Dona Nair

Dona Nair.mov


Do que a gente é feito? A proposta dessa atividade me levou a refletir sobre essa matéria que nos constitui e que ninguém vê, e que é tão importante quanto a matéria palpável. Somos todos uma coleção de histórias, memórias, dores, delícias, sentimentos e pensamentos. Eu não tive convivência com meus avós, mas sempre gostei da companhia de pessoas mais velhas, porque quanto mais idade, mais matéria. E se você praticar a escuta, há esse contato um bocado de beleza, e a beleza é uma coisa que me comove. Não seria trágico viver uma vida sem comoção? Foi com essa indagação que comecei uma prosa de comadres com a minha vizinha. O nome dela é Nair e, atualmente, ela é minha projeção de avó, além de ter gentilmente se disposto a dar referências positivas ao meu respeito, para que eu conseguisse êxito em alugar a casa ao lado da dela. Essa mulher nunca fez análise, nem pensou muito no que no que era a vida sem ter alguém pra cuidar. A quantidade de pessoas que ela já recebeu em sua casa, gente da sua família, da rua, gente que ela cuidou e ainda cuida, coisas que só uma pessoa de alma generosa e imensa conseguiria fazer. Meu encanto por ela é grande, mas não tem haver com gratidão. Acho que seria mais apropriada a palavra admiração. Com 70 anos, faxineira uma vida inteira, criou seus filhos e os filhos de outros, e ainda esbanja cuidado pelos netos, conhecidos e também por mim. Voltando então a beleza, eu vi nessa atividade a maravilhosa possibilidade de aceitar seu convite para entrar. Claro, havia beleza da porta pra dentro. Um sofá típico de avó, com almofadas de crochê feitas por ela, que, num dia frio, usava uma blusa de lã e meias de avó. Nos sentamos na apropriada distância e perguntei como era infância, e pra minha sorte, dona Nair adora falar! Começaram as histórias da roça: 15 irmãos, somados aos filhos dos vizinhos, que corriam soltos, nas palavras dela, “A mamãe só falava, não bate a boca na tábua, que quebra o dente”. As memórias dela têm o gosto das memórias do Manoel de Barros, eu pensei. Tinha ribeirão, cobra, e uma porteira que servia de balanço. O cenário é o sul de Minas Gerais. Ela e os irmãos viviam de aventura, desde o carrinho de rolemã a cobras venenosas, passeios na chuva, e acidentes com arame farpados. Dona Nair é uma mulher que consegue ver a beleza, nas coisas, nas pessoas, sendo que, nas pessoas, se faltar ele espreme até sair o lado bom. Fiquei pensando que a gente é o tempo, tanto o que passou, como aqui, agora. E o que virá. É um prazer compartilhar aqui um pouco sobre essa mulher. Dona Nair. O que eu mais gosto nela são os olhos: honestos, envergonhados e cuidadosos. Ah, e a risada! Penso que são 70 anos de sorriso e, para mim, nada é mais poderoso do que isso.