Seu Crizo

Saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no tempo.


O trecho acima é do escritor mineiro Rubem Alves. Rubem não está mais entre nós, virou eternidade. Mas suas palavras definem bem o momento que muitos de nós estamos passando em 2020. Não bastasse a incerteza e o medo de conviver com uma doença que assola o mundo, estamos vivendo uma epidemia de saudade.

Os mais afetados são, com certeza, os idosos. Fazem parte do grupo de riscos, no plural: risco de contágio e risco de solidão.

E é justamente tentando manter o equilíbrio entre a saúde física e emocional que encontramos Crizantemo Izidoro, o Crizo. Fã de amigos e abraços, quando perguntado sobre a palavra saudade, o tapeceiro que nasceu em São Bento Abade, cresceu em Varginha e fez a vida em Três Corações, lamenta: “a maior saudade que eu tenho é de abraçar meus filhos”.

Tentando enxergar o isolamento social sob uma ótica positiva, muitos sãos os que dizem que podemos aproveitar o momento para repensar nossas escolhas, os caminhos trilhados, fazer as pazes com nossa bagagem de vida. Ao falar de seus 71 anos, Crizo diz não ter arrependimentos. Faria tudo de novo. Seu único ressentimento é de uma oportunidade que não teve: ver o parto de, pelo menos, um dos filhos. Uma saudade de um momento não vivido, mas muito imaginado.

A citação de Rubem Alves foi pedido dele. “Se for usar alguma citação junto das minhas palavras, usa alguma do Rubem Alves. Ele sabia expressar os sentimentos.” disse antes de nos despedirmos. Encerramos a conversa pensando que o rosto da eternidade que ele vislumbra ainda mora na esperança de um reencontro com a família toda, a casa cheia e muitos abraços.


ENTREVISTA COM CRIZANTEMO IZIDORO (em vídeo)


Essa pandemia, como você acha que ela te afetou diretamente?


Diretamente... ela me afetou na parte, é... do convívio. Porque eu sou uma pessoa que gosta de tá olhando para as pessoas, abraçando, é... cumprimentando, sentindo o calor humano. E essa pandemia fez esse distanciamento, e aí, ela me afetou um pouco, assim. Mas nada que eu possa, é... falar que vai ser pra sempre. Não vai. Então, eu tenho esperança que eu vou abraçar meus amigos como antigamente, como 1 ano atrás.


E assim, você hoje, pensando na sua vida, você sente saudade do quê? Saudade assim, de um modo geral.


Saudade assim, de um modo geral, a maior saudade que eu tenho é de abraçar meus filhos.


Se pudesse começar a vida de novo, o que você mudaria na sua história?


Não, não mudaria nada não. Porque eu encarei a vida... ah... é... tal como ela é. Então, eu não posso me arrepender daquilo que eu fiz, porque eu acho que eu fiz tudo certo. No meu modo de ver, eu fiz tudo certo. Então, eu acho que não mudaria nada não. Eu continuaria... se tivesse voltado a fazer eu faria igual.


Tudo igual?


Tudo igual, porque deu certo.


E o que você gostaria, assim, de reviver, éh... um momento específico, que queria ter essa emoção de novo hoje?


Nossa!

Éh... eu, eu, eu gosto de ver criança nascer, então, euuu... eu gostaria de ver um parto de um filho meu, que eu não tive... isso eu não consegui ver. Não podia ver, não tinha como. E isso deve ser muito legal, então, isso eu gostaria de ver.


Antigamente não podia... entrar o... o homem não entrava na sala de parto?


Não entrava. Era difícil entrar na sala de parto.

Éh... Eu até tive oportunidade porque minha irmã trabalhava na maternidade, mas se abrisse exceção pra um, teria que abrir exceções para outros. E eu acompanhei os pré-natais que a gente fazia, então a gente ia no consultório médico. Mas na hora do parto... não.


Se o mundo fosse te ouvir hoje, né, que conselho você deixaria pro mundo?


Éh... ser menos predador.

Hoje o maior predador do mundo é o ser humano. Que diz humano, mas não é. Ele é o maior predador, ele destrói floresta que é vivo, ele destrói animais que é vivo. Ele destrói o bioma da Terra que... ele não sabe como que vai ser no futuro, ele não pensa que tudo em volta é vida. Ele não tem... Ele não tem essa noção de que a vida É O sistema. Então, o que que eles fazem? Eles queimam, eles éh... poluem os rios, éh... joga produto.. éh... veneno na vegetação, que vai pra terra, que vai pro lençol freático, que contamina tudo. É uma cadeia, nós vivemos numa cadeia. E precisa de um entendimento pra isso, cadeia…


Muitas pessoas, não to generalizando, mas muitas pessoas pensam como eu, que não deve ser feito. Por isso existem os ecologistas, existem... éh... órgãos, ONGs... A maioria ONGs, porque, governamental... são poucos países que adotam isso. Por que que eles adotam isso agora? É porque eles já fizeram no passado. E esse passado eles estão... não que sejam as mesmas pessoas, mas o local é o que está acontecendo hoje. Então, tem muitos lugares que eles não deixam queimar, que eles não cortam muita floresta. Por quê? Porque eles já perderam tudo. E eles não querem perder mais.


Então, é uma cultura diferente, um modo diferente de encarar, mas... As ONGs estão aí pra isso, então, quando uma ONG fala: "Não vamos poluir o rio, não vamos cortar uma árvore, não vamos..." Eles estão certos. São pessoas MAIS EVOLUÍDAS. A evolução permitiu que nós chegássemos até aqui assim. Mas a nossa evolução... tem muita gente evoluindo muito bem evoluído. Preocupação com meio-ambiente, com tudo... Isso aí vai ser... hoje, a nossa terra hoje, talvez ela vai demorar a recuperar a recompor o ecossistema. Mas vai chegar uma época em que as pessoas vão dar mais valor naquilo que tem de natureza.


INTERPRETANDO RETRATO


Seu Crizo encarou a estante. A poucos metros dele estava seu passado. "Qual o significado disso nos tempos de hoje?" Ele se perguntou. Não tenho certeza, mas podemos chamar isso de máquina do tempo. Avançou um pouco mais, esticou o braço até a parte mais alta da estante e tirou de lá, ainda empoeirado, um livro grosso, com capa de couro. Nunca soube se era couro de verdade, tinha lá suas dúvidas, o material apresentava vincos e detalhes que tornavam duvidosos a sua qualidade.


Assoprou e espanou com um lenço a poeira. Se sentou no sofá. O livro sobre os joelhos. Era um álbum de fotografias. Houve um momento, na história da humanidade, em que as fotos se chamavam retratos e eram tiradas em momentos muito especiais. Quando você comprava um rolo de filme ele vinha com um limite, 24 ou 36 poses. Era caro revelar as fotos e caro para comprar o rolo de filme. Então, era natural que um rolo durasse bastante tempo. E só compensava revelar depois de usar todas as unidades que ele oferecia.


Crizo abriu o álbum de fotos como se fizesse um sorteio. Queria ver qual foto lhe apareceria primeiro. Qual lembrança resgataria na sua memória, naquela penseira analógica. De olhos fechados, marcou uma página aleatória do livro com os dedos. Abriu.






Lá estava ele. Sem camisa, sentado num sofá marrom de couro, esse era de couro mesmo, usando uma bermuda azul curtíssima, não se via mais isso, há muito tempo não usava uma bermuda tão curta, é até engraçado olhar isso com os olhos de hoje. Nos seus braços uma linda bebezinha com um vestidinho branco, sapatinhos brancos, um sorriso maravilhoso, mas... espere... ela tem chifres? Ah... é o danado do Sandrinho aprontando. Na hora da foto o moleque fez chifrinhos com os dedos na cabeça da irmãzinha. Devo ter ficado bravo com ele na hora, mas parece que foi tudo uma grande brincadeira.


Ao lado do danado do Sandrinho estava Simone que, com a cabeça apoiada no ombro dele, tentava fazer seus olhos alcançarem um lugar em que eles, naturalmente, não alcançariam. Seu Crizo coçou o queixo. Que ano foi isso? Começou a fazer os cálculos na cabeça. Foi há muito tempo. Concluiu.


Lembrou do dia que comprou o vestidinho branco que a Amanda usava na foto. Foi no mesmo dia que o Sandrinho caiu e ralou o joelho. Aproximou o retrato dos olhos, ajustou os óculos no nariz. Lá estava a prova. O joelho do garoto todo lambuzado de mercúrio cromo, ou seria metiolate? Ninguém mais usa isso hoje em dia, pensou Seu Crizo com um sorriso de canto de boca. Por que será? Na época parecia funcionar. Outros tempos.


Como são diferentes as fotos de hoje. Expostas na internet, no celular, qualquer um pode ver quando quiser, não há poeira para assoprar ou espanar e não existe um limite para fazer uma, assim como não precisam mais de um momento especial. Parecem desprovidas de alma, de história, de espontaneidade. Talvez elas precisem de tempo entre uma e outra para que uma história aconteça. Ou talvez tenha uma história em todas, mesmo que elas estejam bem diluídas, talvez meus olhos analógicos tenham dificuldade de enxergá-las. Será?


Provavelmente sim. Não poderia pensar desse jeito, comparando os tempos e atribuindo mais valor a um do que a outro, pois, até hoje as pessoas tiram fotos pensando em registrar um momento específico, que pra elas é importante, especial ou agradável.


Retornando de suas reflexões, olhou novamente o retrato com os três filhos. A preciosidade dessa foto não é o momento único em que ela foi tirada, não é a data, não é o rolo de filme, não o preço que paguei para revelar aquelas outras 35 poses. A verdadeira preciosidade dessa foto é que eu e meus filhos ainda temos o privilégio de rirmos juntos hoje, da mesma forma como estamos sorrindo nessa fotografia. Ainda estamos juntos e tenho a capacidade de abraçá-los da forma como eu devo ter feito depois do clique. Por isso, não tenho do que me arrepender nessa vida.



Deixemos as memórias de Seu Crizo de lado, assim como o retrato que resgatou suas lembranças. Quem fala agora é o narrador. Esse texto foi um exercício de imaginação livre. Observar essa foto e ver a entrevista desse senhor, me fez querer imaginar como seria estar na mente dele, tentar entender algumas coisas. Não conhecia, nem nunca tinha ouvido falar do Seu Crizo até ontem, 22 de setembro de 2020. Quando sua filha me mandou o vídeo da entrevista.


Não sei nada sobre ele, tudo que imaginei a respeito dessa foto não diz respeito às características, excentricidades, manias, habilidades, gostos, desgostos, ideais, ou pensamentos e sentimentos dele. Foi apenas um exercício estimulado pela foto que mais me chamou a atenção, dentre algumas outras que pude ver. Penso que falhei miseravelmente, pois analisei o mundo dele a partir dos meus olhos, do meu entendimento de mundo. Descobri depois que Seu Crizo ganhou a vida como tapeceiro e o sofá marrom que aparece na foto foi ele mesmo quem fez.


Mas penso que a mensagem principal consegui captar. Pois, em certo momento da entrevista, o Seu Crizo diz que não mudaria nada na vida dele porque fez tudo certo. Acho impossível que alguém tenha feito tudo certo na vida. Mas é interessante que ele veja dessa forma, porque não está medindo o que passou, ou os anos que separam um momento do outro. Ele está fazendo algo interessante aqui: Seu Crizo se afastou para contemplar o todo da obra dele, o conjunto de tudo, de todo trabalho, paciência e esforço. Ele está olhando de longe, vendo o agora. É a junção dessa obra que permite Seu Crizo olhar pro passado e afirmar que fez tudo certo. Também são interpretações minhas. A verdade só ele sabe.