Jorge Manuel Lourenço Gonçalves
Novembro 2023
O Foro de Prerrogativa do Primeiro-Ministro Demissionário
Supremo Tribunal de Justiça ou Tribunal da Relação de Lisboa?
Não se julgue que é líquido que a anunciada demissão do Primeiro-Ministro (PM) será inócua, depois de formalmente demitido, em relação às garantias de que poderia auferir enquanto se mantivesse em funções!
Efectivamente, uma questão juridicamente controversa é a de saber se o foro competente para instruir e, depois julgar, o PM demitido é o Supremo Tribunal de Justiça.
Dispõe o artº 11º, nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal que compete ao pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal, julgar o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro pelos crimes praticados no exercício das suas funções.
Está em causa saber se, em relação a actos praticados enquanto Primeiro-Ministro, mas inquiridos e julgados quando o exercício dessas funções tenha terminado, é aplicável a prerrogativa de foro, previsto no artigo supra-referido.
Na verdade, uma coisa é a imputação de crimes cometidos depois do exercício de funções – os quais nada têm a ver com a prerrogativa de foro – e outra é aquela que é suscitada pela imputação de crimes praticados no exercício de funções, mas sujeitos a investigação após o decurso das mesmas.
Um dos critérios determinadores da competência do Tribunal é o da prerrogativa da função, contemplado no referido artigo 11º. É a chamada competência ratione personae, inerente à função ou cargo desempenhado por determinado indivíduo e das garantias que a mesma implica. Não se é julgado num tribunal superior em virtude da pessoa, mas em virtude da função que tal pessoa desempenha no Estado.
Constituirá a atribuição de um fórum de prerrogativa – como é o caso do artigo citado – um privilégio?
A competência ratione personae situa-se num plano distinto do conceito de privilégio. A mesma não existe para favorecer quem quer que seja, mas sim para a tutela de cargos que se desempenham ou de funções que se exercem.
Representando uma garantia atribuída em função do exercício de funções públicas – e não um mero e injustificado privilégio – esta competência não colide com o princípio constitucional da igualdade, não obstante consubstanciar um tratamento de discriminação positiva. Trata-se dum reconhecimento que oferece um mais de proteção jurídica aos cidadãos abrangidos por esta norma, partindo do convencimento de que, quanto mais elevado seja a hierarquia do tribunal de instrução e julgamento, maior é a garantia proporcionada. Na verdade, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro‑Ministro são cargos máximos num estado de direito democrático pelo que será de grande responsabilidade e ponderação apreciar os crimes imputado aos mesmos no exercício das suas funções e enquanto estão à frente dos desígnios do País pois são, também, de enorme relevância as consequências que daí advêm para o próprio País. Assim sendo, impor-se-á uma reserva de foro especial na condução do inquérito, na instrução e, a final, no julgamento, todos a serem realizados no tribunal supremo do país enquanto essa pessoa estiver à frente dos desígnios do País porque tal é imposto face, não só, às funções primordiais que lhe estão adstritas no exercício do seu mandato mas, também, face à relação de confiança pública, nacional e internacional, que advêm da respetiva função e às consequências que uma eventual condenação implicará para o próprio País (no caso vertente a demissão do PM e a consequente demissão do Governo).
Existe quem defenda, em aparente contradição com a letra da lei, que a fundamentação constitucional do foro especial está em íntima ligação com a posição ocupada pelo Primeiro-Ministro enquanto tal. Significa isto, que o relevante é a qualidade funcional e que, perdida esta, cessa a prerrogativa de foro atribuído ao PM e aos restantes elencados no citado artigo 11º do CPP, desaparecendo logo que eles cessam funções – consequência lógica do desaparecimento do seu fundamento – sob pena de se consagrar uma iurisdictionis perpetuatio (jurisdição perpétua).
Adquirido tal pressuposto emergem várias questões uma das quais é saber se, à luz da lei, é, ou não, aplicável o artigo 11º do CPP aos processos penais que se iniciem após o término das funções do agente, mas em que os actos pelos quais se pretende exigir responsabilidade penal tenham sido cometidos no espaço temporal em que ele gozava do estatuto de membro do governo.
É, assim, manifesto que a questão do domínio temporal de aplicação do foro especial a que alude o citado o artigo, não é uma questão incontroversa, de caráter indubitável e acima de qualquer interpretação divergente.
Todavia, no caso da demissão deste PM, estamos em crer pelas notícias que nos chegam que o inquérito criminal se iniciará de imediato e, portanto, com o PM demissionário, mas não demitido, ainda em funções (embora transitórias) pelo que, neste caso, a controvérsia sobre o foro especial julgamos que não se irá colocar.
Esclareça-se, por fim, que no caso, que julgamos improvável, de vir a ser declarada a incompetência do Supremo Tribunal de Justiça, o processo será remetido para o tribunal competente (artigo 33º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Outra questão se levanta neste singular caso. É que, segundo comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) parece que, generalizando a todos os suspeitos nos inquéritos penais a decorrer na 1ª instância e no STJ, poderão estar em causa, designadamente, factos susceptíveis de constituir crimes de prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência.
Ora, alguns destes crimes são previstos e punidos pela Lei 34/87 de 16 de Julho (Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos), nomeadamente os de corrupção e prevaricação. Ora, dispõe o artº 35º, nº 4, desta Lei que, quando são imputados tais crimes ao PM ele responde perante o Plenário do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), com recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Assim sendo, em aparente contradição com o Código de Processo Penal (CPP), o tribunal competente para instruir o inquérito e, depois, julgar o PM será o TRL.
Como resolver esta aparente contradição?
No caso em que duas normas não podem, sem contradição, ser simultaneamente aplicadas temos o chamado conflito de normas, em que as consequências jurídicas das duas normas se excluem reciprocamente, pelo que apenas uma das normas em concurso pode ser aplicada.
De acordo com o critério da posteridade, ou da cronologia, no caso de conflitos de leis da mesma hierarquia, prefere a lei mais recente, com a ressalva de que a lei especial prevalece sobre a lei geral (critério da especialidade) ainda que esta seja posterior, excepto, neste caso, se outra for a intenção inequívoca do legislador.
Parece-nos que, não sendo leis da mesma hierarquia, nem havendo relação de especialidade entre elas, a Lei 34/87 (a mais recente) prevalece sobre a lei geral, o CPP (de 17/02/87).
Todavia, se assim se não considerar, outro critério aplicável é o da hierarquia das fontes. Também, neste caso, a Lei 34/87 provém de uma fonte hierárquica superior, a Assembleia da República, em contraposição ao CPP que é um decreto‑lei emanado de Conselho de Ministros.
Por tudo isto pensamos que, se os crimes em que o PM demissionário foram, apenas, os de prevaricação e de corrupção passiva, o foro especial aplicável ao Primeiro-Ministro, no caso vertente, é o do Tribunal da Relação de Lisboa e não o do Supremo Tribunal de Justiça conforme tem sido noticiado e que, a ser assim, verificado que o objecto do inquérito são, exclusivamente, os anunciados crimes o processo deverá ser, conforme se disse acima, enviado para o tribunal competente, o TRL!
Já dúvidas nos assaltam se o demissionário PM for, cumulativamente, acusado do crime de tráfico de influências, não previsto na citada Lei 34/87, e dos de corrupção passiva e de prevaricação. Contudo, sendo estes últimos punidos com uma moldura penal superior (2 a 8 anos) relativa à punição do crime de tráfico de influências (1 a 5 anos), cremos que o foro competente deverá ser, sempre, o do TRL.
Pensamos, ainda, que poderá ser mais vantajoso para o presumível arguido, o foro do TRL, uma vez que disporá sempre duma instância de recurso num tribunal diferente, o STJ, enquanto sendo julgado em 1ª instância pelo plenário das secções criminais do STJ, a instância de recurso será o plenário dos juízes do mesmo STJ (artº 52º/a) da Lei 68/2013, de 26/8) o qual irá apreciar um julgamento de juízes do mesmo tribunal com o inevitável condicionalismo de julgar decisões de colegas que participam no próprio julgamento do recurso, embora em minoria.
Nota do Autor: Este texto foi elaborado em sintonia com as lições dos Acórdão do STJ nº 122/13.TELSB-L.S1 de 16.03.2015, Parecer nº 2/PP 2016-G da Ordem dos Advogados, Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº P000362012 e, ainda, com a colaboração dos meus Amigos e Camaradas, Capitão de mar-e-guerra Luís Costa Correia e Capitão de fragata, engenheiro de material naval, Jorge Bettencourt, ambos na situação de Reforma) os quais, com as suas análises e sugestões sempre sábias e avisadas, permitiram lapidar esta peça. A eles os meus infindos agradecimentos!
ADENDA (EM TEMPO)
Quando escrevemos o artigo acima intitulado, expressámos as nossas dúvidas relativamente ao crime de tráfico de influências que pode ser assacado ao PM no parágrafo: “Já dúvidas nos assaltam se o demissionário PM for, cumulativamente, acusado do crime de tráfico de influências, não previsto na citada Lei 34/87, e dos de corrupção passiva e de prevaricação. Contudo, sendo estes últimos punidos com uma moldura penal superior (2 a 8 anos) relativa à punição do crime de tráfico de influências (1 a 5 anos), cremos que o foro competente deverá ser, sempre, o do TRL.»
Reflexões posteriores levaram-nos a esclarecer e corrigir o nosso pensamento quanto ao foro competente para investigar e julgar o crime em causa.
Assim sendo, a citada Lei 34/87, prevê no seu artigo 1º: « A presente lei determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos.»
E, no seu artigo 2º, dispõe: « Consideram-se praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, além dos como tais previstos na presente lei, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres.».
Por sua vez, o artigo 335º do Código Penal, define:
«1- Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para abusar da sua influência, real ou suposta, junto de qualquer entidade pública, nacional ou estrangeira, é punido…
2- Quem, por si ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, der ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial às pessoas referidas no número anterior…»
Deste modo, consideramos que, se o PM for investigado, também, quanto ao crime de tráfico de influências, porque se trata de um titular de cargo político que terá cometido este crime no exercício das suas funções e, porque este crime está previsto na lei penal geral com referência a este exercício de funções podendo ter sido praticado com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres, o foro competente para instruir e julgar o PM será o Tribunal da Relação de Lisboa e não o Supremo Tribunal de Justiça conforme tem sido anunciado.