Prefácio
É consensual a ideia de que uma sociedade será tanto mais próspera quanto mais eficaz for o seu sistema de ensino-aprendizagem. O exemplo dos países mais evoluídos é condição necessária e suficiente para demonstrar a verdade deste silogismo de primeiro grau: a prosperidade de um povo depende não só do esforço de investimento feito no ensino e na formação, mas também do rigor e da eficácia com que esse investimento é aplicado, factor que infelizmente nem sempre se verifica em países democraticamente jovens.
A organização económica e social assume formas cada vez mais complexas de relacionamento: a sofisticação dos mercados, os padrões de qualidade, as exigências dos clientes, a globalização do mundo dos negócios são factores que determinam o progresso ou o definhamento de uma região, de um país. Os poderes políticos e económicos estão conscientes da necessidade de melhoria continuada do sistema, condição essencial ao progresso das empresas e das regiões que as albergam. A criação e evolução muito rápidas da chamada Sociedade da Informação impôs um ritmo ainda mais acelerado de exigência de modernidade, qualidade e rigor nas áreas do ensino e da formação, que não se compadecem com rotinas instaladas nos sistemas de ensino-aprendizagem tradicionais.
A transição da Sociedade da Informação para a Sociedade do Conhecimento é um processo complexo, por ora visível em algumas (poucas) regiões no planeta. Tal complexidade é delimitada pela fronteira que separa info-ricos e info-excluídos: enquanto os primeiros geram e acumulam riqueza conceptual, que depois traduzem em artefactos que mandam fabricar em regiões de mão de obra barata, os segundos acumulam cada vez mais mão de obra barata. É necessário aqui sublinhar que a linha que delimita info-ricos e info-pobres não é coincidente com a fronteira que divide países. Trata-se de uma barreira que se interpõe para lá dos estados, regiões, bairros, ou mesmo famílias. Instala-se entre pessoas e respectivas organizações e marca de forma indelével os que procederam a um esforço substantivo de migração no sentido de dominar competências digitais, colocando-as ao serviço da obtenção de mais-valias e os que continuam agarrados a sistemas, saberes e competências consuetudinárias.
A prosperidade, individual e societária, já não decorre apenas da iniciativa individual implementada por estratégias tradicionais de acumulação de riqueza. A imagem do capitão da indústria dos séculos XIX e XX, ou seja, a figura heróica do capitalista que, sozinho, foi capaz de erguer e expandir um império, casos, por exemplo, de Henri Ford, Rockefeller, ou Champalimaud, esse tempo, foi “chão que já deu uva”. Hoje, as cepas alinham-se obedientemente sob a batuta de sociedades financeiras multinacionais, globalmente estruturadas. Foi assim que sucedeu a Bill Gates, Steve Jobs e mais recentemente a Mark Zuckerberg: os espaços românticos das garagens, ou do dormitório da universidade onde cada um conceptualizou o negócio respectivo, rapidamente cedeu o espaço de manobra a uma coorte multinacional de accionistas, organizações capazes de movimentarem grandes somas de capital em transacções que, por vezes, duram pico segundos, assim granjeando lucros excepcionais por via de movimentos especulativos exclusivamente operados pelos algoritmos que a informática operacionaliza. E quando os pais fundadores discordam, ou deixam de responder às exigências dos accionistas maioritários, a porta de saída é via de sentido único, muito embora essa via seja quase sempre atapetada por um confortável tapete de acções, como recentemente aconteceu com os fundadores da empresa Yahoo...
Interessa neste contexto sublinhar que tanto a iniciativa individual, como a capacidade de gerar lucro estão cada vez mais subordinadas à capacidade da especulação instalada sobre a economia digital e a crise que os estados soberanos e as sociedades financeiramente mais frágeis ora vivem é disso testemunho bem doloroso.
Os fenómenos da globalização afectam de forma directa ou indirecta a maioria das áreas da actividade humana e os sistemas de ensino aprendizagem não são excepção. O conceito de sociedade global está ligado à planetarização da troca instantânea de dados e valores, possível através da rede das redes – a Internet – e esta actividade foi a que mais rapidamente se disseminou em toda a história da humanidade. Antes da World Wide Web se encontrar em pleno funcionamento, a informação não circulava de forma tão rápida, portanto, as reacções dos mercados demoravam dias, por vezes semanas, ou meses a surtir efeitos. Depois das redes ganharem mais largura de banda, foi possível concretizar a anulação de alguns efeitos do tempo e da distância porque existe um novo sistema nervoso electrónico a envolver o planeta e considera-se essencial compreender este fenómeno a fim de melhor se percepcionar o estádio actual de desenvolvimento do binómio ensino-aprendizagem.
Considera-se oportuno referir neste contexto um excerto de um soneto de Camões, homenagem oportuna não só à genialidade, como à imortalidade do seu pensamento: “Continuamente vemos novidades, / Diferentes em tudo da esperança; / Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem, se algum houve, as saudades.” No pólo oposto ao fenómeno de globalização, situa-se a chamada localização e ambas situações são experienciadas pelos mesmos indivíduos numa alternância que só é contraditória na aparência. Tal significa que as pessoas percepcionam a sociedade global, entendem-na e procuram actuar sobre ela, mas também reconhecem que o seu espaço individual de acção é sobretudo local. É no interior deste conceito que surge cunhada a expressão “pensar global e agir local”, forma aparentemente antitética de assimilar a oposição entre dois termos cuja dialéctica tem pontos de contacto com a que opõe uma tese à sua antítese.
Heráclito de Éfeso, o filósofo grego do IV século antes de Cristo, criou uma metáfora exemplar deste conceito na oposição das tensões geradas entre a corda de um instrumento musical e o dedo que se lhe opõe: Heráclito deduziu que o som gerado dessa tensão de contrários não é a corda, nem o dedo, mas o produto decorrente de uma dialéctica de contrários. Desta forma se demonstrou, pela primeira vez na história da filosofia, que uma tese oposta a uma antítese pode gerar uma síntese, que contendo embora características da primeira e da segunda, se caracteriza por ser uma entidade dotada de características próprias. Assim também ocorre no músculo cardíaco com os movimentos sistólico e diastólico: é da tensão destes contrários que se mantém uma síntese a que chamamos a vida e os bons algoritmos do binário cardíaco são a condição necessária e suficiente para a manutenção dessa mesma existência.
Servem estes alicerces da fundamentação filosófica e biológica para reforçar a necessidade urgente de se encontrar um conjunto de sínteses frutuosas entre os movimentos antitéticos da globalização e da localização. A necessidade do sujeito se aventurar por “mares nunca dantes navegados” rima perfeitamente com o desejo afectivo e umbilical de se reconhecer pertencente a uma família, com assento e tradição num bairro de uma região de que se conhecem bem a topografia, as gentes, as potencialidades e os limites. E, para atingir a síntese, recorde-se por uma última vez a genialidade camoniana quando, no terceto chave com que finaliza o soneto conclui: “ E afora este mudar-se cada dia / Outra mudança faz de mor espanto/ Que não se muda já como soía”.
Resta - para concluir o prefácio do livro A Escola e as TIC na Sociedade do Conhecimento - tentar responder a uma última questão, de certo a mais candente: de que modo se adaptam às necessidades da mudança os sistemas de ensino?
Se exceptuarmos as acções características dos “suspeitos do costume”, ou seja, a elite inovadora, de entre a qual se salientam e saúdam alguns nomes ilustres que coabitam nesta obra, a resposta centra-se na velha metáfora da avestruz: parte significativa do sistema e seus agentes enterra metaforicamente a cabeça na areia para aguardar o fim da tempestade. E não se julgue a atitude como absolutamente destituída de sentido. Pois não é certo que - tal como ensinou Tomás de Lampedusa no conhecido romance “O Leopardo”, do qual Luchino Visconti haveria de extrair o extraordinário filme homónimo - “é necessário que alguma coisa mude, para que tudo permaneça na mesma”?
O sistema tradicional de ensino terá uma parte de razão ao assumir o estado de resistência passiva e é oportuno recordar algumas situações ocorridas no decurso do século XX, durante o qual gerações sucessivas de professores e de alunos assistiram à irrupção de múltiplas novidades tecnológicas que se anunciavam como verdadeiras revoluções e que, feitas as contas, se desvaneceram sem deixar rasto, ou sinal. Assim, por exemplo, já em 1913 Thomas Alva Edison, o célebre inventor norte americano, escrevia: “dentro de dez anos todo o ensino americano far-se-à através do cinema”. Afinal, o sistema de ensino centrado na sala de aula reforçou-se e a indústria cinematográfica, em crise acentuada, sobrevive em salas cada vez menores , ou nos modernos sistemas home cinema. Expectativas semelhantes ocorreram com o advento de uma outra novidade tecnológica do meados do século passado - a televisão - que muitos acreditaram ir desempenhar um papel decisivo no interior dos sistemas de ensino-aprendizagem, mas que, afinal, não passou de uma tecnologia centrifugada para a posição subalterna de auxiliar supletivo, ao nível da telescola e pouco mais.
As décadas 80 e 90 do século passado, bem como o primeiro decénio do XXI, assistiram à chegada dos desktops - computadores que pareciam dispor de todas as condições para conquistar o último bastião do sistema tradicional de ensino-aprendizagem - a sala de aula. Afinal, constata-se hoje que o sistema se manteve sem grandes oscilações porque os desktops e respectivos monitores - demasiado volumosos para caberem nas carteiras e excessivamente dispendiosos, tal como todas as formas de portáteis que lhes sucederam, demonstraram, por esta ou aquela razão, a sua incapacidade para se manter na sala de aula. É certo que eles estão na escola mas confinados a espaços e salas específicos.
Existirá uma outra razão para explicar esta série de insucessos?
É evidente que sim: está universalmente demonstrado que na sala de aula até agora só sobreviveram quatro objectos tecnológicos baratos e com eficácia comprovada: o quadro, a esferográfica, o caderno e o livro.
Será então a sala de aula essa fortaleza inexpugnável, configurada como castelo onde uma vez fechada a porta, o professor permanece qual rei e senhor de um sistema velho e de didácticas nas mais das vezes ultrapassadas, que utiliza a seu bel-prazer?
O forte parece sólido, mas o agente da mudança já penetrou na aula, de modo subreptício. Vive numa quase clandestinidade decorrente da proibição escolar que inibe a sua utilização. Todavia, parte significativa dos alunos esconde no bolso o chamado smartphone - micro-processador sofisticado, com ecrã de proporções razoáveis para olhos saudáveis, sempre ligado à Internet e com capacidades de processamento semelhantes às dos computadores comuns.
Ah, mas o uso do telemóvel na sala de aula é proibido!
Maravilha!
Pois quem não se recorda do gosto de desafiar as interdições e os tabus da geração anterior, comuns a jovens e adolescentes de todos os tempos? Quantos não recordam o secreto prazer de pôr em causa a autoridade dos mais velhos e as respectivas proibições, sobretudo quando estas eram altamente discutíveis?
Acicatados pelo desafio, é vê-los a digitar os telemóveis, sob as carteiras, olhos e atenção aparentemente fixados no professor, dedos ágeis clandestinamente operando sobre a máquina, procedimentos multitasking, usados ora para manter conversas paralelas sobre temas que lhes interessam, outras verificando na Net algumas das informações que os professores debitam, não se vá dar o caso de encontrarem aquela omissão ou erro que há-de pôr em xeque a autoridade.
No Mestrado em Gestão de Sistemas E-learning que há seis anos coordeno na Nova, Maria Eduarda Pereira da Costa Ferreira apresentou uma dissertação de mestrado, subordinada ao tema “Jovens, Telemóveis e Escola”, em que demonstrou a existência de uma verdadeira second life, que se mantém clandestina sob as carteiras, sem que nas mais das vezes os professores disso se apercebam.
Tenho a certeza de que chegará o dia em que o bom senso vai prevalecer e a proibição dará lugar ao pleno uso da Net na sala de aula. Só que nesse dia a aula já não será a mesma pois o professor perde o pretenso estatuto que alguns ainda pretendem manter de detentor do saber. Esta mudança de estatuto e de mentalidade ocorre porque os saberes partilhados em rede são imensos e ninguém pode ter a pretensão de tudo conhecer, mesmo na sua área de especialidade. Partilhar informação, interpretá-la, contextualizar, ajudar a distinguir entre o que é pertinente e impertinente, eis o desafio maior que confere estatuto e dignidade ao trabalho do professor no século XXI.
Permitam-me concluir o já extenso prefácio com a “clara certidom da verdade” das aulas que dou, na NOVA: lecciono no mestrado sobre sistemas de e-learning e considero o sistema um veículo excelente, bem adaptado para adultos e jovens adultos, especialmente para os que querem voltar a estudar. A minha experiência ensina-me também que os sistemas de flipped learning, ou b-learning, são uma forma excelente de mudança do paradigma para as aulas presenciais, sendo que neste caso o professor prepara e coloca na Net as matérias que o aluno tem de estudar em casa e que, depois, no decurso da aula presencial, desenvolve com todos e discute, experimenta, contextualiza, e avalia os temas estudados no decurso da semana. Esta mudança substancial de paradigma, para a qual a digitalização de saberes é condição sine qua non, já entrou em fase de aceleração e só os mais distraídos disso não se deram conta.
Carlos Correia
Pro Reitor da Universidade Nova de Lisboa para a Comunicação e E-Learning
Lisboa, Fevereiro de 2013
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