A Nobre e o Cavalariço
O «mito da fortuna perdida»: a ancestral nobre ou rica que fugiu com o cavalariço
«O mito da fortuna perdida»
Não é raro um genealogista ser consultado ou contratado para descobrir «qual a nobre com quem meu bisavô se casou» já que na família do consulente existe a estória de que a bisavó era filha de um conde (ou outro título de nobreza) que fugiu com o cavalariço do palácio.
Quando a família descobriu sua fuga, ela foi deserdada e a desditosa jovem perdeu todo o direito à herança que lhe cabia.
Essa lenda é comum em muitas famílias, em especial dos que tem origem entre os imigrantes europeus. No entanto, em 99,9% dos casos é uma lenda mesmo.
Não tem nada de mais alguém tentar achar ancestrais nobres na sua árvore genealógica. É uma procura legítima. Mas se os encontrar não deverão ter essa história romantizada.
Sejamos realistas: que mulher nobre do século 19 deixaria uma vida de conforto, cheia de criados e facilidades para enfrentar uma viagem de navio de 30 dias, em terceira classe, onde a higiene e o bem-estar não davam o ar da graça, para vir 'puxar enxada' na 'Ameriga'?
Você lá leu 'Orgulho e Preconceito', da Jane Austen? Viu o filme? Já leu 'Senhora', do José de Alencar? Se leu, já sabe ser quase impossível existir paixão que fizesse uma mulher das classes sociais superiores no século 19 fugir do seu conforto e segurança para "viver de amor" com um cavalariço.
Já notou também que o rapaz pobre da estória pobre nunca é lacaio, jardineiro, carpinteiro, ferreiro ou seleiro? Nas narrativas, é invariavelmente o cavalariço. E isso também tem uma explicação.
Raul Sampaio de Almeida Prado, professor aposentado de Zootecnia na Universidade Estadual Paulista 'Júlio de Mesquita Filho' — Unesp — campus de Jaboticabal, e de pós-graduação na Uniso, especialista em manejo equino — e também um pesquisador de genealogia — tem uma visão clara sobre o mito.
Raul Sampaio de Almeida Prado, autor do livro Raízes Mangalarga, Editora Empresa das Artes, São Paulo, 2008.
Para ele, «o mito do cavalariço está associado à importância do cavalo na história humana e como um dos grandes símbolos da aristocracia. O cavalariço foi um dos mais importantes serviçais da nobreza, pois cuidava de um bem que não era apenas uma propriedade muito cara, mas também designativa de poder, riqueza e glórias. Não haveria nenhum brilho no mito de se apaixonar pelo cozinheiro ou pelo jardineiro. Hoje, ser paisagista ou chef pode ter o seu glamour, mas não havia no século 19. Lembre-se que a vida de um ser humano podia depender do cavalo. Não por acaso, os cavalos recebiam muitas vezes um tratamento superior ao despendido aos soldados. Logo, apaixonar-se por um estribeiro bonitão conferia efetivamente um romantismo, já que era o empregado mais vinculado aos nobres».
É assim que essas histórias se repetem em centenas de famílias.
Contudo, existe ainda um ponto a ser considerado: a invenção não é apenas para dar um brilho extra ao sobrenome. Existe outra razão por detrás da "fuga e deserção": a perda da fortuna.
A lenda justifica o fato de que a família é milionária como seus ancestrais almejavam ser. A verdade é que o desejo de "fazer a América" — ou seja de ganhar rios de dinheiro como imigrante — não se tornou realidade para a maioria dos que aqui chegaram. E também não há nenhum demérito nisso.
Como também não há nenhum demérito em não ser milionário! A meta dos países civilizados é todo mundo ter uma vida confortável, e digna. Um dos grandes problemas da virada do século 20 para o 21 é a concentração de renda nas mãos de poucos.
A questão é a insistência em pesquisar um ancestral nobre que não existe. Aí você não consegue mesmo avançar na sua pesquisa!
Veja bem, não é impossível que você tenha um antepassado aristocrático. Como disse o médico e memoralista Pedro Nava no seu magistral livro Baú de Ossos: «não existem famílias que não venham, a um só tempo, do trono e da lama».
Todavia, é mais saudável e proveitoso assumir que a maioria esmagadora dos nossos avoengos era gente plebeia, que vivia uma vida simples e sem grandes brilhos sociais. Isso não é motivo de vergonha. Orgulhe-se de seus antepassados! Leia este artigo da advogada e pesquisadora de genealogia, Léa Beraldo.
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