Carta aberta


Carta endereçada a
Carlos, o escriba, a Manuel, o dramaturgo

com cópia registada a mestre Pires e mensagem electrónica

dirigida ao multimediático comendador Correia


As ratoeiras das ideias feitas quando amplificadas por milhares de bocas pregam partidas assim: quanto maior é capacidade do fingidor mais depressa se descobre que "chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente".
De tão citado o verso já transpira bolores de pastel velho. Será da promessa dos fungos - germinados no bolor do pastel - que advém a atracção pela poesia de Pessoa?
Fleming, o primeiro que falou das fantabulosas promessas dos fungos sublimados na santa penicilina, que responda, se souber.

Sei, de certeza certa, que me incomoda escrever sobre os diabos que em mim habitam e não desejo redigir uma autobiografia de calça curta, mesmo se vertida em alambiques digitais da moda. Eis, portanto, o essencial de uma carta aberta redigida à moda semi-nova.

Se digo que escrevo, procuro a memória dos livros que publiquei e ela surge difusa, desfocada, como se o escritor recusasse comparecer à imperiosa chamada do dever cívico para falar de si e da obra.
Maldito seja!
Este escritor é uma alma danada clandestinamente oculta nos confins de um continente misterioso, que o tio Alfredo F. baptizou com a bizarra designação de Id, vá lá saber-se porquê...
De há algum tempo a esta parte o senhor escritor exigiu licença sabática e não escreve nadica de nada.

Sim, é certo... Em certos dias santos ainda condescende em mandar um ou outro bilhete postal. Nele se reconfirma o prolongamento sucessivo de uma licença que, segundo o escritor e cito "é fundamental para concretizar pescarias num certo rio da memória de que só eu conheço redemoinhos e torrentes". (fim de citação)

Está decidido. Vou retaliar e nada redigirei acerca de Carlos, o problemático plumitivo.

Se digo que teatralizo, procuro os dramas do dramaturgo mas logo se descobre que também este se esfumou nos desvãos de um imenso palco escuro, sinal claro de que se furta a escrever peças, a ir ao teatro ao menos para cumprimentar encenadores e actores conhecidos. Eis, portanto, uma falência global do precioso capital social, desbaratado em faltas injustificadas ao precioso "socialite" intelectual. E foi assim que se esfumou sem um adeuzinho, sem um bye-bye, ao menos um "au revoir". Despedidas à francesa...

Soube, por um dos postais sabáticos que o escritor teve a decência de enviar, que terá avistado Manuel, o dramaturgo, integrado num bando de "faz-tudo", companhia de saltimbancos, cuja existência já só se tolera lá no fundo mais fundo dos umbigos deste mundo.

Está decidido! Também este vai cair no poço do esquecimento e nada mais se acrescenta sobre Manuel, o teatreiro!

Se digo que ensinei, procuro a memória do docente e ela surge desfocada, como se recusasse comparecer à chamada.
Hipócrita!
Deram-te a comenda da ordem da Instrução Pública e ninguém quer saber quantas notas negativas, quantos chumbos não tiveste a coragem de aplicar durante quarenta e sete anos de carreira? Agora escondes-te sob a capa elitista de professor das universidades para evitares referências às tuas diatribes? Cuidas que a nudez crua dos teus saberes indigestos pode ser encoberta pelo manto diáfano da beca negra?

Estás muito enganado, meu menino... Ainda te hei-de ver cair do doutoral pedestal e não haverá rede - nem mesmo as modernices da Internet - que te sustente o trambolhão...

Está decidido! Nem mais ponto, ou vírgula sobre Pires, o (in)docente!

Se digo que multimediatizo em processos de investigação e desenvolvimento procuro o rasto dos programas e das aplicações que investiguei - ou ajudei a criar - e não encontro traço ou sinal dos trabalhos realizados, talvez porque uns quantos piratas das Caraíbas digitais atacaram o espólio e dele não sobrou sombra, ou sinal. Agora apenas resta uma lista incompleta, pálido sinal que teima em bruxulear.
Mas que maldição é esta que dilui das memórias conscientes traços fundamentais de uma vida tão teatralmente vivida que nela cabem mil vidas fingidas numa só vida vivida?
Será uma vez mais a lucidez do fingidor a persistir na rima com a palavra dor?
Que rima mais parva!

Está decidido! Cairá no fundo de um poço profundo esse tal Correia, o multimediático professor doutor.

E também não escreverei diatribes ou elogios sobre os dianhos, que espreitam sob as águas das meninas dos olhos, embriagados por luzeiros da luas loucas. Agora - para finalizar a carta em jeito de plágio descarado do Manifesto Anti-Dantas, de Mestre Almada Negreiros - só me apetece gritar:

morra o Manuel, morra! Pim!!!!
morra o Pires, morra! Pam!!!!
morra o Correia, morra! Pum!!!!

A metralha "pim-pam-pum" despalavreou os figurões. Personagens em busca de um autor que os domestique, estes aventureiros nasceram à imagem e semelhança dos três mosqueteiros, que no fim das contas acabam a quatro. Pois desengane-se o falso quarteto de pseudo heterónimos. Não são dotados de qualquer virtude, apenas assumem a soberba da sua própria impertinência.

E uma vez que é assim - seja eu ceguinho se não é!... - exijo e imponho ao senhor-de-nós-todos que redija uma crónica com interações entre todos eles, a fim de demonstrar quão cansativo é coabitar com esta gentinha albergada em sótão descabelado mas com uma bigodaça exibida em jeito de compensação remissiva...