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MAIO 2020 DOCUMENTOS
Reproduzem-se dois textos de 1918, nunca referenciados, úteis para perceber a imagem pública do artista na data da morte.
por J.M.
Os geralmente breves registos obituários da imprensa dos anos 1910 sobre os modernistas, obviamente escritos num período em que quase todos eles ainda não eram celebráveis como vultos artísticos nacionais e, portanto, não eram referência maior no que quer que fosse a cultura geral dos jornalistas de então, esses registos têm, além da importância documental cronológica, o préstimo de transmitirem alguma forma de imagem pública, quando não popular, dos desaparecidos – mesmo que essas percepções tenham reflectido (e não foi raro) a espirituosa definição de Chesterton de que “o jornalismo largamente consiste em dizer ‘Lord Jones morreu’ a pessoas que não sabiam que ele estava vivo” (The Wisdom of Father Brown, 1914).
A morte de Amadeo de Souza-Cardoso em 25 de Outubro de 1918 em Espinho (junto dos ares atlânticos, na esperança de recuperar da pneumónica) não foi abundante naquele género jornalístico. Tanto quanto se conseguiu apurar, apenas cinco títulos de alcance nacional (de cerca de 20 desse género existentes na época) deram notícia: quatro de Lisboa (um deles duas vezes) e apenas um do Porto. A imprensa regional informou no semanário Flor do Tâmega, periódico de relevo em Amarante (o único referenciado em estudos até à publicação do presente texto). (1) Tal constrasta muito com a morte de Santa Rita Pintor em Abril do mesmo ano: 24 referências, 17 delas na imprensa lisboeta, uma na portuense e seis na brasileira. A explicação para a diferença não é complicada: o perfil discreto de Amadeo e o facto de não residir na capital colocavam-no mais longe da atenção das redacções do que o excêntrico Pintor.
É admissível que um ou mais amigos próximos de Amadeo tenham enviado textos evocativos para alguns títulos, mas ignora-se se existem, inéditos ou não (ao contrário de Santa Rita, mais uma vez, que teve essa honra num jornal). Um reduto de notoriedade aufere-se pela forma como a notícia chegou a Lisboa: foi minimanente importante para enviar-se por telégrafo no próprio dia da morte (a família terá sido a fonte). A Manhã (2) e A Situação (3), ambos em poucas linhas, publicaram no dia seguinte o desaparecimento do “pintor futurista”, com o segundo voltando ao assunto a 27 e classificando-o como "um dos mais ferverosos apóstolos do futurismo" (4); A Ordem, também a 27, tão só falou de “pintor” (5). O Flor do Tâmega fê-lo igualmente nesse dia (era um jornal semanário), sem referências artísticas, (6) e em 10 de Novembro publicou um agradecimento da família pelas condolências recebidas (que englobavam “quatro entes queridos”, Amadeo entre eles). (7)
Há dois obituários relevantes (mas não extensos, e sem assinatura) no sentido de terem procurado fazer um retrato mais apurado de Amadeo, e por apurado entenda-se a inclusão de umas poucas notas biográficas e uma noção (errónea) da arte que ele praticou. Acima de tudo, reitere-se, transmitem uma certa imagem pública do artista.
EM O PRIMEIRO DE JANEIRO
Eis o que o portuense O Primeiro de Janeiro disse (dia 26), (8) começando por referir-se às exposições de 1916 (reproduz-se sic):
"Falleceu em Espinho o sr. Amadeu Cardoso, pintor, que pela estranha bizarria da sua tecnica conseguiu uma ruidosa notoriedade quando expoz, no Porto e em Lisboa, os seus singulares trabalhos que elle qualificava de 'pintura abstracionista'.
Amadeu Cardoso foi muito discutido, os seus quadros provocaram hilaridade e troça e, comtudo, o artista possuia aptidões apreciaveis, era intelligente e culto, havendo entre a sua obra desenhos de grande merecimento.
O extinto, muito novo, era filho do nosso presado amigo sr. José Emidio de Sousa Cardoso, a quem enviamos, como a toda a familia enluctada, a expressão do nosso sincero pesar."
EM O DIA
O outro texto é do lisboeta O Dia, de 28 (9) (foi-me revelado por Luís Lyster Franco, a quem agradeço – o recorte guardou-o seu bisavô Carlos Lyster Franco num exemplar original de Portugal Futurista; sobre isto, ver este outro artigo em MACHINA). Nele o articulista coloca Amadeo na “vanguarda dos [sic] obstencionistas”. Ignorância? Queria dizer abstraccionistas? Erro de transcrição do tipógrafo? Note-se ainda a referência aos artistas (sic) “Picaço, Delaunay, Branchousi”, e à esposa Lucie, que também sofreu a pneumónica, mas sobreviveu, e a imprecisão sobre a exposição no "anno passado" na Liga Naval, que na verdade foi em 1916. A transcrição sic:
"Desoladora e pungente esta notícia que tivémos no sabbado quando já o Dia entrára nas machinas: morreu em Espinho, victimado pela grippe pneumonica, o jovem e muito conhecido pintor Amadeu Cardoso, que ainda no anno passado fez na Liga Naval uma interessante exposição de quadros, onde na sua arte excentrica deixou fundos sulcos do seu bello talento artistico.
Morreu quando tudo lhe sorria na vida promettedora de triumpho, quando a sua alma sequiosa de luz e aquecida no sol da mocidade tentava novos vôos nas vastas regiões da Arte, que n'elle perdeu alguem que bem a comprehendia e apaixonadamente a amou.
Era filho da sr.ª D. Emilia Fragoso e do nosso presado correligionario sr. José Emygidio de Sousa Cardoso. Intelligencia rara, dotado de excepcionaes qualidades intellectuaes e moraes, Sousa Cardoso viveu largos annos em Paris, onde, em convivencia de Picaço, Delaunay, Branchousi e outros, marchava na vanguarda dos obstencionistas, de cuja escola era um ornamento valioso e considerado.
Esbelto, elegante, d'uma educação primorosa, Sousa Cardoso não parecia um 'pintor', na accepção romantica d'esta palavra. Cavaqueador emerito, artista e 'sportmen', a sua perda foi uma dura provação para seus paes que o idolatravam e para a sua esposa, que, ainda convalescente tinha por elle uma verdadeira adoração.
Aos que, já enluctados, agora são oprimidos perante novo desgosto e o choram irresignados e em especial a seu tio o nosso bom amigo e querido amigo Francisco Cardoso, asseguramos a grande parte que tomamos na sua amarga dôr." M
NOTAS
(1) BELÉM, Margarida Cunha, e RAMALHO, Margarida Magalhães. Amadeo de Souza-Cardoso. Colecção Fotobiografias Século XX, dir. Joaquim Vieira, p. 186. Lisboa: Temas & Debates, 2009.
(2) ANÓN.. “Porto, 25. – Faleceu hoje em Espinho”. A Manhã, dir. Mayer Garção, ano 2, n.º 590, p. 2, 26 de Outubro. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1918.
(3) ANÓN.. "Do Porto pelo telégrafo - (...) - Faleceu na praia de Espinho. A Situação - Diário republicano da manhã, dir. Jorge Botelho Moniz, ano 1, n.º 177, p. 2, 26 de Outubro. Lisboa: Empresa A Situação, 1918.
(4) ANÓN.. "Os mortos - (...) - Amadeu de Sousa Cardoso". A Situação - Diário republicano da manhã, dir. Jorge Botelho Moniz, ano 1, n.º 178, p. 2, 27 de Outubro. Lisboa: Empresa A Situação, 1918.
(5) ANÓN.. "À sombra da cruz - Falecimentos - (...) - Amadeu de Sousa Cardoso". A Ordem - Diário católico, dir. J. Fernando de Souza, ano 3, n.º 826, p. 3, 27 de Outubro. Lisboa: Empresa A Ordem, 1918.
(6) ANÓN.. “[info. em falta]”. Flor do Tâmega - Órgão dos interesses do concelho. Dir. Pedro Carneiro, ano 32, n.º 1660, p. 2, 27 de Outubro. Amarante: Pedro Carneiro, 1918.
(7) [família Sousa Cardoso] “Agradecimento”. Flor do Tâmega - Órgão dos interesses do concelho. Dir. Pedro Carneiro, ano 32, n.º 1662, p. 2, 10 de Novembro. Amarante: Pedro Carneiro, 1918.
(8) ANÓN.. “Necrologia – Falecimentos”. O Primeiro de Janeiro, dirs. Gaspar Baltar e Joaquim França de Oliveira Pacheco, ano 49, n.º [info. em falta], p. 2, 26 de Outubro. Porto: s.n., 1918.
(9) ANÓN.. "Amadeu Cardoso". O Dia, dir. J.A. Moreira de Almeida, ano 19 (29 do período total), n.º [info. em falta], p. [info. em falta], 28 de Outubro. Lisboa: Empresa O Dia, 1918.
Amadeo de Souza-Cardoso em 1918.
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