(Palavras lidas por Fernando Paulouro Neves no Festival Literário de Castelo Branco, a 7 de Fevereiro de 2014, no Cine-Teatro Avenida)
Quando o Zé Pires me convidou para dizer algumas palavras, numa homenagem ao Carlos Correia, que eu aceitei com honra, ele impôs logo, como aviso à navegação, de que tudo isto era um segredo que tinha de ser bem guardado, até ao dia do acontecimento. Eu não lhe disse, na altura, mas pensei logo para os meus botões, que esse rapaz da minha idade que se chama Carlos Manuel Pires Correia, se soubesse do assunto, daria logo mil desculpas para não vestir o papel de homenageado, ele que tanto sabe de papéis e de teatro, na sua condição de dramaturgo.
Na circunstância de manifestar a minha alegria pela iniciativa -- e não haveria melhor momento para o fazer do que num Festival Literário -- penso que apenas coloquei um pré-aviso, que o Zé Pires levou em boa conta. O Carlos Correia, que tem curriculo vasto, com um universo literário riquíssimo como ficcionista, dramaturgo, ensaísta, e também como professor universitário e pedagogo, e também como inventor de coisas, no mundo das novas tecnologias, onde soube articular como ninguém a inovação com o desenvolvimento, o Carlos Correia, pensava eu em voz baixa, autor premiado, lá fora e cá dentro, não suportaria uma apresentação baseada na liturgia dos sucessos, que são muitos, e do elogio, que, alás, no caso dele, será sempre bem merecido.
Mais convencido fiquei da minha razão, quando, um dia destes, fui reler uma autobiografia que ele publicara no seu sítio, na net, e que é um modelo de ironia, a começar logo pelo título
Carta Aberta a Carlos Manuel Pires Correia
redigida por Carlos, o escriba,
endereçada ao dramaturgo Manuel,
com cópia facsimilada para mestre Pires
e mensagem electrónica dirigida ao multimediático professor doutor Correia"
Ora, o nosso amigo Carlos Correia, que começa logo por avisar que o incomoda “escrever sobre os diabos que em mim habitam” e ter “dúvidas enormes ao redigir esta autobiografia de calça curta”, mesmo se vertida em contentor e portefólio, modernice espalhafatosa dos tempos digitais”, faz depois uma espécie de ajuste de contas, ou melhor, um teatrinho, com os passos da sua biografia, dando a cada nome, como já se viu, um tratamento autónomo, como se cada um fosse um heterónimo diferenciado ou, todos juntos, personagens em busca de um autor, como ele próprio, Carlos Manuel Pires Correia, afirma distanciadamente.
Eu peço licença para ler a parte final, porque é um exercício de estilo e de ironia de um autor singularíssimo:
“Agora só me apetece - para finalizar em jeito de plágio descarado do Manifesto Anti-Dantas, de Mestre Almada Negreiros - acrescentar:
morra o Manuel, morra! Pim!!!!
morra o Pires, morra! Pam!!!!
morra o Correia, morra! Pum!!!!
A metralha "pim-pam-pum" despalavreou os figurões mas poupou o senhor-de-nós-todos, patrono da santíssima trindade. Personagens em busca de um autor que os domestique, estes aventureiros nasceram à imagem e semelhança dos três mosqueteiros, que no fim das contas feitas, acabam a quatro. Pois desengane-se o falso quarteto de aventureiros! Não são dotados da suprema omnipotência da trindade discutível, apenas assumem a soberba da sua própria impertinência. Pois já que assim é - eu seja ceguinho se não é!... - exijo e imponho ao senhor-de-nós-todos, o cronista patrono, que dos factos redija uma crónica em jeito hipertextual e, por vezes, hipermediático, a fim de certificar quão cansativo é coabitar com esta gentinha povoando um sótão tão sem cabelo mas com uma bigodaça explícita, exibida em jeito de compensação remissiva…”
Nesta contingência, que poderei eu acrescentar, que não possa cheirar ao bafio da retórica de encomenda, que ele detesta, e eu, também?
Então, resolvi dar à minha fala, para escapar ao perigo, menos uma carga pessoal e de amizade, e mais um sentido colectivo, como se aqui estivesse a falar não eu, mas a Cidade que o viu nascer, em 1947. E nesta narrativa de um homem, Castelo Branco, que é terra de poetas e escritores, faz então um aceno ao seu filho, uma carícia de afecto, lembrando-se, porventura, que no tempo longo da sua história, o que de si tem mais imemorial é a aventura criadora dos seus naturais (oh tempo que isto começou, não é João Roiz de Castelo Branco?), a sua afirmação criadora à escala do país.
A Cidade abre os olhos para os prazeres da memória e faz outro aceno de simpatia ao seu filho porque na sua biografia encontra, juntamente com palavras do imaginário literário, as palavras necessárias da luta pela liberdade, esse compromisso que torna a vida digna de ser vivida. Pensa a Cidade, então, que nem outra coisa seria de esperar de alguém que aprendeu dolorosamente, desde jovem, na matriz paterna, o significado dessa luta, e a Cidade, na sua memória selectiva, lembra logo esse grupo de cidadãos notáveis, os melhores de nós, que pagaram com a prisão o sonho de um país livre, e eis os nomes que a Cidade tem debaixo da língua, o Carlos Correia, o Vasco Silva, o Mário Barreto, o Tito Zuzarte, o Roque Barata.
A Cidade revê-se, honrada, na biografia do escritor, e sabe de ciência certa que os seus livros, na literatura infantil ou no teatro, reflectem sempre uma comum humanidade e são um convite à utopia fantástica dos sonhos. Mais sabe a Cidade que ele, autor, considerou como fundamental a batalha pela promoção cultural, e nesse sentido produziu uma obra única para divulgar a poesia e o teatro portugueses, incorporando nessa acção todas as possibilidades que, logo no início, o mundo da electrónica ofereceu.
A Cidade lembra-se do autor andar pelo país, com as câmaras de televisão às costas, levando à televisão o prazer da leitura, combate hoje ainda mais urgente e decisivo.
A Cidade continua a acenar a Carlos Correia, orgulhosa pelos prémios nacionais e internacionais que ele recebeu, e sendo lugar de rico património histórico (e sabendo, também, como o património se está transformando em mera traficância de negociatas (olha lá, o caso dos Mirós!), comove-se com as perspectivas que o autor abriu no campo da divulgação do património cultural e sua defesa, vejam os casos de O Triunfo do Barroco e a Arte Rupestre do Vale do Côa, sinais da sua inquietação pelas riquezas do Território na caligrafia das suas artes.
A Cidade sabe que Carlos Correia criou uma viagem interactiva sobre Ulisses, e um pouco emocionada pensa que ele hoje, está aqui em Castelo Branco, podendo dizer: Sou a sua Ítaca e a ela regressou!
A Cidade está feliz por este seu filho ilustre, que andou tantos caminhos, escreveu tantas palavras e produziu tantas coisas belas, que “partilham uma sede de alegria” e nos ajudam, por vezes, a pôr um raio de luz na névoa sombria que nos cerca.
Disse a Cidade e eu por ela.
Obrigado, Carlos Correia!
Fernando Paulouro Neves
Publicado 8th February 2014 por Fernando Paulouro Neves
Etiquetas: Carlos Correia Festival Literário de Castelo Branco