A Boca da Guerra

Epílogo

Num dos saguões mais amplos de Chambert, centenas de cadeiras brancas se enfileiravam de frente para um estrado provisória, porém caprichosamente montado entre colunas gorgathianas enfeitadas com raposas e sapos.

Sentado na beira do palco (aquilo nada mais era do que um palco, enfeitado com panos brancos e flores amarelas), Pierre encarou aquelas cadeiras todas. Lâmina de Nakamura, de onde tinham tirado tanta cadeira? E vasos de mármore branco e preto, com veios vermelhos — quatro deles, um em cada canto do palco improvisado.

Atrás de Pierre, uma poltrona alta, braços e pernas desenhados com rica madeira anjariana, tão viva que parecia vermelha; almofadas azuis, franjas douradas. Exagero, bastava uma cadeira branca, igual àquelas enfileiradas pelo saguão.

Vivianne veio procurá-lo. Estava vestida de branco, os longos cabelos descansando livres sobre seus ombros. Janelas compridas formavam colunas de luz pelo saguão, e Vivianne entrava e saía delas, ora branca como um sonho, ora brilhante como um desejo, raio de lua, raio de sol.

Pierre levantou-se para recebê-la.

— Como se sente? — perguntou Vivianne.

Pierre demorou um pouco a responder. Seu olhar passeou pelo palco, franjas amarelas, almofadas azuis, raposas, sapos, finalmente, os dedões dos próprios pés.

— Parece que faz muito tempo, eu e Gregoire nos sentávamos com um livro e ele me contava histórias de grandes heróis satironeses. Gregoire dava vida às histórias: Nakamura, Nastassjia, Sáeril Quepentorne e tantos outros.

‘Histórias diferentes das que Líran conta, menos reais, mais inocentes. Os heróis de minha infância sempre me deram a impressão de que, uma vez tomada uma decisão, basta segui-la até o fim de suas consequências.

‘É mais difícil do que isso. Uma vez que se toma uma decisão, o passo seguinte oferece a chance de mudar de ideia. Você pode desistir, voltar atrás, tentar outra coisa, esquecer tudo. A cada passo é preciso tomar a mesma decisão. De novo e de novo.

Pierre subiu no estrado, ficou frente a frente com o trono.

— A confusão toda começou por causa do excesso de soberanos na Franária, eu sei. Ainda assim, eu gostaria, seria muito mais fácil para mim se houvesse alguém ao meu lado, ocupando um segundo trono.

Devagar, ele se virou e ficou de frente para Vivianne. Hesitante, estendeu a mão para ela. Quase deixou o braço cair quando Vivianne lhe deu as costas, mas ela só pegou uma das cadeiras brancas e subiu no palco com ela. Colocou-a ao lado da poltrona azul.

— Não temos tempo para procurar coisa melhor — disse ela. — A cerimônia já vai começar.

Aproximou-se dele, comandou silenciosamente que ele a abraçasse. Pierre obedeceu.

Neville foi o primeiro a entrar. Thaila estava ocupada demais organizando bolos e pães, veio mais tarde. Ele entrou, deu meia-volta, fechou a porta atrás de si.

— Vamos esperar alguns minutos — disse a Luc e Leonard, este último pendurado no braço da roliça Marie de Tuen. — Os futuros rei e rainha ainda não estão prontos.

Por que meu irmão foi herói quando tantos outros falharam? A História, dizem alguns. Eu me pergunto: a História já estava com ele quando atravessou o Sangue até a Terra dos Banidos? Ela estava com ele quando ele salvou a vida de Chelag’Ren e insistiu em construir uma amizade que nem o dragão pôde prever?

Eu acho que não. Ela também não está com ele agora, no início de seu reinado. A História acabou. Atingiu seu objetivo e se foi. Um livro talvez terminasse com, E Pierre viveu feliz para sempre com sua bela rainha Vivianne.

Mas isto não é um livro. Para sempre dura até o ponto final. Que surpresas aguardam, de tocaia, na próxima frase?

— Memórias de Gregoire

Fregósbor pegou a carta do chão, fechou a porta do corredor de cartas não lidas. Massageou a base de sua coluna ao se levantar. Estava velho. A carta, ele colocou na estante, junto com todas as outras.

Querido pai,

Quando saí de casa com Nuille, não sabia que viajaria no tempo. Não imaginei que presenciaria o desenrolar de sua história; que eu faria parte dela.

O encontro com Neville me mostrou quão perto eu estava de casa. Memórias dispersas, que eu nem sabia mais possuir, inundaram minha mente numa tempestade de sentimentos e saudades. Faz tanto tempo que eu deixei meu lar, que desisti de contar os anos.

No começo, eu senti falta de casa, cada pedacinho, cada pessoa que pertencia àquele lugar. Com o tempo, comecei a me esquecer dos detalhes, da cor de certas paredes, do tamanho de meu quarto, o comprimento da manga dos guardas no portão.

Me esqueci de como era seu rosto. Foi um esquecimento gradual, desesperador. Primeiro, você se tornou um borrão com algumas características nítidas: o formato do nariz, a ruguinha arqueada do lado da sobrancelha esquerda, erguida com mais constância do que a direita. Seu sorriso era muito semelhante ao meu, por isso eu estudei meu reflexo, tentando imaginar seu rosto ao redor do meu sorriso, mas só o que vi foi eu mesma. Tentei te desenhar, mas nunca fui grande artista.

Continuei te escrevendo, tentando imaginar como você interpretaria as coisas que eu via, as histórias que vivia. Mesmo depois que a distância — física, temporal e mnemônica — tornou-se imesurável, ainda assim eu escrevo.

Senti sua falta, então senti falta de sentir sua falta.

Desisti de muito para estar onde estou. Frequentemente me pergunto se valeu a pena, então me lembro que conheci minha mãe. Ela está dormindo agora ao meu lado. Conversamos pouco. Agora entendo porque às vezes mistérios são tão silenciosos. Sei como é ter medo de revelar certas coisas. Ter espiado segredos e futuros inexplorados e não poder revelá-los a alguém. O que ela faria se eu revelasse quem sou? Ela sequer entende o que sou.

E eu, entendo?

Não raro me pergunto: estou me tornando um deles, um mistério? Minhas cartas a você são a única coisa que me mantém humana. Se eu te perder, se deixar de ser sua filha, então o que sou?