República

Ressuscitou...Está aqui! *. Alguns artigos censurados escritos por Carlos Correia

* Costa e Melo

Quando me bateram à porta para que colaborasse com algum escrito, na REPÚBLICA que ia ressurgir, tremi de emoção e medo. Emoção porque é, de certo modo, um regresso ao lar e quase à "Cartilha Maternal" dos tempos de António José de Almeida; medo porque, aos 85, não me julgava capaz de merecer a confiança que o convite representava. De qualquer forma, aceitei, antes mesmo de verificar se no alforje da memória encontraria pão bastante para, ao menos, mitigar a fome de algum saudoso, como eu, não só dos tempos do Tónio Zé, era eu, então, quase menino, mas do Carvalhão Duarte e do Raul Rego, esses já mexilhões da rocha que as vagas da Censura se não cansavam de fustigar, em esperança de lhe destruir a fé que mantinha aceso o pavio da Liberdade possível, tão possível quanto necessária, apesar dos ventos de má morte que o pretendiam apagar. E falaram-me, ao convidar-me para a colaboração, num qualquer episódio que guardasse na sacola, designadamente um que se prendesse com a Censura. E encontrei muitos, tantos que o difícil estará, na escolha de um que não seja muito distante na ampulheta do tempo e possa, de algum modo, recordar, aos leitores de agora, aos da Missa da Ressurreição, o que foram esses anos largos, quase infindáveis, em que o escrever para os jornais era quase um jogo de 'cabra-cega" ou de "esconde esconde". Só entremeado com uns momentos de "bilharda" naqueles curtos períodos em que se fazia a mascarada das eleições para que Portugal "orgulhosamente só" fosse ou parecesse ser "tão livre como a livre Inglaterra" já que não podia "governar-se contra a vontade persistente de um povo". E vejam como, ao correr da pena, apareceram três frases, colocadas entre aspas para evitar contactos de hipocrisia maquiavélica ou, talvez melhor, mefítica. Mas comecemos com umas ligeiras pinceladas no "quadro negro" que para mim foi a REPUBLICA. As primeiras linhas que para lá escrevi, datam de 28 de Maio - lagarto ... lagarto ... lagarto...- de 1934. Eram umas despretensiosas 95 linhas a propósito da festa da "Queima das Fitas" dos estudantes de Direito de Lisboa! Mais tarde uns anos e já radicado em Aveiro, colaborei nas edições de 23 e 30 de Julho de 1947, em artigos sobre o "Funcionalismo público e a sua angustiosa situação" e que, por milagre ou sono dos censores, passaram incólumes. Outro tanto não sucedeu, uns tempos depois, quando já Marcelo era Salazar e este prestava contas dos muitos pecados que cometeu ou deixou cometer mas não deixou de abençoar, em Caxias, Aljube, Peniche, Tarrafal, em Portugal inteiro. O Carvalhão Duarte, o Marcelino de Mesquita, o Carlos Correia pediram-me entrevistas ou depoimentos sobre o "Momento Político" em 1969 e em 1970, aquele ano de eleições legislativas, e por isso, com aquilo a que Salazar chamava 'liberdade suficiente". Mas vou começar pelo episódio de 1970 Já que quero deixar para o fim o de 1969, por me parecer mais saboroso e sintomático. O Carlos Correia procurou-me, não me encontrou - eu estava fora de Aveiro...- o deixou ao inesquecível amigo João Sarabando, uma carta com os temas que desejava eu aflorasse, para o seu e nosso jornal. Eram quatro temas, simples e directos sobre eleições, eleitores e condições para votar. A colaboração, em duas folhas de papel A4, foi integralmente cortada pela "Real Mesa Censória". E, só para documentar umas frases, quase no final do depoimento, em que eu dizia esta perigosa "enormidade": "Os Governos não podem nem devem contar, antecipadamente, como em seu apoio, aquela negação que deriva da lei do menor esforço. O Governo deve lutar contra o comodismo e a indiferença dos cidadãos, proporcionando a estes todas as facilidades para o emercício LIVRE do direito de voto, não lhe exigindo, em troca, mais do que esse exercício. Por isso a inscrição nos cadernos eleitorais e, seguidamente, a entrega dos cartões de eleitor, deve ser oficiosa e sucessiva, à medida que o cidadão atinja a capacidade eleitoral activa." Mas para concluir esta intromissão na arca da memória, relativa à Censura e A REPÚBLICA, trago-vos o outro episódio, o de Outubro de 1969, este documentado pela carta do Marcelino de Mesquita e pelas próprias provas da Censura, com os muitos riscos, nervosos e odientos, do lápis azul do Censor. Até o título que a Redacção entendeu dever dar à entrevista e que era parte de uma das minhas respostas, foi cortado, onde dizia "A Juventude tem mais que razão - tem fé em si própria." Para se avaliar, estatísticamente, o desbaste, bastará dizer que das 326 linhas de texto composto, foram cortadas pela Censura, nada menos de 184, mais de metade. E da meda onde se juntaram os efeitos da monda e da poda censória, podem retirar-se nacos como estes: "A Juventude adere e afasta-se das correntes e orientações tradicionais, porque a Juventude sente ventos de diferentes quadrantes, embora quase todos dum lado limpo, o da Liberdade." e logo abaixo: "Sente-se que há sofreguidão e nojo. Sofreguidão pela Liberdade e nojo pela Tirania por mais paternal que ela seja ou se pretenda mostrar. É que o Povo não pode compreender certas coisas como o assassinato do seu General ou o silêncio sobre os escândalos das altas esferas políticas e financeiras do país."E não é por acaso que eu trago hoje, aqui, estas pinceladas do meu passado vivido. É que a REPÚBLICA, para recuperar a força que já teve, não pode deixar de assumir o papel pedagógico de comunicar, aos de agora, o que foi a luta dos de ontem, para que, em Liberdade e Responsabilidade, pudesse cada um dizer a sua verdade, única maneira eficaz para atingir a LIBERDADE de todos, que o mesmo será dizer, a da Nação Democrática e Pluralista que pretendemos ser.