Espiritualidade e Ateísmo
Os grupos semânticos embaralham termos próximos de maneira que facilmente as pessoas se confundem. Assim quando alguém discursa sobre religião, mistura com religiosidade e fé. Então acontecem as rejeições globais. O ateu posiciona-se radicalmente contra o conjunto, sem perceber as diferenças. Para contrapor-se a tal simplismo, o filósofo francês, ateu, André Comte-Sponville vem trabalhando a espiritualidade, forma de religiosidade, dos ateus. Lançou livro já traduzido em português –O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus [São Paulo: Martins Fontes, 2007]– em que mantém a postura fundamental ateia, mas propugna certa espiritualidade.
Para manter-se ateu apela para permanecer simplesmente fiel ao mistério do ser, sentindo o horror e a compaixão ante o mal, de um lado, e misericórdia e humor diante da mediocridade humana. Prefere a lucidez à fé em Deus respeito aos desejos e ilusões.
A espiritualidade vincula-se à nossa condição de espírito. Para isso não precisamos de Deus, continua o filósofo francês. Vivemos profunda tensão interna. Finitos, abertos ao infinito; efêmeros, voltados para a eternidade; relativos, com o coração pulsando eternidade. A espiritualidade consiste em experimentarmos tudo isso, sem postular nenhuma Transcendência além da história e desta vida.
O materialista reduz tudo à máquina do cérebro. A espiritualidade postula acesso ao universal, ao riso, ao humor, à beleza que ultrapassam a matéria orgânica. A própria natureza humana permite alçar-nos espiritualmente por ela mesma a um Todo uno, que não precisa ser Deus. Existe a espiritualidade do comungar, do transmitir, do participar, do agir ético e do amar e aí encontrar a felicidade. Só humana, mas real. Bela, irradiante para outros. Isso basta ao ser humano.
Quanto mais nos cercam banalidades, frivolidades, mais a espiritualidade nos aponta para realidade profunda, do ser que sustenta tudo, mas que não ultrapassa o mundo criado.
O neologismo “imanensidade” traduz bem tal atitude espiritual. Encontramo-nos diante da imensidade do universo. Cada dia os astrônomos nos surpreendem com tempos e espaços incomensuráveis. Nosso pequeno espírito mergulha no silêncio da contemplação, da mística. Aí se perde.
Essa imensidade se exprime numa imanência inesgotável. Dela não saímos. E, de fato, tal perspectiva permite bela espiritualidade contemplativa, de sensibilidade em face da natureza, de comunhão com todo o universo e com as pessoas. Mas tudo termina aí. O coração de muitos se serena com ela. Traz-lhe a alegria da saída de si para o que o cerca. Realmente não precisa de Deus para vivê-la.
A fé pertence a outro registro. Ela supõe uma Palavra de Deus que se dirige pessoalmente a nós, enquanto pessoas, numa provocação de conversão e de compromisso de vida com a Boa Nova que Jesus anunciou. Ela se resume na revelação de que Deus Trindade ama infinitamente os seres humanos, especialmente os pobres e marginalizados, pondo-se ao lado deles no começo, no meio e no fim da trajetória histórica até eles mergulharem no seu mistério eterno.