MORTE E ESPIRITUALIDADE -I
Morrer para sempre?
Viver para sempre!
Joaquim Parra Marujo[1] João da Fonseca[2]
“Pois que a morte é inevitável para o nascido
Tão inevitável como o nascimento para o morto;
Por isso, pelo inevitável,
Não tens de chorar”
Baghavad Gita
Esta comunicação tem a finalidade de vos transmitir uma outra perspectiva de sentir o Dasein da existência humana: Ultrapassar a morte e o morrer para promover uma vida para sempre! Deste modo podemos encarar a morte com a naturalidade de se ter vivido e ter valido a pena viver.
Actualmente a morte é um acontecimento medonho e pavoroso. Morrer provoca medos dantescos.
É possível minorar estes medos mudando a nossa maneira de conviver e de lidar com a morte e o morrer?
Destarte, temos como objectivo sensibilizar os congressistas para:
1- Compreenderem o conceito de morte e morrer e o que acontece psicologicamente ao ser humano durante o processo dinâmico do morrer;
2 – Compreenderem as representações sociais e os estereótipos que muitas vezes condicionam as atitudes perante a morte e o morrer.
Não podemos afirmar categoricamente o que acontece no processo de morrer porque é uma experiência que, ainda, não vivemos. "Infelizmente", para a ciência, as pessoas que morreram não regressaram para relatarem esta vivência. Contudo, existem inúmeros estudos científicos[3] sobre experiências de quase morte.
A Morte nunca é possível quando se trata de nós próprios. Nunca morremos. É inconcebível para a nossa mente que nos mente, imaginar um fim real para a nossa vida - e quando a trajectória vital tem um fim é mais fácil atribuí-lo elementais divinos ou demoníacos, dizendo "Deus assim quis", "o destino estava traçado" ou "coisas do Diabo".
A morte é um facto da vida, é real, é um vasto mistério mas não é o fim da vida. A vida em si própria, não é eterna. Compreender e aceitar a nossa morte conduz, inevitavelmente, a uma situação de responsabilidade para connosco, para com os outros e para com a Humanidade. Se diariamente pensarmos que vamos em breve morrer, talvez o nosso comportamento para com os Outros se torne, de facto, responsável e empenhado na construção de um Mundo mais humano, humanizado e fraterno[4].
Para amar verdadeiramente a vida e os Outros, temos de aprender a amar a morte e o que ela representa no ciclo da vida e na evolução cósmica de todos os seres vivos. O ciclo da nossa existência é temporário. No momento do nosso nascimento já estávamos a morrer. Quando a vida intra-uterina termina, nascemos. Quando acaba a amamentação nasce de imediato um novo mundo gastronómico. Quando saímos da casa dos nossos pais, criamos outra família e uma outra forma de viver mais autónoma. A vida é uma vida ad eternum.
A vida talvez seja uma eterna morte. A morte talvez seja uma eterna vida. Uma vida eterna é talvez a tomada de consciência da nossa finitude. A nossa finitude talvez nos leve a valorizar a preciosidade, a oportunidade e a importância da nossa existência e das nossas relações no aqui e no agora. A vida talvez seja mais do que aquilo que se passa entre o nascimento e a morte. A morte talvez não seja o verdadeiro inimigo. Inimigo talvez seja não viver a vida.
Vivemos numa sociedade moderna que é ao mesmo tempo atemorizadora, primorosa e com um imenso deserto espiritual. Esta vida permite-nos a oportunidade especial de passagem, o «parto de um ciclo onde morte e vida se abraçam num espaço de dor e plenitude. Brahma, supremo deus da criação, e Shiva, supremo deus da destruição, dançam juntos, neste instante, ao som da melodia universal que chamamos mutação. Ao olhar mais atento, Vishnu, supremo deus da conservação, sorri com os braços abertos para acolher os aflitos da Vida»[5]. Não será demasiado tarde? «Haverá comentário mais arrepiante sobre o mundo moderno, onde a maioria das pessoas morre sem estar mentalizada para a morte, tal como viveu sem estar preparada para a vida?»[6].
Urge uma aceitação tranquila e lúcida da morte e do morrer no lar (doméstica)[7]. Morrer, assepticamente, nos hospitais é, hoje em dia, um momento solitário, triste, muito mecânico e pouco humano e sem a companhia e a participação da família. Parece-nos que encarar a morte com mais calma e naturalidade é tanto mais possível quanto mais a vida for realizada e vivida com grande satisfação e plenitude[8].
Viver é, também, estar consciente da morte. Preparar a morte promovendo uma vida para sempre! é a mensagem que queremos deixar neste Congresso Internacional de Gerontologia.
Perguntamos, quando "perguntar não ofende":
O que é o Homem?
Quem sou eu?
O que é que sou?
O que é a morte?
O que é morrer?
O que é viver?
São interrogações perturbantes, categóricas, insofismáveis e evidentes que colocamos, inúmeras vezes, em momentos de crise existencial.
O Homem é corpo que tem uma mente que é uma tripla mente porque é mente, que mente e que (de)mente(mente) nos leva à loucura. Lou(cura) que cura quando pensamos que não morremos e que viveremos para sempre!
O ser humano produto e resultado de um processo biográfico é composto por corpo, espírito e alma. O corpo é a impressora da alma e o espírito a sua energia. Cada corpo prepara-se, ao longo da vida, para receber a doença. A doença é o caminho da alma. Abrindo caminhos, no caminhar da sua trajectória vital o corpo esgota a sua energia vivificante[9].
Corpo, alma e espírito são a unicidade, a qualidade de ser único e da unidade, qualidade positiva que se diferencia de toda a outra, i.e., ser um só que não podemos denegar porque se «se negar a alma e o espírito, como explicar o pensamento, a reflexão, a autoconsciência, a liberdade, a experiência de nós enquanto pessoas, enquanto dignidades não redutíveis a coisa?»[10]
Para Montaigne «não há lugar algum na Terra onde a morte não nos possa encontrar, mesmo que contorçamos as nossas cabeças em todas as direcções como se estivéssemos num território dúbio e suspeito (…). Se existisse uma maneira de nos protegermos dos golpes da morte, não sou homem para recuar perante ela. Todavia, é uma loucura pensar que possamos vencê-la. Os homens vão e vêm, correm e dançam, e nunca pronunciam uma palavra a respeito da morte. Tudo está bem enquanto dura, porém, quando ela surge – para eles, para as esposas, para os filhos, para os amigos – apanhando-os desprevenidos e não preparados, oh!, que tempestades de paixões então dominam, que choros, que fúrias, que desesperos! (…). Para privarmos a morte da maior vantagem que detém sobre nós devemos começar por adoptar um caminho completamente oposto ao habitual. Retiremos-lhe toda a sua estranheza, frequentemo-la, habituemo-nos a ela, façamos com que seja o pensamento mais constante nas nossas mentes (…). Não sabemos onde nos espera e, portanto, esperemos por ela em todo o lado. Praticar a morte é exercer a liberdade. Um homem que aprendeu como morrer, aprendeu a não ser escravo»[11].
Todos os seres humanos devem consciencializar-se da sua morte. Morrer implica cumprir duas regras essenciais:
1 - Aceitação e consciencialização da sua própria mortalidade e do que representa morrer.
2 – Aceitação do significado da morte[12].
Quem «galgar este espaço e integrar nele o pensamento da vida quotidiana alcançará a verdadeira natureza do espírito: a eternidade. É nesse espaço que reside a verdadeira paz e a felicidade que a maioria das pessoas procuram fora de si. É nesse espaço que se encontra a vivência da Luz, fonte inesgotável da cura dos grandes males da humanidade»[13]. Isto é, entre a finitude da vida e a infinitude da pós-vida a alma vive para sempre!
Neste sentido, a morte e, principalmente, o morrer não são catástrofes biológicas, são autênticos acontecimentos psicológicos (da mente não demente) que atingem o indivíduo, a sua estrutura familiar e social. É um dos maiores acontecimentos de vida uma vez que diz respeito a todos e fundamenta o sentido da existência humana[14] (o Da-sein).
Viver o Da é ser-no-mundo através de três estruturas: o ser-adiante-de-si como projecto existencial; o desde-sempre-no-mundo como facticidade e o ser no-mundo como ser-junto das coisas e das pessoas. O tempo de vida do Dasein é: projecto (futuro), desde-sempre-já (passado) e junto-de (presente)[15].
Quando um ser humano sente a morte, abre-se a penúltima porta da sua existência. Normalmente, cada consulente tem consciência da gravidade da sua doença devido às complicações físicas, tratamentos médicos prolongados, aumento constante da medicação ou diminuição e alteração das relações pessoais. Nesta altura dá-se início ao processo de confronto consciente e inconsciente com o morrer[16].
Perante o sofrimento de morrer surgem crises existenciais cujas tensões, conflitos e contradições obrigam a profundas mudanças e transformações. Entre os momentos de revolta, dor, tristeza ou esperança, cada pessoa vive a morte como sabe, muitas vezes, à semelhança da maneira como conviveu com as suas crises existenciais, tornando-se a morte um espelho da vida e da maturidade alcançada[17].
Embora o corpo se degrade, a actividade psíquica mantém todo o seu vigor como testemunham os sonhos dos moribundos e a sua apetência relacional. A pessoa tenta aproveitar cada momento de vida antes que a morte o venha buscar. Então, gradativamente, surge uma reacção psíquica à perda dum objecto principal e primordial: o nosso “eu”[18].
A reacção psíquica perante a ameaça da perda do “eu”, nos derradeiros momentos de vida, provoca uma imensa agonia, uma autêntica guerra. Nesta batalha o equipamento psicológico de cada pessoa entra em SOS e liberta os seus principais “guerreiros” (as defesas) para a mais cruel contenda da sua vida: lutar contra a morte e os seus respectivos medos.
Estes "guerreiros" ou se preferirem o termo técnico de mecanismos de defesa[19] perante o morrer são conhecidos como choque, denegação, negociação, cólera, tristeza e aceitação[20].
O choque é considerado como que uma anestesia psíquica provocando uma curta ausência de emoção perante o impacto da realidade.
A denegação por sua vez é uma defesa psicótica que consiste na recusa total de ver a realidade, surgindo uma clivagem do “eu”. Este mecanismo vai permitir a aceitação psicológica de uma situação grave mas com um recalcamento do afecto. Pode durar muito tempo.
Normalmente as pessoas não acreditam no diagnóstico, procurando vários médicos em busca doutras opiniões. Numa parte do dia sabem que vão morrer e ficam deprimidas ou ansiosas, mas à tarde dizem que quando melhorarem vão aprender a tocar piano. Esta reacção é também fruto do facto do inconsciente não acreditar na morte, sabendo que é imortal e isto nada tem a ver com as crenças religiosas, pois surge em todos os indivíduos, incluindo os ateus[21].
Na negociação, a pessoa prepara-se para a morte, pede para não morrer ou para chegar a uma determinada data como o nascimento dum neto, o natal ou as bodas de ouro do casamento. Muitos chegam a sobreviver até estas datas contra todos os prognósticos, morrendo rapidamente a seguir. Há quem dialogue com entidades superiores, exprima os seus desejos mais profundos, revele interesse pelos outros ou procure dar e receber carinho, no entanto, a motivação destas atitudes não é intrínseca e está dependente do desejo de conseguir sobreviver ou adiar a morte.
Em relação à cólera, ela é marcada pela agressividade contra os médicos, contra o pessoal de enfermagem, a família e os amigos. É uma fase importante pois é necessário que a energia saia e às vezes devem criar-se condições para que ela seja manifestada, podendo durar apenas quinze segundos que são suficientes para o processo desanuviar e não cristalizar. As pessoas estão altamente sensíveis e qualquer coisa resulta em descalabro, tornando-se precioso que os «cuidadores» imponham limites, evitem infantilizar o consulente e lhe digam que a origem da raiva é o avizinhar da morte e não as pessoas à sua volta.
A fase da tristeza não é patológica mas sim de antecipação ou preparação. Quem está nesta fase só deseja uma ou outra pessoa por perto, acontece uma espécie de regressão onde se recusam a levantar, falar, tomar banho ou comer e surgem sensações arcaicas que procuram o contacto ou as necessidades uterinas da segurança de base, sendo frequente encontrar as pessoas na posição fetal. É dentro desta tristeza que se encontra a paz necessária que permitirá o desprendimento para se realizar a passagem. Por fim, aceitamos o inevitável sabendo que não temos escolha.
Há quem viva a morte como um nascimento ou uma mudança dependendo da maturidade e evolução de cada um. Esta fase representa o último acto de vida onde muitos morrem num coma agonizante principalmente se viverem a morte e a vida como um falhanço, outros entram num coma profundo, outros numa imensa agitação ou confusão e outros têm «boas mortes». Quando algo na nossa vida psíquica não é elaborado conscientemente, acaba por ser elaborado no inconsciente e muitos julgam que o coma não tem importância mas é um trabalho que é feito no interior do ser e há mesmo quem acorde do coma para realizar um último acto, enquanto outros o mantêm de alguma forma para a família se preparar para a perda e para a partida[22].
O medo da decadência física ou mental, seja de perder o controle do corpo ou da consciência, é uma das principais questões da eutanásia pois mexe com a dignidade e com o facto da pessoa ficar dependente e muitos desejam pôr termo à sua vida. A família é especialmente afectada uma vez que precisa de manter uma certa imagem mental do familiar, no entanto, é durante estes momentos que os moribundos mudam a consciência sobre as coisas tendo um ponto de vista diferente, não tão centrado no orgulho, como refere Charcot[23]. Dão valor a pequenas coisas, ao olhar, ao toque dos outros ou ao aroma do lençol lavado. O toque tem uma posição de destaque no acompanhamento destas pessoas pois para além do cérebro, a pele também tem memória sendo necessário que a pessoa encontre prazer na maneira como é cuidada, podendo assim criar fortes alianças e suportes afectivos.
No receio de não controlar os acontecimentos há o desejo de saber como se vai morrer, como tudo se vai passar e até como a alma se vai separar do corpo. Há patologias cuja morte é agonizante como o caso das asfixias ou hemorragias e os moribundos percebem muitas vezes isto.
É muito importante que os técnicos de saúde digam ao doente que ele vai ser ajudado a superar mais esta crise e que estará sempre acompanhado por pessoal especializado, assim como por familaires. Se o consulente perguntar «como vai ser a minha morte?» a resposta a dar é: como é que ele gostaria de morrer.
Embora seja ainda impossível perceber empiricamente o que se passa com a psique (alma) durante a morte física, há investigadores da consciência (alma) que referem que ocorre um natural processo de dissolução do ser, onde primeiro se dissolvem as nossas percepções, depois os nossos sentimentos, as tendências inconscientes, o livre arbítrio e finalmente a consciência[24].
Em relação ao medo da separação dos entes queridos temos de recordar-lhes que muito há para fazer, como por exemplo, assuntos inacabados, fazer as pazes com um filho, cônjuge, irmão, pagar dívidas ou distribuir as partilhas.
Finalmente, o medo metapsíquico refere-se ao que se vai passar durante e depois da morte e há até quem refira que por detrás do medo da morte está o medo do desconhecido[25]. Está mais presente nos idosos do que nos jovens dada a força das representações religiosas sobre o dia do julgamento final e do purgatório.
Os relatos de experiências de quase morte (EQM) possuem um efeito tranquilizador sobre estes receios sabendo que não existe nenhuma entidade superior que julga ou castiga, existindo apenas luz e amor.
O ideal será cada pessoa ter uma atitude serena perante o além, perante o desconhecido, sabendo que em vida fez o que pode ou foi o mais longe possível em termos espirituais. Surge na maioria dos casos um sentimento de culpa sobre assuntos pesados que induzem a necessidade de libertação e aqui o cuidador deve ouvir a história da pessoa sem julgar, buscando os aspectos positivos. Reconfortá-lo, abraçando-o quando chama pela mãe, comprometer-se a estar por perto todos os dias ao lado da pessoa para o ouvir e cuidar, tomando conta das pequenas coisas.
Confúcio dizia que quando temos medo, devemos arranjar um amigo de forma a partilhar esse medo, já que perante qualquer sofrimento humano é a ajuda e o apoio dos outros que permite naturalmente minorá-lo. No entanto, nesta batalha surgem também os danos colaterais, nomeadamente em relação à família que muitas vezes está menos preparada do que o moribundo para a perda e para o respectivo luto.
A comunicação entre ambos fica dificultada dado o choque do diagnóstico, a gravidade da doença e a provável evolução da morte. Muitas vezes esta informação é dada à família, aconselhando-a a não dizer nada ao doente na intenção de o proteger, mas é a partir daí que surge uma barreira na comunicação ou como refere Hennezel, ergue-se um muro de silêncio entre ambas as partes[26].
Gera-se um desconcerto na constelação de familiares e amigos que ficam prisioneiros daquilo que devem ou não devem dizer. Numa altura onde todos sentem que deviam estar próximos e ser verdadeiros, entra-se na conhecida conspiração do silêncio.
Certamente que não é possível controlar ou conhecer muitos dos acontecimentos de vida mas no entanto temos sempre a liberdade de escolher a maneira de reagir a eles e de lhes dar significado[27]. Houve pioneiros na área da morte e do morrer que adoptaram esta liberdade e baptizaram as fases terminais de vida como a fase da passagem, onde se subentende que após a morte a pessoa passaria para uma outra frequência existencial[28].
A experiência do morrer pode assim representar uma derradeira oportunidade para se encontrar um significado para a nossa existência, já que a morte ou a doença representam metáforas para a alma que agudizam a consciência da quão preciosa é a vida e do que temos andado a fazer com ela[29].
É neste sentido que a raiz da angústia e do sofrimento psico-espiritual perante a morte, provém do facto de ela forçar cada pessoa a procurar as verdadeiras questões da sua existência como: o que acontecerá quando a vida biológica terminar? Quem somos nós? Qual o significado da vida e se haverá algo depois dela? Para onde vão os que nos deixam?[30].
A morte representa entre as experiências humanas, aquela que mais profundamente toca nas dimensões afectivas e espirituais de cada ser, no entanto como só olhamos para ela do ponto de vista físico e mental, os medos da morte prevalecem e cristalizam-se bem como as nossas respostas, atitudes e comportamentos perante a morte e o morrer[31].
Não podemos mudar o rumo a muitos dos acontecimentos de vida mas temos no entanto, o livre arbítrio de lhes dar sentido. A experiência da morte como qualquer outra crise, pode representar uma derradeira oportunidade para se encontrar esse significado, já que tanto a morte como a doença representam metáforas para a alma, agudizando a consciência de quão preciosa é a vida e do que temos andado a fazer com ela[32].
No final, é bom que todos entendam que ninguém vence esta batalha por muitos guerreiros ou aliados que possamos ter, incluindo o super-guerreiro tecnocrata da criogenia. Aliás a melhor estratégia para o processo do morrer passa por baixar as armas, por nos rendermos à corrente da vida sem resignação e se possível com consciência, entregando a nossa vida à fonte de onde viemos. Talvez não seja por coincidência que as palavras mais ouvidas da boca dos moribundos, sejam as palavras “Mãe” e “Deus”, talvez não seja por coincidência que Françoise Dolto referia que “o importante é que o moribundo largue o seu corpo, da mesma maneira que um recém-nascido deve largar a placenta e o cordão umbilical…é a última divisão do ser humano… para quê?… não sabemos, é um mistério…um segredo…”.
No deserto espiritual do Ocidente há cada vez mais pessoas que abraçam o Budismo. No Budismo a morte é tão natural como meditar ou respirar. Ao morrer a consciência liberta-se do corpo. A libertação da alma faz-se na seguinte ordem:
TERRA – carne, ossos, olfacto; perda de força e energia, sensação de afundar ou ser esmagado, não se consegue suportar a cabeça, desconfortável em todas as posições e sensação de peso, pele pálida, manchas escuras nos dentes, dificuldade em abrir os olhos, a mente agita-se e delira e depois cai em sonolência, na mente ocorrem miragens tremeluzentes. A terra retira-se para o elemento água;
ÁGUA – sangue, paladar, líquidos; perda do controle dos fluídos, babamo-nos e o nariz escorre, incontinência e descarga lacrimal, não se consegue mexer a língua, boca e garganta entupidas, cheios de sede, trememos e sofremos espasmos, alternamos entre sensações de dor e de prazer, calor e frio, a mente fica enevoada, frustrada, irritável e nervosa, sensação de ser arrastado para um enorme rio, a mente fica turva e surgem visões de um nevoeiro com remoinhos de farrapos de fumo. A água está a dissolver-se no fogo;
FOGO – temperatura, visão e formas; boca e nariz secam completamente e todo o calor do corpo começa a desaparecer, em geral a partir dos pés e das mãos em direcção à cabeça, já não se consegue beber ou digerir seja o que for, a mente oscila entre a claridade e a confusão, não nos lembramos do nome dos nossos queridos nem os reconhecemos, a percepção do exterior é muito difícil, parece que somos consumidos por uma chama ou que estamos num centro de um braseiro ardente ou a ver o holocausto. A mente preenche-se com faíscas vermelhas tremeluzentes como se dançassem por cima de uma fogueira como pirilampos. O fogo dissolve-se no ar;
AR – respiração, tacto, sensações; cada vez mais difícil respirar, começamos a ofegar, as inalações são curtas e difíceis e as expirações são mais prolongadas, os olhos rolam para cima e ficamos imóveis, a mente está completamente confusa, sem consciência do mundo exterior, a nossa última sensação de contacto com o ambiente físico está a perder-se, alucinações e visões que podem ser aterrorizadoras, gritos de terror ou por outro lado visões celestiais e abençoadas, encontrar entes queridos desaparecidos, sensação de um grande vento que varre tudo. A mente ilumina-se como uma tocha ou uma vela a arder com um clarão vermelho. 3 gotas de sangue no coração que dão 3 prolongadas expirações, de repente tudo cessa. Ligeiro calor no coração, todos os sinais vitais desaparecem[33].
A passagem entre a morte para sempre e uma vida para sempre surge num natural processo de dissolução do ser. Primeiro dissolvem-se as percepções depois, os sentimentos, as tendências inconscientes, o livre arbítrio e, finalmente, a alma (consciência).
Labutar o trabalho de passagem é preparar a pessoa para aceitar a passagem e ajudando a exteriorizar os medos e temores do morrer, preparando-a para entrar em contacto com aquilo que não conhece de si mesma, da vida e da morte.
Trabalhar a passagem é permitir que o consulente exteriorize as angústias e o sofrimento perante a morte e, principalmente conduzi-lo às verdadeiras questões da existência, isto é, o consulente deverá ser capaz de se questionar sobre:
a) O que acontecerá quando a vida biológica terminar?
b) Quem somos nós?
c) Qual o significado da vida
d) Haverá vida depois da morte?
e) Quando morrer, o que é que morre em mim?
A morte deve representar entre as experiências humanas, aquela que mais profundamente nos leva às nossas dimensões afectivas e espirituais, no entanto como só olhamos para ela do ponto de vista físico e mental, os medos da morte prevalecem e cristalizam-se[34].
A ciência é dotada da sua visão biomédica que é a grande autoridade sobre a morte e o morrer pois 85% das pessoas têm a probabilidade de vir a falecer num hospital. Esta visão define a morte como a ausência de sinais vitais detectáveis clinicamente, a ausência de actividade cerebral e finalmente como a perda irreversível das funções vitais. É uma perspectiva óbvia, lógica e inquestionável mas é reducionista, degenerativa e profundamente materialista. Como resultado a morte torna-se sinónimo de fracasso, de impotência e de inconveniência para o dito progresso científico, adquirindo assim um significado oposto à vida, parecendo existir só num dos extremos da vida e sendo contrária à noção de bem-estar[35].
(continua)
[1] Professor no Instituto Superior de Ciências Educativas. Doutor em Antropologia Social e Cultural, DEA em Sistemas de Identidade e Identificações do Mundo Contemporâneo, Mestre em Espaço Lusófono: Economia, Sociologia e Política, Mestre em Clínica em Saúde Mental.
[2] Mestrando em Relação de Ajuda na Perspectiva Fenomenológica Existencial, ISPA. Licenciado em Psicologia.
[3] Estudos científicos de: Elizabeth Kübler-Ross, Raymond Moody, Kenneth Ring, Margot Grey, Fred Nayor, etc.
[4] MARUJO, J. P. - A Morte como Paradigma de Vida. Lisboa, Instituto Francisco Marques Rodrigues, 1980.
[5] CREMA, R. – "Holística, uma mutação de consciência", in: Manual da formação holística de base. Lisboa, Unipaz, turma VII, 2004/2005.
[6] RINPOCHE, S. – O livro Tibetano da vida e da morte. Lisboa, Prefácio, 2001.
[7] ARIÉS, P. - O Homem perante a morte. Mem Martins, Edições Europa-America, 2000.
[8] MARUJO, J. P. - A Morte, a Vida, o Morrer e o que será o DEPOIS? Lisboa, Instituto Francisco Marques Rodrigues, 1980.
[9] MARUJO, J. P. – Worshop sobre constelação familiar. Porto, Laboratório Epistemológico Unitranspessoal, 1998.
[10] BORGES, A. – "Nota de apresentação", in: LAIN ENTRALGO, P. – Corpo e alma. Coimbra, Almedina, 2003.
[11] MONTAIGNE, M. – The essays of Michel de Montaigne. London, Penguin Classics, 1993.
[12] LELOUP, J. Y. - Além da luz e da sombra: Sobre o viver, o morre e o ser. Petrópolis, Vozes, 2002.
[13] WEIL, P. – "Prefácio", In: A psicoterapia transpessoal. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1999.
[14] HENNEZEL, M. – "O Papel do psicólogo", in: ABIVEN, M. - Para uma morte mais humana. Lisboa, Lusociência, 1997.
[15] MARUJO, J. P. – A morte como paradigma de vida. Lisboa, Centro de Formação do Hospital Pulido Valente.
[16] HENNEZEL, M. – "O Papel do psicólogo", in: ABIVEN, M. - Para uma morte mais humana. Lisboa, Lusociência, 1997.
[17] LELOUP, J. Y. - Além da luz e da sombra: Sobre o viver, o morre e o ser, 2002.
HENNEZEL, M. – "O Papel do psicólogo". 1997.
HENNEZEL, M.; LELOUP, J. Y. - A arte de morrer. 1998.
HENNEZEL, M. – "Curso de cuidados paliativos", in: Módulo 2 – O acompanhamento psicológico nos momentos finais de vida. Unipaz. Lisboa, 2001.
[18] Hennezel, M. (2001). Curso de Cuidados Paliativos, Módulo 2 – O Acompanhamento Psicológico nos Momentos Finais de Vida. Unipaz. Lisboa.
[19] Para Kübler-Ross, os mecanismos de defesa são:
a) Negação: Esta fase caracteriza-se pela recusa inicial da realidade. O doente continua a trabalhar, consulta mais que um médico no intuito de escutar um diagnóstico diferente. A negação funciona como uma atitude de defesa ao diagnóstico. Esta atitude inicial de recusa vai dar lugar ao isolamento;
b) Raiva: O doente vivencia nesta fase sentimentos de raiva, de revolta e de ressentimento. É mais difícil de lidar com ele nesta fase do que na anterior porque este manifesta a sua raiva em todas as direcções: família, técnicos de saúde e ambiente. Esta situação é agravada se os técnicos de saúde não analisam o motivo da raiva e a ssumem em termos pessoais;
c) Negociação: Esta fase caracteriza-se por ser uma tentativa de adiamento que inclui uma promessa implícita, geralmente não cumprida. A maioria das negociações são feitas com Deus e habitualmente mantidas em segredo;
d) Depressão: Quando o doente não pode mais negar a sua doença, quando começa a apresentar novos sintomas e a ficar debilitado, a revolta vai dar lugar a um sentimento de grande perda. Refugia-se no seu mundo interior, desinteressando-se por tudo o que o rodeia e vive em silêncio uma triste preparação;
e) Aceitação: Se o doente encontra ajuda para superar as fases anteriores, vai contemplar o seu fim com um certo grau de tranquilidade. Nesta fase, geralmente, a família carece mais de ajuda e apoio do que o próprio doente.
[20] HENNEZEL, M. - O Papel do Psicólogo. 1997.
HENNEZEL, M.; LELOUP, J. Y. - A Arte de Morrer. 1998.
HENNEZEL, M. - Curso de Cuidados Paliativos, Módulo 2 – O Acompanhamento Psicológico nos Momentos Finais de Vida. 2001.
KÜBLER-ROSS, E. - On Death and Dying. New York, Macmillan, 1969.
TWYCROSS, R. - Cuidados Paliativos. Lisboa, Climepsi, 2001.
[21] Freud, S. - Considérations Actuelles sur la Guerre et la Mort. The Hogarth Press, 1957..
[22] HENNEZEL, M. - Curso de Cuidados Paliativos, Módulo 2 – O Acompanhamento Psicológico nos Momentos Finais de Vida. 2001.
[23] HENNEZEL, M. - Curso de Cuidados Paliativos, Módulo 2 – O Acompanhamento Psicológico nos Momentos Finais de Vida. 2001.
[24] LEVINE, S. - Who Dies?. New York, Anchor Books, 1982.
[25] LELOUP, J.Y. - Além da Luz e da Sombra: Sobre o viver, o morre e o ser. 2002.
[26] HENNEZEL, M. - O Papel do Psicólogo. 1997; HENNEZEL, M.; LELOUP, J. Y. - A Arte de Morrer. 1998.
[27] FREUD, S. - Considérations Actuelles sur la Guerre et la Mort. 1957.
[28] KÜBLER-ROSS, E. - A Roda da Vida. Rio de Janeiro, Sexante, 1998.
[29] BOLEN, J. S. - Até ao Mais Íntimo do Ser. Lisboa, Planeta Editora, 1996.
[30] LELOUP, J. Y. - Além da Luz e da Sombra: Sobre o viver, o morre e o ser, 2002; HENNEZEL, M.;LELOUP, J.Y. - A Arte de Morrer. 1998.
[31] Kübler-Ross, E. - On Death and Dying, 1969; FRANKL, V. - Man´s Search for Ultimate Meaning. New York, Edition Plenum Press, 1997; BOLEN, J. S. - Até ao mais íntimo do ser. Lisboa, Planeta Editora, 1996;GROF, S. - Books of the dead: Manuals for living and dying. London, Thames and Hudson, 1994.
[32] BOLEN, J. S. - Até ao mais íntimo do ser. 1996.
[33] RINPOCHE, S. - O livro Tibetano da vida e da morte. Lisboa, Prefácio, 2001.
[34] MARUJO, J. P. - A Morte como Paradigma de Vida. 1980.
[35] HENNEZEL, M.; LELOUP, J. Y. - A arte de morrer, 1998; HENNEZEL, M. – "Curso de Cuidados Paliativos", 2001; TWYCROSS, R. - Cuidados paliativos, 2001; GROF, S. - Books of the dead: Manuals for living and dying, 1994; BERNARDO, M. – Introdução, in: PORTELA, J.; NETO, I. - Dor e cuidados paliativos