A Boca da Guerra

Capítulo 131: O acampamento se desfaz

As tropas deranianas retornaram vitoriosas. Não gostaram muito de encontrar um dragão confortavelmente instalado na colina, mas Luc apontou Pierre, sentado ao lado da criatura, acenando para eles.

— É louco — disse Germon.

— Assim como minha irmã — disse Marcus.

Naquele momento, Vivianne e Líran subiam a colina em direção a Pierre e o dragão. Líran movia-se com dificuldade. Seu andar era fluido, porém lento e ela tinha de se concentrar para terminar o mais simples dos gestos. Calculou mal suas capacidades mortais e por sua causa, Sáeril jazia ainda em risco na tenda de Fregósbor. Depois de muita persuasão por parte de Vivianne, Líran finalmente confessou seus remorsos.

— Você foi muito corajosa — disse Vivianne. — O poder que você coletou salvou Chelag’Ren. Ele é muito importante para Pierre.

— Entendo que são amigos de longa data — disse Líran.

— Se eu não tivesse tanto medo, iria até lá conhecê-lo.

— Vou com você — disse Líran. — Não sou Lucille, mas posso ficar ao seu lado.

— Vai contar nossa história um dia? Do jeito que contou todas aquelas aventuras na Pluma?

— Não sei. Minha própria aventura. Achei que fosse ficar eufórica, mas só dói. Se Sáeril viver, talvez um dia ela se torne um bom conto. Desculpe, Vivianne, não quero preocupá-la ainda mais. Venha. Vamos conhecer Chelag’Ren.

A felicidade de Pierre ao ver Vivianne e Líran. Correu até elas, ofereceu o braço a Líran. Cada dente de seu sorriso pertencia a Vivianne.

— Quer mesmo conhecer Chelag’Ren?

— Ele é seu amigo — disse Vivianne.

O dragão foi o motivo de Pierre deixar a Fronteira. Sem ele, Vivianne jamais teria encontrado Pierre. O cérebro de Vivianne se dispersou feito névoa sob sol de verão. A única coisa sólida era a mão de Pierre segurando a sua, a voz de Pierre dizendo palavras impossíveis de se interpretar. Então o próprio dragão falou — o quê? — e sua voz era tão suave, calmante, o oposto do que Vivianne esperava. Na sua frente, gigantesco em vermelho, graciosamente dourado, estava Chelag’Ren, não Guerra.

Vivianne experimentou tocar uma das plumas brancas na ponta da asa do dragão. Aproximou a ponta do dedo, sentiu cócegas, esparramou a palma da mão inteira e finalmente encostou o rosto, olhos fechados. Naquele exato instante, Pierre decidiu que a amava.

Eles levantavam acampamento para voltar a Chambert quando Clément chegou e Pierre reuniu todos em sua tenda. Clément abraçou Coalim, ambos choraram, de alegria, de dor, de saudades, por causa das queimaduras que haviam sofrido. O rei de Deran ouviu a notícia da morte de sua mãe.

— Suponho que agora nada me impede de fazer isto — tirou a coroa de sua mochila e entregou-a a Pierre. — Pertencia à minha mãe. Nunca foi minha.

Germon levantou a mão.

— Podemos confiar nele? Talvez seja melhor executá-lo, só para garantir.

— Clément não representa perigo — disse Vivianne.

— Talvez, mas ele pode ter filhos. Olhe só o que aconteceu à Franária só porque três indivíduos, que nem filhos de rei eram, decidiram tomar a coroa para si.

Antes que a discussão ganhasse vida, Clément declarou:

— Jamais terei filhos — e entrelaçou os dedos sãos nos dedos queimados de Coalim.

Pierre riu com vontade e contagiou Coalim que, embora sofresse pela perda de Clément, via a morte de Adelaide como um alívio.

— Germon — disse Pierre. — Se seguirmos sua lógica, devemos executar nosso amigo Rederico.

Pareceu que um vespeiro surgiu dentro das calças de Bojet. Jogava-se de um lado a outro na cadeira e procurava uma resposta, mas Pierre terminou logo com seu sofrimento.

— Francamente, espero que Rederico tenha muitos filhos. Se Fulbert de Patire teve um filho como ele, imagine como serão as crianças de Rederico. Chega de morte, punição, execução por precaução. A Franária está salva e unida. Acabou a era da destruição.

— Me pergunto o que nos aguarda — disse Pierre.

— Tudo — disse Chelag’Ren.

Descansavam na colina, observando o acampamento diminuir, tenda a tenda. Somente uma permaneceu em pé, aquela em que Sáeril jazia desacordado.

Clément estendeu a mão a Marcus, que hesitou tempo demais. Clément recolheu a mão estendida e os dois partiram em direções opostas com seus respectivos soldados.

— Suponho — disse Pierre — que eu não possa voltar para casa e viver o futuro que eu havia imaginado.

— Você pode voltar, Pierre. Ambos podemos.

Lá embaixo, o Mestre de Lune se afastou de seus soldados, alcançou Clément e apertou-lhe a mão.

— Mas não vamos.

— Não — disse o dragão.

Pierre pensou em todas as coisas que tinha sonhado, em sua vida na Fronteira. Vivianne certamente não pertencia a um futuro na Fronteira.

— Acho que o futuro de antigamente não é mais o que eu espero.

Todos os dias o caolho Luc levou comida e água para o cavalo branco e preto velando o corpo da livreira Fulion. O cavalo aceitava, mas dava dentadas se Luc chegava perto demais.

— Nós vamos embora — disse o caolho. — Não estarei mais aqui para te trazer comida. Você pode ficar e morrer, acho válido. Eu mesmo não sei por que continuo vivo. Acho que não me arrependo. Se quiser, venha comigo. Podemos enterrar sua dona, mas não sei se você precisa disso. É coisa de humanos.

Luc se afastou. Quando o exército marchou de volta para Chambert na manhã seguinte, Mancha continuou protegento o corpo em decomposição de Fulion. Deve estar lá até hoje.

Rederico disse adeus.

— É irônico que eu queira partir justo quando meu sonho e o da Velha se realizaram. Um sonho realizado é um sonho terminado, suponho.

Abraçaram-se. Pierre quis dizer muitas coisas, desejos, lembranças, votos de amizade eterna se amontoaram na garganta e só o que escapou foi:

— Espero que nossos caminhos se cruzem novamente.

— Eu também. Obrigado.

Neville apertou a mão de Rederico por muito tempo e com muita força. De sua garganta, nenhuma palavra conseguiu escapar.

Rederico, então, procurou Líran.

— Sei que seu amigo ainda corre risco de vida — disse — mas estou feliz ao menos com o seu retorno. Nunca sentiu amor por mim, Líran, não importa. Você me inspirou, me impeliu, coloriu meu futuro. Não te esquecerei, mesmo quando conseguir deixar de amá-la.

— Amor, eu não sinto — concordou Líran, — mas um pedaço de você fica comigo.

— O coração. Adeus, Líran contadora de histórias. Você pode não perceber seu valor agora, mas um dia verá que fez História conosco. A Franária se lembrará de você.

O trem vermelho voou para o Leste, com Velha de língua de fora para o vento na janela. Certo dia ele encontrou a Caravana de Rimbaud, e perguntou se não teriam utilidade para ele e seu trem. Um fenômeno que se apaixonou por púrpura, foi rei por uma noite.

Lecoeurge convidou-o a sentar-se na boleia de sua carroça.

— O que acha de ser um palhaço? — perguntou.

— Me parece perfeito.

Líran considerou retornar à Caravana. Lá, seria útil. Desejou poder aconselhar-se com Yukari. Qual era a sua utilidade em Chambert?

— Utilidade? — perguntou Pierre. — Você é nossa amiga, não basta?

Para seu próprio espanto, Líran percebeu que bastava. Pela primeira vez em sua curta vida humana, sentiu que fazia parte de onde estava. Durante os anos que se seguiram, o rei Pierre muitas vezes procurou-a em busca de conselho. As opiniões de Líran costumavam ser mais coloridas do que lógicas. Mas na Franária não faltavam pensadores lógicos.

Neville recusou a posição de Mestre do Esmeralda. Preferiu continuar capitão de Chambert, ao lado de Pierre, junto de Thaila. Debur ficou sob o governo de Maëlle. O Eslariano reabriu sua padaria na esquina. Thaila daria conta sozinha de Chambert. Ela gostava de assar os pães ao som do violão de Neville.

Nuille raramente chamava, apenas esperava e, cedo ou tarde, eles todos vinham até ele. Chelag’Ren pousou no topo da Onda, curvou a cabeça para o grande mistério e ouviu.

Lucille acabava de colocar uma carta em um envelope. Olhou com carinho para as costas de seu mistério. Nuille não precisava de dragões nem de ninguém para garantir o desejo de Vivianne. A partir do momento em que ele proibisse inimigos da Franária de cruzarem as montanhas, assim seria para todo o sempre. Mas Chelag’Ren queria expiar seus crimes, precisava de um novo lar. Ele seria um excelente guardião da montanha.

— É hora de ir? — perguntou Lucille.

Nuille colocou o chapéu com a pluma escarlate e deu o primeiro passo em direção à próxima aventura.

O Vulto ficou em pé — finas folhas de lã negra pendentes de seus ombros, espalhadas pelo chão — na frente das ruínas de Lune, achando tudo muito estranho, quase reconhecível, a caveira exposta de um rosto previamente amado. Inclinou a cabeça encapuzada de um lado a outro, mudou até o ângulo de seu corpo e continuava tudo errado, fêmur no lugar de pescoço (problema de Lune ou dele?). Ah, sim: a caveira era um castelo.

Fregósbor apareceu atrás dele, enfiou os dedos calejados no cabelo branco entrópico.

— O que foi que você fez?

— Eu? Nada!

— Você é muito perigoso inconsciente. Acorde logo, Mestre, está esperando o quê?

— Ora, vejam só. Estou dormindo. Achei que tinha morrido.

— Todos nós achamos.

— Estou vivo, então?

— E me dando uma baita dor de cabeça.

— Já estou recuperado?

— Não inteiramente, mas já não corre risco de vida ou de qualquer coisa. Só precisa de muito repouso.

— Então devo dormir.

— Em nome de Nastassjia, não! Chega. Acorde, que eu preciso descansar.

— Receio ter esquecido o caminho. Pode me guiar?

Fregósbor ofereceu o braço a Sáeril e levou-o de volta à realidade, onde o Vulto decidiu descansar por um tempo, em seu lar franês, em Lune.

Marcus, parado há vários minutos, finalmente incitou o cavalo para a frente. Germon e Bojet o seguiram de olhos arregalados, quase sem piscar.

— Germon, — disse Marcus — Eu entendi que Lune foi destruída.

— Foi o que eu também entendi — confirmou Germon.

— A Mestra Vivianne me disse a mesma coisa — disse Bojet.

— Neste caso, — disse Marcus — alguém pode me explicar o que é isto?

Lune estava em pé na frente deles. Uma Lune talvez um pouco diferente da que eles conheciam, com caveiras gravadas nas colunas, dragões de pedra enrolados no telhado, torres pontiagudas e, apesar de tudo, extremamente bela, de traços delicados como um dos desenhos de Vivianne.

Até a cidade estava ali, as casas menos retas do que se esperaria de qualquer coisa construída no reino da realidade, mas funcionais, arejadas, espaçadas.

— Isso é obra daquele Vulto — disse Bojet. — O que significa que ele está vivo.

— Eu ainda acho que ele sempre esteve morto — disse Germon.

— Seja como for, poupou-nos uma trabalheira.


Epílogo