WEBSITE EM ACTUALIZAÇÃO DEMORADA. OS CONTEÚDOS MANTÊM-SE ACESSÍVEIS.
NOVEMBRO 2020 VOX
O estudo do modernismo português não precisa de cânones. Precisa é de expandir o universo de investigação e rever ideias feitas. (Como, por exemplo, quando é que começou nas artes visuais.)
por João Macdonald
1.
O modernismo português tem mais sub-camadas do que as geralmente aceites. É necessário rever precisões e alargar o universo merecedor de análise. Também é crucial parar de dar graus: não faz grande sentido classificar com maior ou menor modernismo este ou aquele artista, ou que proximidade parisiense nele se manifestou. Não houve modernismo, houve modernismos, é hoje límpido. Existiram comportamentos que, não sendo categoricamente transgressores, e por vezes muito diluídos, têm de ser considerados no espectro. Falta reapreciar certos elementos e valorizar outros que costumam estar em notas de rodapé de notas de rodapé.
Logo em 1995 José Carlos Seabra Pereira diagnosticou um aspecto específico do problema, ao esclarecer o tratamento do decadentismo (em História Crítica da Literatura Portuguesa), que pode ser adaptado à questão: “Em parte, esta desfortuna crítica do Decadentismo em Portugal reflectiu a lentidão e as resistências com que a história e a crítica literárias estrangeiras (sobretudo as de origem francesa, seguidas em demasia) foram reconhecendo analiticamente a autonomia interactiva do Decadentismo e a sua importância para a construção corrente e eficaz do quadro de inteligibilidade da dinânica literária pós-naturalista e pré-modernista”. (1)
(Sobre aquele predomínio gaulês note-se, por contraste, a rara ou nula influência crítica-historiográfica em Portugal de especialistas no modernismo como Richard Sheppard, Malcolm Bradbury e James McFarlane, T.J. Clark.)
Há exemplos notáveis do caminho a percorrer, como a pesquisa que Rita Marnoto dedica ao chamado ciclo futurista de Coimbra desde 2000. O próprio Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, de 2008 (Editorial Caminho), projecto marcante coordenado por Fernando Cabral Martins, tem entradas que abriram algumas discussões.
2.
Uma das revisões a fazer é a da arrumação cronológica. Daí ser oportuno voltar a uma pergunta normalmente tida como resolvida: quando começou o modernismo pictórico português? Não que o propósito da história da arte (e da de tudo o resto) seja exaltar quem “chegou primeiro à América”, ou sequer quem ouviu falar primeiro do assunto, é bem sabido (se assim fosse, cometer-se-ia o erro grave de desvalorizar o assíncrono surrealismo português). O pioneirismo não interessa. O que interessa é assinalar o quando para perceber como aconteceram as inflexões originais em relação ao padrão artístico dominante, para entender melhor os cortes imediatos ou futuros. Aliás, e não poucas vezes, a conduta de um artista, ou de um grupo, teve mais relevo do que a obra executada.
3.
A estipulação do arranque público do modernismo pictórico português é continuamente debatível, não tem resposta unívoca, mas não se localiza forçosamente na Exposição Livre de 1911, (2) apesar deste evento ter sido um exercício organizado e fundacional de alguns da geração dita avançada. Há outras abordagens. O investigador Osvaldo Macedo de Sousa, referindo-se em concreto a “modernismo gráfico”, opta por 1909, com o primeiro número de O Gorro – Jornal dos alunos do Liceu de Coimbra (até 1910), que reuniu os desenhistas Correia Dias, Christiano Cruz, Cerveira Pinto e Luís Filipe: “são (...) os introdutores do modernismo em Portugal, já que entraram em ruptura com a escola naturalista, optando pela síntese expressionista (de influência germânica)”. Foram os "primeiros passos da síntese levada ao extremo abstracto-figurativo, em que o expressionismo esboçado por Leal da Câmara e Celso Hermínio na década anterior ganham uma nova vida". (3)
Ora, precisamente, mas ainda mais a montante – 1898 –, pode antepor-se A Corja! – Semanário de caricaturas, do mesmo Leal da Câmara, que teve colaboração de Sebastião Sanhudo, "correspondente" do Porto e nome maior da caricatura oitocentista. (4) A Corja! mostrou o entendimento de artistas de tempos sobrepostos, sintoma da transição (Leal já estava, de certa forma, no século seguinte antes dele começar: note-se por exemplo as suas caricaturas caligráficas nas capas dos números 14 e 17, caso por ventura único, à época, no plano nacional, que não no europeu). Esse sintoma de viragem plástica (não ignorando o interesse de Souza-Cardoso pela caricatura pelo menos desde 1906) reflectiu-se de imediato nas charges e ilustrações da Revista Nova (1901-1902, onde reapareceu Leal da Câmara); em Azulejos – Semanário ilustrado de ciências, artes e letras (1907-1909, caricaturas de Aarão de Lacerda, C. Craveiro, João Bastos e Alfredo Cândido); e em A Farça – Quinzenário humorístico ilustrado (1909-1910, que teve a mesma equipa artística que O Gorro excepto Cerveira Pinto, e que surgiu um mês após aquele, em Dezembro).
[Noutro plano, antes, durante e depois disto tudo, houve a modernidade de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) e de António Carneiro (1872-1930), protagonistas, para Raquel Henriques da Silva, de “desvios naturalistas nacionais”. (5) Maria de Aires Silveira nomeia Columbano “o artista que melhor expressa valores de modernidade”; Bernardo Pinto de Almeida, sublinhando que o “século do modernismo” começou “sob o signo anti-naturalista e anti-realista, introduzido pelo ideal radicalmente moderno do simbolismo”, afirma que “também em Portugal esse abalo pôde ter fulgor e lugar de inscrição próprios, pela mão e temperamento sensíveis de António Carneiro”. (6)]
Mas os introdutores daquela abertura pela via do humor, mesmo os mais ágeis como Leal e Cruz, acabaram por não incorrer num registo completamente avançado. Por isso, se quisermos fixar o dito arranque em termos realmente (pré-)fracturantes (e pós-Columbano e Carneiro), é preciso trazer também a debate duas acções de Santa Rita Pintor anteriores à Exposição Livre. A primeira foi reprodução da sua pintura O Monstro Quasimódeo na revista Serões em Janeiro de 1910, peça que, embora provavelmente executada em contexto escolar, extravazou as directrizes lectivas. A segunda, estando já em Paris como bolseiro, tratou-se do envio à Academia de Belas-Artes em Dezembro seguinte de uma cópia de Olympia de Manet, executada em academia independente (Laurens) para acesso à École des Beaux-Arts (onde nunca entrou), provocação consciente à instituição lisboeta auto-refém do naturalismo, mostrada na exposição de alunos em Março-Abril de 1911 – e sonoramente rejeitada por José Figueiredo em crítica no jornal República (25 de Março).
O Monstro Quasimódeo foi uma intuição; Olympia foi uma declaração de corte (isto para não ir ao seu excêntrico Orfeu nos Infernos, pintura inaugurada em Portugal Futurista, de 1917, mas desenvolvida durante o período escolar). Uma vez que em 1910 o meio nacional não estava a par do progresso de Amadeo, que obviamente precedeu Santa Rita, será razoável ver aquelas acções do Pintor como golpes públicos no establishment artístico, ainda que tenham sido pulsões individuais e não uma estratégia como a esboçada pelos livres de 1911, ou sequer uma afirmação plástica de rompimento. Foram, digamos, incumprimentos que ele próprio ainda não sabia virem a ser consequentes. M
NOTAS
(1) PEREIRA, José Carlos Seabra. História Crítica da Literatura Portuguesa [Do Fim-de-século ao Modernismo], coord. Carlos Reis, p. 22, 2.ª ed. (1.ª ed. 1995). Lisboa: Editorial Verbo, 2004.
(2) Com Francisco Smith, Francisco Álvares Cabral, Domingos Rebêlo, Emmerico Nunes, Alberto Cardoso, Manuel Bentes, Roberto Colin (brasileiro).
(3) SOUSA, Osvaldo Macedo de. "O modernismo pelo humorismo (2.ª parte)", 15 de Novembro de 2007; "O centenário do modernismo gráfico em Coimbra (1909-2009)", 17 de Novembro de 2009. Humorgrafe – Um blog de informação sobre humor e caricatura.
(4) Sobre o ainda pouco falado caricaturista nortenho, ver DUARTE, Rui Manuel da Costa Fiadeiro. Sebastião Sanhudo – Imprensa, humor, caricatura e o Porto da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX, dissertação de doutoramento. Porto: Universidade Católica, 2006.
(5) SILVA, Raquel Henriques da. “Sinais de ruptura: ‘livre’ e humoristas”. História da Arte Portuguesa – Volume 09 – A ruptura moderna (século XX), dir. Paulo Ferreira, pp. 7-8. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008.
(6) ALMEIDA, Bernardo Pinto de. Arte Portuguesa no Século XX – Uma história crítica, p. 48. Matosinhos: Cardume Editores/Coral Books, 2016.
Capa de O Gorro (1909) com desenho de Christiano Cruz.
Capa de A Corja! (1898) com desenho de Leal da Câmara.
O Monstro Quasimódeo de Santa Rita Pintor reproduzido em Serões (1910), ilustrando um soneto de Santos Vieira.