MORTE E ESPIRITUALIDADE - II
Morrer para sempre?
Viver para sempre!
(continuação)
As verdades da ciência estão intrinsecamente dependentes da validade dos seus instrumentos de medição, o que tem feito com que vida seja apenas considerada como algo que se desenrola só exclusivamente entre o nascimento e a morte, já que é impossível medi-la fora deste intervalo. A própria consciência é vista como um epifenómeno da matéria, sendo um produto de dinâmicas bioquímicas do cérebro. De acordo com este ponto de vista, quando o corpo deixa de ter actividade a consciência segue o mesmo caminho e termina[36].
Este é o resultado que se obtém quando olhamos de uma forma exclusivamente material e científica para morte; as crenças em relação a ela ficam presas numa perspectiva física ou mental de onde consequentemente nascem a maioria dos medos da morte como o medo da dor, da decadência física ou da perda daquilo que compreendemos ser o nosso “eu”.
A ciência tem melhorado a qualidade de vida, baixado os índices de mortalidade e das doenças, mas não tem respostas para tudo especialmente para questões como: Seremos só um corpo que sente dor e prazer? Seremos só um repositório de boas e más memórias? Existe alma? O que acontece depois da morte? Quando eu morrer o que é que morrerá em mim?
A morte assim como a vida, possuem dimensões insubstanciais e incomensuráveis como a afectividade e a espiritualidade. Ao olharmos para o universo em si reparamos que a quantidade de corpos celestes comparados com o espaço vazio e insubstancial é ínfima. Na verdade, as coisas materiais no universo são uma autêntica raridade, mas na nossa cultura o materialismo parece querer teimosamente continuar a reinar sob as nossas visões[37].
Se formos produtos da cultura ocidental e começarmos a reflectir sobre este lado imaterial da vida, deparamo-nos logo com a outra raiz do pressuposto antropológico, que é a religião e a sua visão judaíco-cristã, mais especificamente a visão da igreja católica.
A igreja católica ao longo da sua história, nomeadamente na altura da inquisição, utilizou o medo do além e do desconhecido como veículo de conversão dos infiéis e esta herança ainda não desapareceu totalmente do nosso subconsciente. Embora esta visão tenha oferecido as noções de acesso à vida eterna, da extrema unção, dos anjos e do paraíso, ela manteve sempre uma carga culpabilizante e a ideia que haveria um julgamento final, a partir do qual, a pessoa iria definitivamente para o céu ou para o inferno[38].
Embora a ciência e a religião estejam de costas voltadas, se juntarmos estas duas raízes deparamos que a existência da ideia opressora por parte da religião e a doutrina determinista e imparável do progresso científico, têm contribuído para alimentar o medo do desconhecido e tornarem a morte um fracasso assustador. A consequência deste resultado vem do facto da nossa sociedade se ter desviado dos seus valores espirituais que eram agressivamente impostos nas pessoas e virar-se para os valores materiais, trocando os valores do ser pelos valores do ter[39].
Na antiga Grécia, Platão, Pitágoras e Empedócles, entre outros, acreditavam na transmigração das almas mais conhecida como a reencarnação. Sustentavam a ideia que a parte vital de cada ser humano sobrevivia à morte e regressava sob outras formas. Para Platão, o verdadeiro método do filósofo para ganhar conhecimento sobre a essência da vida consistia em praticar a sua própria morte, dando oportunidade à alma para se acostumar a desprender do corpo e dos desejos mundanos, concentrando-se na sua natureza última[40].
O interesse na morte e no morrer foi estimulado pela incerteza do tempo de vida durante a Idade Média, estando a morte presente em todo o lado e visível nas cidades e aldeias, onde as pessoas morriam aos milhares nas guerras e epidemias, sendo impossível ocultar o facto. Durante a peste negra, um terço ou mesmo metade de uma população era exterminada e os indivíduos testemunhavam constantemente a morte de conhecidos, familiares e vizinhos, assistiam a enterros em massa, queimadas de corpos a céu aberto e até imolações em larga escala de hereges, bruxas e pessoas consideradas satânicas[41].
Foi dentro deste contexto que se reuniram as condições que inspiraram o cristianismo a criar o substrato do livro dos mortos cristão, conhecido por “Ars Moriendi” (significa a arte de morrer). Para o cristianismo a morte é o momento de passagem, cuja origem vem da palavra hebraica pessah e significa passar de uma consciência a outra. Importa referir que a mensagem deste livro não se destinava apenas aos idosos, moribundos ou doentes e, tal como o livro egípcio dos mortos, ele fazia referencias à morte e ao além mas acima de tudo, aos problemas da existência humana face à impermanência das coisas[42].
Para o Islão, a vida nesta Terra é uma transição para a vida posterior quedeverá ser ganha. Maomé recomendava às pessoas para morrerem antes de morrerem, isto é, para entrarem em contacto com a finitude da vida terrestre e a inevitável degradação do corpo físico de forma a acederem e viverem de acordo com realidades mais espirituais e elevadas[43].
Para Budistas e Hindús, a morte representa apenas um momento no ciclo dos renascimentos, onde posteriormente ocorrem sucessivas encarnações que vão decantando a personalidade superficial e aproximando-a da sua essência mais profunda, da luz da alma ou da inteligência cósmica. No livro do Hinduísmo, o Bagavhad Gita, há inúmeras passagens que educam a melhor maneira de lidar com este momento e entre as quais ressalta a seguinte: “Pois que a morte é inevitável para o nascido, tão inevitável como o nascimento para o morto, por isso pelo inevitável, não tens de chorar”.
Os Budistas possuem há muitas eras, um manual para os mortos conhecido por “Bardo Thödol” que prepara a pessoa antes, durante e após o falecimento do corpo físico. A morte é para eles o fim de todas as ilusões e dualidades da mente, onde se inclui a nossa ideia do “eu”. A noção de vida vai muito além daquilo que se passa entre o nascimento e a morte e para eles, o que morre é a forma que a vida adquiriu em nós e não a sua essência primordial. Partilham juntamente com os egípcios a crença de que após a passagem pelos portões ou provações da morte, cada um irá ao encontro da sua natureza íntima definida como uma espécie de clara-luz[44].
Todos estes saberes foram e continuam a ser criticados por académicos ilustres considerando-os como alegorias, fábulas ou produtos da fantasia de pessoas que não sabem aceitar a sua mortalidade ou que apresentam alguma resistência psicológica contra essa respectiva angústia[45]. No entanto mais parece que estas críticas académicas estão mais perto de serem um resultado do efeito dos mecanismos de defesa a turvarem a percepção do que o de uma correcta e empírica avaliação da realidade.
É sabido que não existe actualmente nenhum estudo científico no mundo a provar que a morte é uma passagem para um outro nível de existência nem nenhum estudo que comprove que ela é o fim da existência[46]. O que sabemos é que os instrumentos da ciência que medem a vida no corpo físico como os electrocardiogramas, termómetros ou estétoscópios, não conseguem avaliar o que sucede à vida depois de ela abandonar o corpo e de se manifestar na matéria[47].
No entanto, surgem agora novas disciplinas científicas que de alguma forma vêm ao encontro destas ideias ancestrais e tradições espirituais, como são os casos da Psiconeuroimunologia, o estudo dos Estados Modificados de Consciência ou Psicologia Transpessoal, a Física Quântica e especialmente a Tanatologia.
Esta última disciplina dedica-se a estudar todos os assuntos relacionados com a morte, onde se incluem os fenómenos das EQM e as experiências “fora-do-corpo”. As pessoas são declaradas clinicamente mortas após um grande acidente, uma operação ou um ataque cardíaco, acabando por regressar à vida.
As EQM, são experiências que não se conseguem ainda comprovar mas no entanto repetem-se milhares de vezes, independentemente da cultura e das crenças religiosas de cada um. São fenómenos universais, descritos há milénios pelas tradições místicas, pelos mestres Sufis, escritores ou filósofos como Platão, o Papa Gregório, Tolstoi ou Carl Jung[48].
Numa sondagem de nome Gallup, realizada em 1982 nos Estados Unidos da América, 5% da população americana relatou ter vivenciado uma EQM. Muitas vezes esta experiência é mal diagnosticada, sendo considerada uma alucinação, delírio ou o efeito provocados pela falta de oxigenação do cérebro conhecida por anóxia cerebral, no entanto, há estudos realizados com pessoas cegas que relatam o mesmo tipo de vivência[49].
As pessoas experimentam um estado de sentimentos alterados, de paz e bem-estar, sem dor nem sensações corporais ou medos. Descobrem-se separadas do corpo, ocorrendo a experiência fora-do-corpo, podendo ver-se a si próprios de um ponto mais alto. Afirmam que os sentidos da visão ficam ampliados, a consciência fica clara e muito viva, tendo a sensação de entrar noutra realidade e de se moverem rapidamente por um túnel onde vêem uma luz, que começa por ser um ponto à distância e são magneticamente atraídas para ela, envolvidas em bem-estar e amor.
A luz é descrita como cegante mas de grande beleza, que não forma sombras e não magoa os olhos. Alguns afirmam ver familiares que faleceram, um ser de luz ou uma presença luminosa e omnisciente a que alguns chamam de Cristo, Buda ou Alá, conforme o subconsciente de cada um. Por vezes, perante essa presença, podem passar por uma revisão da vida e vêem tudo o que fizeram de bom ou de mau na sua existência. Os conceitos vulgares não tem significado já que esta é uma experiência imensamente rica e de grande plenitude. Dizem que lhes é dito que regressem ao corpo, o que muitos aceitam com relutância, mas que voltam com uma sensação de missão, serviço ou para protegerem e cuidarem da família; outras dizem que voltam com o objectivo de concretizarem a finalidade da sua vida que pode ainda não ter sido realizada[50].
Finalmente, falta falar do aspecto mais importante das EQM, ou seja, a transformação que provoca na vida das pessoas, nas suas atitudes, carreiras e relações com outros. As pessoas não perdem talvez o medo da dor e de morrer, mas abdicam de todo o receio da morte propriamente dita, tornam-se mais tolerantes e cheias de amor, interessam-se por valores espirituais, pelo caminho da sabedoria, deixam de ter dúvidas sobre a sobrevivência para além da morte física e em geral passam a acreditar numa espiritualidade universal em vez dos dogmas das religiões. Geralmente, são escolhidas descrições da morte que se assemelham a transições, travessias ou passagens para estados superiores de consciência em vez de aniquilações ou modelos do além condenativos[51].
O estudo dos Estados Modificados da Consciência tem também oferecido alguma iluminação em relação a este fenómeno, onde a realidade das situações depende do estado de consciência em que nos encontramos. Muitos anestesistas estão familiarizados com centenas de estados da consciência, seja a vigília, o sonho, o coma ou o devaneio. Para muitos dos investigadores da consciência, o tipo de actividade do nosso corpo e do cérebro, influencia a nossa noção de identidade própria. Por exemplo, quando sonhamos perdemos a consciência do corpo e a nossa identidade no momento parece mudar ao longo do sonho. Estas situações acontecem quando há privação sensorial, em momentos de grande intensidade traumática, de extrema actividade física e nas experiências com drogas psicadélicas[52]. No fundo, a nossa personalidade normal em estado de vigília fica alterada e a maioria dos autores da consciência considera que este processo pode muito bem acontecer durante a morte física.
Por fim, podemos falar na Física Quântica iniciada ao acaso por Einstein e no seu princípio de que o universo nada mais é do que um complexo processo de informação sob a forma de energia. A matéria é definida como a energia a vibrar ao nível mais denso enquanto que o imaterial ou o inefável são a energia a vibrar numa frequência mais elevada. Todos os seres vivos são vistos como formas de energia com mais ou menos consciência e a essência básica de qualquer energia é a própria luz. Há inclusive, recentes investigações que verificaram a presença desta luz ao nível celular através dos biofosfatos, permitindo que as células sintetizem a informação necessária a partir da luz, tal como acontece com as fibras ópticas dos computadores[53].
No apelidado túnel de luz das EQM, a manifestação na luz referida pelos manuais da morte, como o Pert em Rhu, a experiência de iluminação ou de clara-luz referida pelo Budismo, as passagens biblicas como “eu sou a luz”, começam a deixar grandes suspeitas em relação ao facto de serem só consideradas como produtos da imaginação. Pelos vistos são universais, surgem em espaços geográficos, culturais e cronológicos completamente distintos e tornam-se por isso dignos de serem explorados pela ciência de forma mais séria, já que a ciência representa em si mesma a explicação dos fenómenos.
Talvez possam surgir algumas respostas se as nossas representações sobre o processo de morrer e da morte considerarem este fenómeno como uma ponte de ligação entre Ciência e Espiritualidade, nem que seja pelo simples facto dos extremos da existência humana (nascimento e morte) se intercepcionarem com o reino do Espírito[54].
A morte muda a perspectiva das coisas, ela permite que a pessoa veja o que é mais importante na sua vida, permite resolver assuntos inacabados e especialmente fazer a pessoa sentir-se mais emocionalmente completa nas suas relações. À medida que isto acontece, as relações amorosas com os outros e as questões espirituais sobre a vida e o que acontece depois dela, ganham terreno e começam a mudar as consciências de quem morre e de quem está a volta.
A exagerada identificação com o corpo é transformada, pois à medida que o corpo falha, o “eu” começa a (des)identificar-se com algumas das imagens mentais e físicas, começando a abrir-se para outras possibilidades do ser e da consciência. A maioria das tradições e sistemas espirituais da humanidade afirma que a morte não é o fim da consciência pois o espírito transcende a matéria.
Embora isto seja impossível de comprovar pela ciência, esta representação reduz o medo da morte, facilita a sua aceitação e o seu respectivo trabalho de passagem. A intensidade emocional, a vulnerabilidade e a presença do sagrado, combinam-se entre si durante o morrer e tornam-no uma oportunidade de evolução, um último passo em direcção ao crescimento nesta vida[55].
Finalizaremos esta comunicação terminal com um conjunto de passagens que pertencem ao nosso património intelectual, científico, espiritual e universal.
“Depois de fazermos o que temos a fazer aqui na Terra,
Podemos deixar o nosso corpo, que aprisiona a alma,
como o casulo aprisiona a futura borboleta”
Elizabeth Kübler-Ross
“As pessoas não devem venerar os meus ossos…
nós habitamos os nossos corpos e depois mudamo-nos”
Albert Einstein
“Morri como mineral e tornei-me numa planta.
Morri como planta e tornei-me numa rosa e depois num animal.
Morri como animal e tornei-me num homem.
Porquê ter medo? Desde quando é que a morte me diminuiu?”
Nicholson
“A vida é agradável. A morte é pacífica.
A transição é que é perturbadora”
Isaac Asimov
“O que acontece depois da morte é tão indescritivelmente glorioso
que a nossa imaginação e sentimentos não chegam para formar
uma concepção nem sequer aproximada do que é”
Carl Jung
Não tenhas medo. Tudo isso são projecções do teu espírito,
Porém, a verdadeira natureza do teu espírito está além do que te atrai
E além do que te faz medo. Reencontra a tua equanimidade.
Reencontra a tua serenidade e dirige o teu espírito para a Clara-Luz.
Lá está a tua verdadeira natureza.
Bardo Thodol
“Tal como um dia bem passado traz um sono feliz,
também a vida bem vivida traz uma morte feliz”
Leonardo da Vinci
«Após o Sol ter cumprido a sua missão diária - e, apesar das nuvens surgidas no horizonte, antes do anoitecer é bom saborearmos o pôr de Sol, de preferência com tranquilidade, paz de espírito e conforto por se ter vivido plenamente sob os seus raios, e, se depois o Sol já não nascer para nós, que permaneça luz nessa noite imensa que é a Morte»[56]
Um Bem-Haja pela paciência que tiveram em nos escutar. Roubámos 15 minutos ao vosso magnífico relógio biológico, estais mais velhos 15 minutos. Quantas células morreram neste espaço de tempo dentro de vós? Mas sem dúvida que ficámos todos mais ricos.
Desejamos a todos uma boa morte para sempre, mas acima de tudo uma boa vida para sempre.
[36] GROF, S. - Books of the dead: Manuals for living and dying, 1994.
[37] CORTRIGHT, B. - Psychotherapy and spirit: Theory and practice in transpersonal psychotherapy. New York, Suny, 1997.
[38] GROF, S. - Books of the dead: Manuals for living and dying, 1994.
[39] SCHNETZLER, J. P. - Da morte para a Vida. Coimbra, Editorial Presença, 1998.
[40] SHEIKH, A.; SHEIKH, K. – "Death Imagery: Confronting Death Brings us to the Threshold of Life". In:SHEIKH, A. A. - Healing images: The role of imagination in health. New York, Baywood, 2002.
[41] GROF, S. - Books of the dead: Manuals for living and dying, 1994.
[42] LELOUP, J. Y. - Além da luz e da sombra: Sobre o viver, o morre e o ser, 2002.
[43] RODRIGUES, V. - Comunicação pessoal, 2001.
[44] RINPOCHE, S. - O Livro Tibetano da vida e da morte, 2001.
[45] GROF, S. - Books of the dead: Manuals for living and dying, 1994.
[46] WEIL, P. - Curso de Especialização em: A arte de viver a passagem. Lisboa, Unipaz, 2003.
[47] LEVINE, S. - Who dies?, 1982
[48] RING, K. – "Heading toward Omega", in: Search of the meaning of the near-death-experience. New York, Morrow, 1984.
[49] TART, C. – "Helping the dying", in: BOORSTEIN, S. - Transpersonal psychotherapy. New York, University of New York Press, 1996.
[50] KÜBLER-ROSS, E. - A Roda da Vida, 1998; RINPOCHE, S. - O Livro Tibetano da vida e da morte, 2001; RING, K. – "Heading Toward Omega", in: Search of the meaning of the near-death-experience, 1984.
[51] RINPOCHE, S. - O livro Tibetano da vida e da morte, 2001.
[52] SIMÕES, M. – "A Experiência Mística: o ponto de vista do psiquiatra", in: SIMÕES, M., RESENDE, M.;GONÇALVES, S. - Psicologia da Consciência: Pesquisa e reflexão em psicologia transpessoal. Lisboa, Lidel,2003.
[53] GOSWAMI, A. - Physics of the soul: The quantum book of living, dying, reincarnation and immortality. Charlottesville, Hampton Roads, 2001.
[54] GROF, S. - Books of the dead: Manuals for living and dying, 1994.
[55] CORTRIGHT, B. - Psychotherapy and Spirit: Theory and practice in transpersonal psychotherapy, 1997.
[56] Autor anónimo. Encontrado em folhas soltas de apontamentos diversos na Feira da Ladra. Lisboa, 1978.