A Boca da Guerra

Capítulo 120: Reconhecimento

Foi um suspiro geral de alívio e:

— Tem razão, tem razão.

— Isso não muda o fato de que Farheim e Inlang vão nos aniquilar — disse Luc.

— É — disse Pierre. — Isso é um problema.

Neville perguntou a Gregoire a localização do inimigo, mas Gregoire não sabia. Havia apenas dividido o alívio da Guerra com a invasão em massa e a suposta morte de Pierre.

— E quanto aos nossos aliados? — perguntou Pierre. — Ainda não temos notícias do norte e até a Fronteira ficou em silêncio. Rederico, você e Velha poderiam investigar?

— Suponho que sim, mas eu prefiro viajar sem o peso da coroa. Dor de cabeça, sabe?

— Pensei que você preferia esperar seu povo...

Rederico interrompeu Pierre com um gesto de descaso.

— Eles me amam, mas seguem você. Vão me amar mais e te seguir melhor se eu te der o que não me pertence.

— Mas é muito cedo. Eles acabaram de perder um rei e uma rainha.

— Impressionante a resiliência desse nosso povo franês — disse Rederico. Assim, naquela tarde, sob os olhares de todos os que conseguiram assistir à brevíssima cerimônia, Rederico tirou da cabeça uma coroa feita por Leonard Acidentado com feixes de grama e margaridas e entregou-a a Pierre, que não reagiu. Neville se adiantou, pegou a coroa de flores e colocou-a sobre a cabeça de Pierre.

Ao som de muitos vivas, Rederico se afastou em direção ao Eliana com Velha trotando ao seu lado. Os vivas eram para Pierre mas também para Rederico que, ao abdicar, foi o melhor rei da Franária quebrada.

— Posso ir com você? — perguntou o Acidentado. — Eu gostaria muito de voar.

— Venha — disse Rederico. — Venha você também — ele apontou Gregoire. — Para nos guiar na Fronteira.

Leonard se despediu de Marie com um beijo na boca e saltou para dentro do Eliana. O gato sem rabo Jean pulou atrás dele. Gregoire subiu desengonçado porque a alça de apoio para subir na locomotiva estava do lado da mão ferida. Rederico e Leonard içaram ele, a Velha latiu para Jean e o trem vermelho se ergueu em direção ao céu sem nuvens.

— O Acidentado, o Abdicado e eu — murmurou Gregoire. Até daria um título.

Jean deu uma unhada no focinha da Velha.

Primeiro eles voaram para o Sul, em busca da Fronteira. Gregoire guiou-os para Carlaje, mas Carlaje estava vazia.

— Pode haver alguém dentro das casas — disse Rederico.

— O pai de Pierre deve estar aqui — disse Gregoire — mas ele não costuma prestar atenção às coisas que acontecem fora dos livros.

Não havia espaço para o Eliana pousar e os três se debruçaram na janela procurando indícios de movimento. De repente, o Acidentado apareceu em solo.

— Como você foi parar aí? — perguntou Rederico.

— Eu ainda estou aqui — disse o Acidentado dentro da locomotiva. — Não sei bem como ir pegar o meu corpo.

O gato sem rabo Jean saltou para a janela, mirou bem o corpo de Leonard e saltou do trem. O Acidentado se agarrou ao gato, que pousou ao lado do corpo com muita graça e leveza, apesar de o trem estar a seis metros de altura. Leonard recuperou o corpo e procurou por gente. Gregoire foi guiando ele lá de cima para as casas com os representantes de Carlage, que estavam vazias. Então ele guiou Leonard até uma construção um pouco maior, com dois andares e muitas janelas. Sobre a porta estava uma placa: O PRIMEIRO Dragão Vermelho, sendo que a palavra “primeiro” tinha sido obviamente inserida mais tarde, apertada e na diagonal entre o “O” e o “dragão”.

O Acidentado entrou na estalagam com Jean nos ombros. Depois de alguns minutos, o gato ressurgiu, sentou-se do lado de fora e começou a lamber a pata. Leonard continuou lá dentro.

Velha parou de abanar o rabo, ficou em pé nas patinhas traseiras pedindo que Rederico a erguesse. Ele obedeceu, ela apoiou as patinhas dianteiras na janela da locomotiva e começou a latir. Jean olhou para o alto com indiferença.

— É comum as pessoas abandonatem uma cidade aqui na Fronteira? — Rederico perguntou.

— Não é comum — disse Gregoire — mas também não surpreende. Em Carlaje nunca aconteceu porque as trevas se desviavam do dragão. — Ele apontou para o Sangue, onde o dragão se banhava todo fim de tarde.

Velha fez um barulho que era meio latido, meio uivo e Leonard reapareceu na porta da estalagem. Atrás dele, veio um homem de pele vermelha e cabelos cor de carvão.

— É o pai de Pierre — disse Gregoire.

O pai de Pierre e Velha se encararam. Ambos ficaram imóveis, mas os pelos da Velha se arrepiaram todos. Então o homem piscou como se estivesse acordando de um sonho e notou Rederico e Gregoire. O Acidentado pigarreou e o pai de Pierre deu um pulo de dar inveja a muito cabrito.

— De onde foi que você surgiu?

— Estou aqui há algum tempo — disse Leonard. — Venho tentando conversar, mas você parece não me ouvir.

— É um problema isso — disse o pai de Pierre. — É um problema que eu não sei contornar, mas estou te ouvindo agora. Em que posso ajudar?

— Onde está o povo de Carlaje? — perguntou o Acidentado. — Onde está a Fronteira?

O pai de Pierre apontou para a estrada, que começava na porta do PRIMEIRO Dragão Vermelho. Da locomotiva, Rederico e Gregoire não conseguiam enxergar.

— Trevas — disse o pai de Pierre. — Mas não da Terra dos Banidos. Essas trevas vieram do norte.

Leonard fez que sim com a cabeça e de repente o corpo dele estava no Eliana. Jean miou um protesto e saltou os mais de seis metros até a janela da locomotiva. Leonard veio junto com o gato, recuperou o corpo e disse:

— A estrada está batida. Muitos pés marcharam por ela. O que fica naquela direção?

— A cidade de Lourdes — disse Gregoire.

— Leve-nos até lá — disse Rederico.

O rei abdicado inclinou-se para fora e lançou um último olhar ao homem que havia feito Velha uivar. A cadelinha parecia feliz, parecia gostar daquele pai de Pierre. Rederico teria de voltar aqui um dia.

A cidade de Lourdes também estava vazia mas a estrada continuava batida em direção ao Oeste. A vila seguinte estava vazia, mas a estrada não estava tão gasta.

— Se o povo da Fronteira foi embora — disse Gregoire — eles se reuniram nas duas maiores cidades: Lourdes e Carlaje. De lá, eles marcharam.

— Vimos indícios de que eles deixaram Carlaje e Lourdes, — disse Leonard — mas eles devem ter mudado o rumo em algum ponto entre Lourdes e aqui.

Eles voltaram sobrevoando a estrada. Leonard desceu em vários pontos até encontrar onde a Fronteira mudou o rumo.

— Eles foram para o norte — disse o Acidentado. — Para Patire.

A partir de então, eles não encontraram mais traços da marcha da Fronteira. A floresta temperamental da Fronteira havia apagado todos os indícios de que eles passaram por ali. Rederico levou o Eliana para o alto e para o norte. Se a Fronteira não estivesse longe, eles a encontrariam lá de cima. Velha abanou o rabo, que bateu várias vezes na cara de Jean, que botou todos os dentes à mostra e silvou enquanto tentava arranhar o rabo da cadelinha.

— Morte de Nakamura — disse Gregoire. Ele andou para trás até bater na parede da locomotiva.

O exército da Fronteira estava posicionado na boca do Vale de Anuré. Descendo o vale em direção a eles estava um exército que desaparecia no horizonte.

— Eles vão ser dizimados — disse Gregoire. — A Fronteira vai ser dizimada.

— A Fronteira está bem posicionada na saída do vale — disse o Acidentado, mas ele não soou convincente. Sim, a Fronteira tinha a geografia a seu favor, mas o exército dentro do vale tinha pelo menos quatro vezes o número de guerreiros e o vale de Anuré não era estreito como um cânion. Havia espaço para manobra ali. Bastava um comandante como Neville para massacrar a Fronteira, com ou sem geografia.

— Precisamos trazer reforços — disse Rederico. — O Eliana tem três vagões, podems transportar gente de Chambert para aqui.

— Mesmo se trouxermos Chambert inteira até aqui — disse Gregoire — continuamos em menor número.

Rederico fez que sim com a cabeça, mas parecia estar respondendo a um pensamento e não ao que Gregoire tinha dito.

— Leonard, quanto tempo você acha que aquele exército demora para chegar até aqui?

Leonard estudou o vale, calculou a velocidade de um exército daquele tamanho e disse:

— Quatro ou cinco dias.

— Então dá tempo de ir até Deran — disse Rederico — e ver o que aconteceu com a Pedra e Lune.

O trem de guerra ladeou os Oltiens até a Boca da Guerra. O Acidentado apontou para a divisa entre Deran e o Sul. A divisa nunca tinha sido clara a olhos nus, mas agora uma parede de névoas negras rasgava a Franária de leste a oeste.

— Não era Fulbert quem estava segurando os mensageiros do Norte — disse Leonard. — Era a própria Guerra.

— Aquele exército deve teri ido até os Saguões de Neve antes de seguir para Anuré — disse Rederico. — Tem um rastro de muitos pés a oeste da Boca da Guerra.

Quando o trem sobrevoou as trevas, elas se estivaram para o alto e tornaram-se rarefeitas, mas não conseguiram alcançar o Eliana. Eles seguiram até a Pedra, mas a Pedra manteve os portões fechados e, embora muitas janelas tivessem olhos, as portas não tinham voz. O trem vermelho deu três voltas ao redor da Pedra e virou em direção a Lune.

— Ouça — disse Leonard. Jean pulou em seu ombro e apontou as orelhas para a montanha.

Em uma das torres da Pedra, estava um homem loiro com a metade do corpo coberta por ataduras. Ele gesticulava, apontando para o norte e gritava qualquer coisa que o vento levou embora. A única palavra que Rederico entendeu foi: Lune.

— Lune não fica ao leste da Pedra? — perguntou Gregoire.

— Hoje em dia, não tenho certeza de mais nada.

Assim, eles voaram para o norte, até a floresta de Sananssau, que não era tão cerrada quanto a da Fronteira, nem temperamental. O rio Sananssau era raso e centenas de homens magros barbados se banhavam nele. Leonard se lembrou de seu prório povo, quando eles deixaram Debur em direção a Chambert.

Sobre uma lage de pedra branca, uma mulher entrou na luz do sol e acenou para o Eliana. Era Vivianne.


Capítulo 121