A Boca da Guerra

Capítulo 123: Mortadela

Neville colocou arqueiros sob o comando de Luc; Pierre se pôs à frente da cavalaria enquanto Germon e Bojet lideraram a infantaria. Flanqueando as forças de Chambert estava a Fronteira com seus lanceiros. Os arqueiros da Fronteira, Neville pediu emprestados e colocou-os no trem de guerra vermelho.

Assim, posicionados, eles esperarm pelo inimigo ali onde o vale dos Oltiens se afunilava em direção a Anuré.

A primeira figura a despontar no vale foi uma mulher negra de olhos cinzentos sem pupila. Ela segurava pela mão um homem velho de veias saltadas, que tremia e dizia:

— Mas eu não tenho presas.

— Nós vamos matar — disse Erla. — Nós vamos vencer e então renascer. O mundo será nosso.

— Um mundo sem presas.

*

Na torre escondida de Chambert, Fregósbor fez chá.

— Eu não faço tão bem quando Yukari, sabe? Mas não gosto muito do chá bem feito. Ele fica muito amargo. Um gosto não adquirido, receio. Eu não faço ele forte. E tem mel. Muito mel. Gosto de mel. Você não?

A morte de Erla estendeu a mão e passou os dedos pelo vapor do chá que Fregósbor lhe ofereceu. Os dedos imateriais se misturaram com o vapor e dançaram. A morte de Erla inclinou a cabeça, algo deliciada com o balé. O véu fez uma cachoeira vaporosa do topo da cabeça até os pés.

Fregósbor já havia dito que não gostava de ficar chamando ela de “Morte de Erla” porque era muito impessoal. “Morte”, só, era genérico demais. Ele anunciou com muita pompa que a chamaria de ali em diante de:

— Mortadela. Tome um pouco de chá, Mortadela. Dê asas à sua curiosidade.

*

Marcus não liderou a marcha de Sananssau à Boca da Guerra.

— Vocês conhecem os caminhos melhor do que eu ou qualquer um de meus homens — ele disse aos mensageiros da Fronteira.

Menior e Fulion decidiram evitar a Boca da Guerra e contornaram as trevas pelo leste, descendo além de onde um dia esteve Fabec. Vivianne viu Farheim e Inlang emergir do vale como um enxame de abelhas.

Marcus posicionou seus homens no morro. Terreno elevado era pouco consolo contra a quantidade de guerreiros vomitando da Boca, mas Marcus não sabia pensar em derrota. Era o tipo de pessoa que, mesmo sozinho contra quatorze mil, lutaria para vencer. No entanto, não era cego, nem louco. Já havia mais inimigo do que espaço na sua frente, e ainda o vale regurgitava soldados.

*

O trem vermelho sobrevoou mais uma vez a linha inimiga. Dos seus vagões, os arqueiros da Fronteira matavam sem ser atingidos. Toda vez que o Eliana passava, Farheim e Inlang entravam em caos.

No chão, até mesmo os soldados nórdicos, acostumados às dentadas do inverno, à escuridão e às sombras, recuaram perante o horror daqueles dois homens queimados. Germon e Bojet eram monstros de dentes arregaçados, peles à mostra. Eles não usavam armadura, nem blusa. Se o fogo de um dragão não os matou, armas normais não o fariam.

A Fronteira avançava como um bloco. Quando a linha de frente se cansava, eles escorregavam para trás e uma linha de lanceiros descansados avançava como um rolo compressor.

Pierre rasgava o exército inimigo com a espada chinesa de Nakamura.

Então Erla mergulhou sozinha contra as forças franesas, numa onda de mortes. Erla empunhava trevas. Seus golpes eram as mandíbolas da própria Guerra dilacerando a Franária. Olivier rastejava ao seu lado, agarrado à cintura de Erla, os olhos fechados. Mas ela avançava com força e velocidade sobre-humanas e escorregou dos dedos dele.

— Não tenho presas. Não tenho garras. Todas as mulheres da minha vida pertencem à Guerra.

*

Ao norte, seguindo a crista do monte, uma figura de azul chamou a atenção de Vivianne. Lucille. A menina mistério virou o rosto para Vivianne. Um vento quase brisa avivou os cabelos cor de raposa, jogando mechas sobre os olhos cor de mel.

— Eu não morrerei hoje — disse Vivianne.

Marcus pegou a mão da irmã. Ele se virou para os homens, tanto de Lune, quanto da Fronteira.

Eu não morrerei hoje — ele disse.

Ele desembainhou a espada e os soldados fizeram o mesmo. Vivianne pensou que o irmão fosse fazer um discurso, mas ele ficou em pé nos estribos, levantou a espada e deu um sorriso quase tão maroto quanto o de Pierre.

Os soldados todos levantaram as espadas e começaram a rir. Foi gargalhando que eles cavalgaram para a batalha. Vivianne moveu-se para a retaguarda, à esquerda de Lucille, porém longe dela. Nessas horas ela se arrependia de não ter aprendido a usar uma espada. Adelaide estaria à frente de seus homens, Vivianne ficava para trás.

Deu para sentir a hesitação do exército inimigo quando aquele bando de gente risonha desceu sobre eles.

A batalha teve início. Risos se tornaram gritos de guerra, então gritos de morte.

*

— E bolhinhos — disse Fregósbor. — Não se pode comer chá sem bolinhos. Estes são de amêndoas, estes de pistache e estes de framboesa.

Mortadela segurou um bolinho de pistache com as pontas dos cinco dedos. Nem ela nem o mago estranharam o fato de que a pequena morte agora tinha dedos sólidos.

*

Tentáculos de madeira preta rodearam a mulher de trevas formando uma espécie de jaula. Erla se debateu, quebrando galhos, rasgando e matando a árvore com machadadas de escuridão. A árvore rodopiou para longe do exército franês, arrancando Erla da batalha, mas ela quase não tinha mais galhos e suas raízes começaram a definhar.

A árvore tombou ao chão, o tronco rachado em dois. Erla se livrou dos últimos galhos e lançou-se de volta à batalha.

Uma flecha negra trespassou seu ombro. Erla tentou dar um passo à frente, outra flecha a atingiu.

*

Os deranianos lutaram com bravura. Os fronteiriços de Fulion pareciam empunhar morte ao invés de espadas. Rápidos, eficientes, impiedosos. E a Boca jorrava inimigos para cima deles, uma cascata infindável de guerreiros igualmente impiedosos. Fulion manteve seus cavaleiros junto aos de Marcus, mas as linhas aliadas se apagavam depressa.

Vivianne, sempre atenta ao horizonte. A qualquer momento esperava ver Pierre surgir na curva. Onde ele estava? Lucille parecia despreocupada, mas é claro, ela era um mistério. Ela não morreria aqui.

*

— É estranho, não é, Mortadela? — perguntou Fregósbor. — Você é uma morte sem morto e eu sou um morto sem morte. No entanto, eu não posso te completar e você não pode me mostrar o caminho.

*

Neville só tinha mais cinco flechas. De onde ele estava, distante da batalha, segurando a treva com flechas — quatro flechas — ele enxergou o homem que fugiu da luta.

Três flechas.

O homem sem presas.

Duas flechas.

O homem-veneno sem presas.

Uma flecha.

Neville virou o arco.

Erla saltou sobre Neville.

Olivier disse uma vez que arcos são para covardes.

E assim um covarde morreu com a última flecha de Neville.

Erla estava no ar quando Olivier caíu por terra. Ele não soltou um grito, um grunhido. Caíu como um pano de chão descartado. Erla, com doze flechas atravessadas no corpo, estava no ar. Olivier estava no chão. Com um estalo de madeira negra, a árvore de Neville girou no solo e atingiu Erla com uma das partes do tronco partido. Erla rolou para longe. Não voltou.

Um grito de vitória veio do vale de Anuré.

Um grito franês.

*

O cavalo de Vivianne se agitou e ela viu Menior isolado, lutando sozinho contra inimigos demais. A lâmina de sua espada era puro sangue, cada golpe entregava uma morte, mas Menior afundou-se numa areia movediça de aço. Seu cavalo tombou e o mensageiro foi mastigado por espadas inimigas.

E o Sul ainda em silêncio, a curva deserta.

Vivianne quis gritar para que Lucille ajudasse, Deran morria bem debaixo dos seus olhos! Só então ela percebeu, mesmo à distância ela percebeu, que Lucille estava chorando.

*

Com os dedos recém-solidificados, Mortadela escavocou o bolinho e tirou de dentro a framboesa. Ela tirou toda a massa do bolo ao redor da fruta e aproximou o pedacinho vermelho do rosto, da boca.

Mortadela ergueu o véu. Tinha boca. E tinha língua. A framboesa era doce e azeda. As bolotinhas que formavam a fruta faziam cócegas nos dentes.

— Tome. — Fregósbor estendeu uma combuquinha cheia de framboesas maduras.

*

Lucille chorou, sim. Não tinha poder. Ela não era Nuille.

Aquele homem, Marcus. Lucille sabia que o conhecia. Ele devia sobreviver, mas nem tudo o que deve ser é. E ela sabia que em algum momento da vida dela amou aquele homem. De que forma o amou e por quê, ela não conseguia lembrar. Passou-se tanto tempo desde que ela tinha se colocado ao lado de Nuille, que Lucille se esqueceu das feições de Marcus, de que o tinha amado, de que ele existia.

Quantas outras pessoas ela havia esquecido dessa forma?

*

Mortadela estendeu os dedos para a janela e experimentou o sol.

*

O socorro não veio do Sul: veio da Pedra. Em formação semelhante à da ponta de uma flecha, os guerreiros da Pedra perfuraram o flanco inimigo e, antes que os nórdicos entendessem o que estava acontecendo, a base da flecha se expandiu e mudou o formato para uma meia lua. Uma das arestas da meia lua alcançou Marcus sobre o monte, unindo os dois exércitos.

Se Vivianne não tivesse presenciado a movimentação, não teria acreditado na velocidade com que tudo aconteceu. Reconheceu a armadura real e gastou um momento se surpreendendo. Jamais teria imaginado que Clément pudesse comandar um exército com eficiência. O inimigo perdeu-se na manobra de Clément, confundiu-se, e os homens de Lune conseguiram se reagrupar com os mensageiros da Fronteira. Atacaram antes de os nórdicos terem tempo de reagir. Vivianne agarrou-se à crina de seu cavalo. Tinham uma chance.

*

Mortadela abriu a boca para a brisa. Tinha gosto de grama, sol e abelha. Framboesas.

*

Por serem piratas, Vivianne sempre imaginou Farheim e Inlang caóticos, mas os invasores eram soldados experientes. Recuperaram o controle da batalha, forçaram o recuo das forças da Pedra, então se movimentaram para cercá-la.

Deran foi retraindo, os nórdicos foram cercando. Pareciam ondas batendo em rochedo. Cada pancada arrancava uma lasca. Vivianne viu Fulion juntar-se a Marcus e a Clément, os três guerreiros lutando ferozmente. Gente morrendo.

Morrendo.

Morrendo.

A silhueta de um cavaleiro apareceu na curva ao sul.

Seu cavalo empinou, o cavaleiro levantou a espada longa de lâmina dupla, que refletiu sol, esperança e sangue.

— Pierre — sussurrou Vivianne.

Por trás dele despontou o trem vermelho. Sobrevoou a cabeça de Pierre, que baixou a espada até ela ficar paralela ao chão e atacou. Um urro de guerra seguiu Pierre e a locomotiva de guerra, seguido de uma correnteza de guerreiros ensanguentados na estrada.

Surgiu uma árvore negra. O tronco partido em dois parecia mancar, mas mancava com fome de morte.

O inimigo não esperava um ataque do Sul, um ataque do céu, uma árvore. A retaguarda teve de dar meia volta para se defender e empurrou a vanguarda de encontro aos deranianos. Farheim e Inlang estavam agora em menor número, desorganizados e dispersos. As tropas de Pierre, Bojet e Germon metodicamente avançavam, o trem cuspia flechas, a árvore cuspia morte, os nórdicos tombavam.

Vivianne fechou os olhos com alívio. Estavam salvos.

O vento mudou de direção, uma sombra passou pelo céu, e Vivianne ouviu o ronco retumbante de uma garganta ígnea. Soldados de todos os exércitos correram que nem pó; uma onda de gente e metal reluzente.

O dragão pousou.

Vivianne reconheceu sua própria morte ao lado de uma das garras do dragão vermelho. Não era a primeira vez que a via, ou ao dragão. Da primeira vez, ela sobreviveu e não foi sorte que a protegeu: foi Sáeril.

— Vulto, onde está você?

— Estou aqui, pequena.

Marcus tentou organizar o caos da fuga, orientando seus homens em direção a Vivianne. Olhou para trás, para o dragão. Vários minutos haviam se passado, por que o dragão não atacava? Talvez esperasse que Farheim e Inlang recuassem, para só então cuspir morte.

Marcus viu uma bolha de calmaria no caos humano. A bolha se aproximava do dragão. Seu centro era um vulto negro.

As trevas se retraíram e formaram uma parede ao redor do dragão. Sáeril Quepentorne vinha em sua direção. Empunhava — o que era aquilo? Uma avelã?

Guerra já havia se queimado com o poder daquela semente. Desta vez, ela estava preparada.

Marcus pensou como era pequeno, o Vulto. Como era frágil. Vivianne e Marcus já haviam perdido tanto. Iam perder mais um pai?

Os exércitos recuaram, mas não foram embora. Detiveram-se ao chegarem a uma distância que acreditaram segura, então pararam para olhar, hipnotizados por dragão e mistério-mago. Magia, morte e mistérios têm esse poder, de atrair mesmo quando o medo puxa na direção oposta.

Vivianne percebeu os acontecimentos muito lentamente. Seu Vulto tão perto do perigo, e agora Marcus. O que o irmão estava fazendo? Por que ele incitou o cavalo para longe dela?

Então ela entendeu: ele estava indo ajudar o Vulto.

Não!

Vivianne fez o cavalo galopar na direção do irmão, mesmo sabendo que nunca o alcançaria a tempo. Com o canto do olho, ela percebeu um movimento ágil, um rabo de raposa chicoteando no ar.

O dragão deu o bote. O chão estremeceu. Uma cócega lenta rodopiou e se prendeu às roupas e aos cabelos de Vivianne. Era o vento. Movia-se assustadoramente devagar; bandeiras e roupas se esticavam e ficavam esticadas. O cavalo de Marcus relinchou e o som, ao invés de se propagar, ficou pairando sobre a cabeça da besta. Magia e trevas rodearam uma à outra, dois tigres velhos se estudando. Vivianne não tinha tanto controle sobre seu cavalo quanto Marcus sobre o dele. Desmontou e seguiu o irmão a pé.

Névoa negra se fechou como um manto ao redor do dragão, que entreabriu a boca expondo o gargarejo de fogo no fundo da garganta. De repente, a boca se fechou num estalo seco de presas gigantes. Ele recuou. Nas dobras do manto do Vulto, um breve clarão púrpura, o cintilar de seda roxa momentaneamente exposta ao sol.

Sáeril instigou o vento, arremessou sua magia como uma lança através das trevas. Na ponta da lança, cavalgava Líran, confiante com seu pote de tinta. Ela tinha nas mãos o poder de Nuille.

Mas Líran era só humana, com a velocidade precária e o poder ínfimo de um corpo mortal.

Ela tinha nas mãos o poder de Nuille.

Não teve tempo de usá-lo. Mesmo se tivesse conseguido abrir a garrafinha, perceberia que sua limitada mortalidade se quebraria de encontro ao poder dentro da tinta.

A Guerra comandava o dragão. Ela reconheceu em Líran o cheiro que emanava da Onda, o cheiro de pesadelos. O dragão saltou para o ar, mas não levantou voo: jogou-se sobre Líran, atacou-a com seu fogo, suas garras, tudo o que Guerra tinha.

Líran mortal.

Sáeril percebeu seu erro. Seu e de Líran. Para Líran mistério, um dragão, uma guerra, magia e trevas não significavam perigo. Para Líran mortal, ali estava sua morte.

O Vulto acobertou Líran com sua magia e a garra do dragão não chegou a tocá-la, mas o simples choque de tanto poder arrancou a consciência daquele corpo frágil. A garrafinha de tinta voou de sua mão e Líran tombou desacordada e marrom. O púrpura se apagou num sopro.

Sáeril colocou todo o seu poder, mais a avelã, para manter Líran viva sob os constantes ataques do dragão. Se desviasse um tantinho de seu poder para contra-atacar, perderia Líran.

O dragão abriu a boca e despejou ao mesmo tempo fogo e trevas. Nuvens escuras rodopiaram sobre o dragão; a grama pisada amarelou e morreu; corpos, armaduras, espadas parecendo alfinetes, restos da batalha recém-travada, rolaram para longe. Cavalos relincharam, mulas espernearam e Marcus deixou seu cavalo fugir. Continuou correndo porque, maldição, ele não ia perder o Vulto também!

Vivianne tentava alcançar o irmão, tão longe dela, tão perto da morte. Viu alguém correr junto a ele, um rasgo vermelho, uma raposa.

Guerra afundou as garras de seu dragão dentro do próprio fogo negro que continuava a cuspir. Pressionou Sáeril com o peso físico do dragão vermelho. Se Sáeril estivesse sozinho, se não precisasse defender ninguém, poderia concentrar-se em lutar apenas. As garras de trevas o atingiram e ele deixou-se rasgar.

Uma brecha era tudo de que precisava. Queria mandar Líran para a segurança, tirá-la daquela cascata de fogo negro. Não suportava a ideia de deixá-la morrer, um mistério lindo, fascinante, adorável e mortal ali aos seus pés. Tentou esticar sua magia até a garrafinha que Líran havia trazido. O poder ali dentro era mais insuportável do que o fogo negro do dragão de Guerra. A voz crua de Nuille estava naquela tinta. Sáeril não podia manipulá-la como manipulou o poder infinitamente diluído do mistério naquela memória de Neville.

E as garras continuavam a rasgá-lo.

Marcus, espada em punho, gritou o mais alto que pôde para calar o medo que o puxava na direção oposta. Sáeril ouviu o grito. Não venha! Tentou novamente usar o poder na garrafinha. Pesava mais do que ele aguentava carregar. Marcus mergulhou no furacão de magia, morte e trevas.

Marcus e algo mais.

Lucille não tinha poder próprio, mas estava coberta com o de Nuille e sabia do que Sáeril era capaz. Se é que ele ainda estava consciente. Aquela parcela de poder de Nuille já estava há tanto tempo com Lucille, que se diluíra na personalidade dela. Era menos puro, mais volátil, infinitamente mais leve que a força bruta na garrafinha de tinta, embora consideravelmente mais intenso que a memória de Neville. Ela saltou junto com Marcus no caos da batalha e esperou ardentemente que Sáeril fosse capaz de salvá-los todos.

Sáeril estava caído, já devia estar morto. Lucille sentiu-se um mosquito incômodo esmagado por distraído tapa. No meio do caminho entre pular no turbilhão de poder e morrer, Lucille, apesar do medo, encontrou espaço para sentir tristeza pela morte de Líran e Sáeril, e também espanto. Havia se acostumado àqueles dois. Mesmo Sáeril lhe parecia às vezes eterno como Líran e Nuille. Ele havia sobrevivido à morte dos elfos.

A dois terços do caminho entre Lucille mergulhar na morte e morrer, ela achou interessante que, no seu momento de morte, conseguisse pensar tudo isso.

De repente Lucille sentiu-se leve, parecia flutuar. Acima dela, fogo, dragão e trevas. Sentiu um carinho deslizante pelo corpo, parecia que a pele havia se transformado em poeira e algo a sugava, expondo a carne de Lucille ao mundo.

Não era a pele que ia embora, era o poder de Nuille. Ele deslizava em direção a uma figura escura, um vulto de lã negra rasgada em farrapos. Sáeril estava vivo, uma assombração de trapos debatendo-se ao sabor de tantos poderes.

Ele sugou o poder de Nuille para si, empunhou-o como a uma espada e golpeou a Guerra.

Tudo parou. O vento, a treva, a morte. Congelaram. Vivianne sentiu uma vibração sob seus pés, como o ronronar de um gato gigante. Ronronar, não: o rosnado. Através do rasgo que o Vulto fez nas trevas, Vivianne viu um olho verde brilhante, gigante, furiosos.

O dragão Chelag’Ren levantou voo, jogou-se contra a fenda, cuspindo fogo, explodindo magia. Guerra enrolou línguas de trevas ao redor de sua ferida, fugiu para a Boca da Guerra, arrastando Chelag’Ren consigo.

Silêncio. Quietude. Mato amarelado, corpos imóveis, sol, céu azul, silêncio.

Lucille sentiu o olhar de Nuille perfurar a distância desde o topo da Onda e pousar bem em seus cabelos cor de raposa. Tudo bem, tudo bem, era hora de deixar esta história em paz.

Alguns passos adiante, Marcus estava caído ao lado de um amontoado de trapos pretos. Lucille se lembrou de por quê ela amou Marcus. A coragem crua daquele homem, o amor honesto. Com a ponta dos dedos, sentiu o pulso dele. Marcus estava vivo.

Lucille afastou-se, foi procurar seu cavalo. Encontrou Vivianne na base do morro.

— Você os salvou — disse Vivianne.

— Nuille me proibe de agir por conta própria em história alheia, só posso seguir ao lado de alguém. Se Marcus não tivesse agido, eu não poderia ter ajudado.

— Você os salvou — disse Vivianne. Ela abraçou Lucille. — Você vai embora?

— Sim. Acho que Nuille está descontente comigo.

— Você corre perigo?

Lucille sentiu uma cócega no peito, do lado interno esquerdo.

— Obrigada por se preocupar. Nuille jamais... Nuille é... Ele não me fará mal.

— Eu a verei novamente?

— Sim. — Mas eu serei jovem demais para me lembrar de você.

Assim, Lucille saiu da história e foi sentar-se com Nuille à beira da História. Ele lhe lançou um silêncio de censura, mas também de admiração. Ele então cobriu os olhos com o chapéu negro de abas largas e cochilou.

*

Mortadela virou o rosto para o sol e ergueu as mãos para o véu que a cobria. Ela segurou as pontas do véu e começou a levantá-las. Até então, ela só havia descoberto a boca. Os dedos sólidos acompanhavam a velocidade do sol poente. Mortadela queria olhar direto nos olhos do sol.

Então ela soltou as pontas do véu e baixou a cabeça. Atrás dela, dentro da torre, estava a mulher que lhe escapou alguns dias atrás.

— Isto é raro — disse Fregósbor. — Você vir atrás da sua morte e não o contrário.

Erla se aproximou de Mortadela, que virou as costas para o sol e estendeu a mão para a mulher negra. Antes que os dedos sólidos encontrassem os dedos mortos, Mortadela pegou uma última framboesa do pote.

Havia encontrado sua morte.


Capítulo 124