Marlene e as saudades

Marlene e as Saudades

“Meu nome é Marlene Lima de Faria, sou casada, moro na Rua Antônio Batista de Figueiredo, nº 61, sou vizinha da Rebecca.

É. Eu tenho saudades de quando éramos, a minha família, éramos nove irmãos, mas, infelizmente hoje, as coisas acontecem...hoje resta quatro irmãos.

Nós morávamos na roça, a gente vinha à pé para estudar na cidade, no grupo, a gente vinha e voltava à pé. Quando a gente chegava em casa, já era tarde, a mãe já estava do lado de fora, olhando se nós estávamos chegando, e o almoço estava quentinho no fogão. A gente ficava, chegava, almoçava. Ela, muito preocupada, mandava a gente deitar, descansar, depois tem que fazer os dever de casa. Eles também não sabia nos ensinar porque, naquela época de 1900 e antigamente, as escolas não tinham, eram realizadas em casas, e aí nas casas eles faziam uma escola. Uma coisa muito simples.

A única merenda que tinha na escola era uma sopa de bugre e sopa de fubá. Quando chegava a noite...durante o dia nós brincava. Não tinha água dentro de casa. A água era num córrego, a gente tinha que buscar, guardar num pote, daqueles grande, antigo, feito de barro e fogão de lenha... bolo assado na brasa, na panela, no fogão de lenha, com as brasa em cima, e eram tão saborosos, que isso hoje a gente lembra com saudades.

Quando chegava a noite, principalmente na época de frio, nos sentávamos, os irmãos, todos os nove, em roda, o pai e a mãe, e punha uma lata no meio, no centro, com brasa para a gente esquentar os pés, e, enquanto isso, o pai com a mãe ia contando histórias pra nós, histórias de lobisomem, (ela se emociona) a não, meu Deus, Rebecca...e a gente ficava, nós ficávamos, tudo quietinho, escutando aquelas histórias que hoje ninguém se lembra mais...

À tarde, a mãe brincava com a gente, de roda, cantava, como é que nós cantava...esqueci Rebecca, deixa lembrar o nome... de pega-ratinho, de rouba a bandeirinha, mas isso (esse nome da brincadeira) não tinha, não. A gente falava assim “vamo brincar disso”. Cascava uma espiga de milho, punha palha dali, punha palha daqui, e nós, era nove, um ficava, uma turma com cinco, outra com quatro. Era tão bom! Era tão divertido!

E à noite, na hora de dormir, nós rezávamos, não tinha luz, era lamparina com querosene. Éramos pobre. Às vezes, o querosene acabava. Meu pai vinha na cidade, vinha à cavalo, o cavalo chamava Lencinho, até que ele chegava lá com o querosene pra acender a lamparina. Nós ficava sentado na cozinha, em roda do fogão, minha mãe fazendo aquele fogo, fogaréu, uma fogueira, e nós ficava lá.

Às vezes, ela arrebentava pipoca, não era como as pipoca de hoje que é boa. Era aquelas pipocas que a gente colhia na roça, e tinha que secar, nem rebentava direito, mas nós achava uma delícia essas pipoca.

Lavava roupa, nós lavávamos lá no córrego, molhava tudo os pés, não tinha uma bota, não tinha nada, o chinelinho era um chinelinho de dedo. Às vezes rebentava, punha uma ramona debaixo, Rebecca... Nós achava aquilo tão bonito!

Quando tinha festa, Semana Santa, na cidade, nós vinha. A mãe comprava chita, fazia uns vestido pra nós, cheio de babado, aquilo tudo franzido, mas nós achava aquilo tão bonito! E pra nós chegar aqui na cidade com os pé limpo, a gente vinha descalço pra trazer o chinelinho pra calçar aqui. Tinha um córrego, nós parávamos lá, lavava os pé, calçava o chinelinho e vinha pra missa. Acabava a missa, meu pai ia com a minha mãe à cavalo, e nós acompanhando à trás, ai...era um tempo tão bom, Rebecca!

A gente lembra com tanta saudade! Foi muito bom! Depois, a família, morreu o pai, morre mãe, morre um irmão, morre o outro...Oh, meu Deus, nossa!

Depois eu me casei. A gente não aproveitava festa. Quando tinha festa, carnaval, assim, na rua, tinha aqueles grupos, mas isso era da alta sociedade, porque nós éramos pobre, morava na roça, muito bobinhas, então a gente não participava. A gente vinha (na cidade), mas não ia (nas festas), ficava só escutando, do lado de fora, as músicas. Sentava perto do rádio, ficava ouvindo aquelas música caipira, umas música antiga, de batatinha, não sei o que batatinha, sei lá, inhame... um negócio assim mesmo... um Moacir Franco, uns homem antigo que cantava. O Roberto Carlos, Erasmo Carlos... nós num tinha, ficava lá. O radinho era de pilha. Nós ficava lá. Assistia novela no rádio...meu Deus do céu, Rebecca! Ah, não...eu sinto saudades disso!

Quando não tinha café, ia lá no cafezal, minha mãe panhava, secava na panela o café que estava maduro, punha no pilão, socava aquilo, torrava o café na panela e fazia.

Então, eu tenho muita saudade desse tempo! Saudade desse tempo que não volta mais! Porque, hoje, é um mundo completamente diferente daquele que a gente foi criado. Hoje, em vista do que eu fui, era um céu. (nesse trecho, ela quis dizer que aquela época, em vista do que é hoje, era um céu). Não contando, Rebecca, que quando fazia arte, nós apanhava! Não era igual hoje que o pai e a mãe senta, aconselha. Não era assim, não. Nós apanhava de correia mesmo! Quantas vezes chegava visita, às vezes de parente mesmo, que ia almoçar, jantar ou (tomar) café. Nossa! Nós saía, não precisava de falar nada: bastava um olhar da mãe, nós já sabia que era pra sair para o terreiro. Deixar as visita tomar lá o lanche, a comida, e nós éramos os últimos. Não podia pedir, nem nada. Então eu acho que até nós fomos mais bem educados do que as crianças de hoje. A gente cresceu preparado para a vida, né, Rebecca. Porque hoje, você vê, é outro mundo, tem muita tecnologia, hoje é muita fartura, hoje você acha tudo para comprar, antigamente não tinha.

Quando a gente não tinha terra pra plantar, trabalhava de empregado para os outros. Então nós tínhamos que trabalhar... Na medida que a gente foi crescendo, e aí, a gente foi trabalhando de empregado para os patrão e não ganhava, não. Trabalhava em troca. Então foi uma época assim, mas a gente era feliz e não sabia! Porque a gente tinha a família reunida, teve o pai com a mãe que soube nos educar. Sinto muita saudade mesmo!

Tem uma parte que eu não contei, que depois que a gente esquentava o pé, lá nas brasa, todo mundo, nós rezava, cantava “Mãezinha do Céu, eu não sei rezar, eu só sei dizer que eu quero te amar”, sabe? E depois nós íamos dormir. E, na hora de dormir, não tinha cama, era aqueles catre que usava antigamente, o colchão era de palha, nós tinha que rasgar palha para encher os colchão.

E para dormir, não tinha cama, nos catre nós dormia de dois a dois. Nós dormíamos junto. Não dormia. A coberta não era como hoje que tem edredom, que tem essas coberta gostosa que tem hoje, tudo maciinha, era aquelas coberta de tear, feita de tear de antigamente, que tecia, que era feita com lã de carneiro. A mãe tinha a pazinha que fazia, assim ó, pra lá, pra cá, ia tocando uma maquininha - a maquininha até lá na Emília tem ela. A Emília tem essa maquininha que eu estou falando pra você - Nós ficava do lado e ia enchendo as canelinha, com aquele novelo, e depois fazia as coberta. Elas era umas cobertas estreita, né, Preta? (Preta é uma amiga que estava na casa da Marlene no momento da narração), e a gente cobria era com aquelas coberta. Não tinha fartura. Não tinha muito. A gente esquentava porque dormia dois a dois.”