionalismo kardeciano. Roustaing era a volta ao maravilhoso, ao

Cristo místico, divino no espírito e no corpo. Dessa maneira, Roustaing devolvia a essas

criaturas as ilusões da religião lírica que as embalara desde a infância.

Não é fácil compreendermos hoje o clima religioso que o Espiritismo se

desenvolveu entre nós. Houve, naturalmente, a dissidência racionalista, constituída por

elementos que tendiam para o aspecto racional da doutrina. Daí a divisão, acentuada por

Canuto de Abreu, entre os espíritas místicos e científicos. Divisão que foi perdendo o seu

sentido na proporção em que a obra Kardec era melhor compreendida, revelando a sua

essência religiosa e sobretudo a sua natureza de elo entre a Religião e a Ciência.

Como explicar-se a posição do Estado de São Paulo taticamente do Sul, rejeitando

Roustaing desde o início? Figuras exponenciais como Batuíra e Cairbar Schutel revelaram

desde o princípio acentuada tendência racional. Eram espíritos analíticos, amigos da era

cartesiana, do espírito positivo, repelindo os exageros místicos. O desenvolvimento cultural de

São Paulo contribuiu para a consolidação desse espírito em nosso meio doutrinário. Somente

alguns espiritistas isolados deixaram se levar pelo Roustainguismo, que jamais conseguiu

predominar numa só instituição doutrinária. Pelo contrário, nos grupos e nas sociedades

espíritas os poucos roustainguistas, mesmo quando se destacavam por seu prestígio pessoal,

dissimulavam habilmente a sua posição, como o fazem ainda hoje, evitando atritos.

A vocação pioneira de São Paulo, o impulso para o futuro que o

caracterizou desde a sua formação parece ter influído nessa posição kardeciana. O

Roustainguismo, como já vimos, é um impulso de retrocesso, uma volta ao passado. E

uma forma de saudosismo. Toda tendência retrógrada, em qualquer campo das

atividades humanas, sempre encontrou repulsa no clima mental e cultural paulista. E

quando falamos desse clima não nos fechamos nas fronteiras do Estado, pois que

ele abrange todo o Sul do Brasil.

Referimo-nos acima ao nosso período medieval. São Paulo também passou

por esse período, que podemos figurar na fase da Civilização Caipira. Assim, os

elementos básicos de nossa formação racial também estão presentes em São Paulo: o

religiosismo português, o animismo indígena, o feiticismo do negro, mas sobre eles

dominou o nacionalismo utilitarista do bandeirante desbravador. Esse espírito de

audácia, forjado com a matéria prima de Sagres, espantou dos ares do Planalto os

fantasmas aborígenes e africanos e os resíduos do teologismo medieval.

Encontramos num livro de Luciano Costa,

Kardec e não Roustaing,

editado pela Gráfica Mundo Espírita do Rio de Janeiro, em 1943, a mesma afirmação

que sustentamos, referente ao sentido retrógrado do Roustainguismo. Não havíamos

lido esse livro, que só agora nos chegou às mãos. Folheando-o, encontramos alguns

trechos valiosos. Luciano Costa observa que o Routainguismo nos devolve aos

tempos do Cristianismo Primitivo, quando o ensino do Cristo não era ainda

compreendido, e acentua:

"Em Roustaing impera, absoluto, sobre todos os seus ensinos, o sentimento

religioso da Antigüidade. - Em

Os Quatro Evangelhos as verdades são sempre

contrariadas pelas mentiras, o natural é prejudicado pelo absurdo e o belo é sempre

desfigurado pelo horrível. Jesus é fluidificado, purificado e até endeusado; mas

também é ironizado, ridicularizado, deturpado e estupidificado!"

Nos idos, de 40 estávamos ainda na mocidade, havíamos nos tornado espírita

há poucos anos e não tivéramos tempo de aprofundar o conhecimento da Doutrina. A

FEB fazia então grande propaganda da obra de Roustaing, afirmando que se

tratava da única interpretação total dos Evangelhos publicada em toda a

Cristandade. Nessa época o Rev. Othoniel Motta publicou o seu livro

Temas

Espirituais,

em que relata suas experiências espíritas positivas, reconhecendo a

veracidade dos fenômenos, mas combatendo a doutrina como diabólica. Analisamo-lo,

no ardor da juventude, num folheto intitulado És Mestre..., publicado na Revista

de Matão, e feito em separata pela Editora "O Clarim".

Levado pelas informações da FEB citamos de passagem

Os Quatro Evangelhos. E

um espírita da Bahia escreveu-nos a respeito, felicitando-nos pelo trabalho mas

lamentando a citação infeliz. Fomos consultar a obra famosa e ficamos

envergonhado. Graças a Deus Othoniel não recorreu a ela.

Caso semelhante aconteceu a Carlos Imbassahy, segundo ele nos relatou

pessoalmente. Eurípedes Barsanulfo é também citado às vezes como roustainguista

em virtude de engano produzido pela propaganda. Logo que acordou do engano,

Barsanulfo repudiou Roustaing. Chico Xavier tem sido vítima de mentirosos

envolvimentos e sua obra chegou a sofrer deturpações, mas a verdade é que ele

nunca apoiou Roustaing. Outros companheiros – e entre eles nos parece que se

encontra Bezerra de Menezes – acordam também em tempo mas não quiseram

provocar escândalos no meio doutrinário e preferiram silenciar.

Esses fatos mostram como é insistente e nefasta a propaganda dessa

obra de mistificação em nosso meio, mormente por uma instituição tradicional e

conceituada. Neste volume, Júlio Abreu Filho faz denúncias graves de

desvirtuamento de obras mediúnicas pelo fanatismo roustainguista. Essas denúncias

não são de agora, mas publicadas há vários anos. Apesar de tudo a propaganda

continua e a obra deturpadora vai semeando o seu joio na seara. O silêncio

estabelecido pelo "Pacto Áureo" deu resultados negativos, pois toda uma geração

espírita se formou nesse período e agora está sendo colhida de surpresa pela

"novidade" do Roustainguismo. Por esses frutos podemos avaliar a árvore. Qual o

bom fruto que o roustainguismo produziu? Qual?

Por tudo isso – e pelas suas conseqüências desmoralizadoras – é necessário

que os espíritas sinceros não se calem. É preciso dizer, alto e bom som, nas palestras

e conferências, nos artigos e nos livros, a verdade sobre a obra de Roustaing. A

análise que acabamos de fazer tinha a pretensão de ser apenas análise – e acabou

nos levando obrigatoriamente ao terreno da acusação. Porque não é possível calar

diante da astúcia dos mistificadores e da fascinação dos que a aceitam e

aplaudem.

É dever dos espíritas sinceros combater a mistificação roustainguista neste

alvorecer da Era Espírita no Brasil. Ou arrancamos o joio da seara ou seremos coniventes

na deturpação doutrinária que continua maliciosamente a ser feita. O

Cristo agênere é a ridicularização do Espiritismo, que se transforma num processo de

deturpação mitológica do Cristianismo. A doutrina do futuro nega-se a si mesma e

mergulha nas trevas mentais do passado. O homem-espírita, vanguardeiro e

esclarecido, converte-se no homem da era ante-cristã, no crente simplório das

velhas mitologias.

Internacional de Espiritismo,

"Para o triunfo do mal basta que os bons fiquem de braços cruzados."

Edmund Burke