A Boca da Guerra

Capítulo 63: Um jogo de cartas

Germon não parava quieto! A luz estava perfeita, mas Vivianne não conseguia desenhá-lo porque ele ficava se movendo, fazendo caras, batendo papo. Ela nunca havia desenhado pele queimada antes. Lembrava um pouco a textura escarpada da Onda, só que mole. Os pelos dos braços de Vivianne ficaram em pé e ela desistiu de desenhar Germon.

Sentou-se à janela e começou a rabiscar pedaços de Tuen. Uma casa, uma telha, uma janela de madeira. Ela queria mesmo era desenhar Chambert, chegou a partir em direção ao castelo junto com Coalim, mas a perna dela começou a latejar dez metros além do portão de Tuen e Coalim pediu que ela voltasse.

— Você está mancando muito — ele disse.

Joanna havia conseguido muletas de verdade para Vivianne depois de consertar a vassoura destruída. Vivianne usava calças, que Pierre conseguiu para ela. Tudo estava confortável na Pluma, apesar de ninguém saber onde estava Fulbert, onde estava Henrique, por que Olivier não saía de casa. Tudo estava bem e Vivianne se sentia no olho de uma tormenta de inverno, esperando chegar a segunda rabada de destruição. Ela esperava que a segunda rabada não tivesse fogo nem dragão. Ela esperava que a escama que Pierre tinha no bolso não atraísse mais tragédia. Vivianne encostou a cabeça no vidro da janela e olhou para o céu levemente rosado. Como estaria Marcus? Já devia ter voltado a Lune de sua ronda pelas Ondas. Como estaria Clément? Onde estaria o Vulto?

Apesar dessas ansiedades, Vivianne gostava das noites na Pluma. Ela nunca esteve tão perto de gente antes. Claro, governava em Lune, havia Marcus e também o Vulto quando o Vulto estava em Deran, mas gente comum criada por gente comum, isso Vivianne nunca tinha vivenciado. Conversava pouco com eles. Às vezes parecia que não falavam a mesma língua, exceto Pierre, mas Pierre não era comum. O interessante era ele achar que ela era excepcional.

— Você foi criada por um mistério — ele disse. — Imagino que tipo de vida você levou. Quando foi que Quepentorne te adotou?

— Quando meu pai morreu — ela disse. — Eu tinha quatro anos.

— Eu tinha sete quando minha mãe morreu.

— Minha mãe morreu bem antes, não lembro quando. Seu pai ainda vive?

— De certa forma — disse Pierre. — Você se lembra dos seus pais?

— Lembro de botas, mas não sei se eram do meu pai ou da minha mãe.

— Minha mãe tinha botas pretas com fivelas prateadas, tinha uma espécie de cinta que segurava elas no lugar.

— As botas que eu lembro eram marrons e o couro estava ralado.

— Você consegue sentir ainda a textura? — perguntou Pierre. — Se eu fechar os olhos, consigo imaginar as fivelas das botas da minha mãe.

Vivianne gostava que Pierre não falava com tristeza. Ele perdeu a mãe e se lembrava das botas. Ela perdeu o pai e a mãe e se lembrava de botas. Vivianne ficou feliz que a mãe de Pierre usava botas pretas com fivela, só para poder lembrar botas junto com ele.

À mesa, Bojet terminou de embaralhar e deu as cartas. Para Vivianne, a única diferença entre Bojet e Germon era a altura. Bojet era dez centímetros mais baixo do que Germon. O resto era só queimadura. O prefeito Maurice estudou as cartas e girou o bigode entre o dedão e o dedo médio. Germon bufou e coçou o pescoço queimado. Vivianne teve um arrepio com aquelas unhas na pele derretida. Voltou a prestar atenção no desenho. Sem querer ela tinha desenhado os olhos de Pierre entre um telhado e uma janela.

Vivianne voltou a rascunhar Germon. Não estava ficando tão ruim assim, apesar de ele não parar quieto. As queimaduras eram horríveis, mas ela forçou os olhos a focar nelas. Que direito ela tinha de ter aflição? Ela, que havia escapado ilesa.

Ela sabia pouco a respeito de queimaduras e ossos quebrados, mas as queimaduras de Coalim, Bojet e Germon haviam secado e cicatrizado. Se a perna de Vivianne não fosse prova de que a natureza se comportava de forma diferente em Tuen, aquelas queimaduras eram.

— Achais que ele consegue? — perguntou Bojet à mesa. Descartou um quatro de ouros. — Ele tem ganas de reunificar a Franária, Tuen inteira está a falar.

— Você fala de um jeito diferente — disse Maurice.

— Meu pai era anjariano e aprendeu franês aqui crescido. Ele costumava entoar as palavras com seu jeito do Anjário e eu acabei parecido com ele. Meu pai aprendeu franês com os bardos e eu cresci falando cantado. Então. Pierre. Ele consegue?

— Veja o que ele fez com Tuen e Chambert em tão pouco tempo — disse Maurice. — Uma semana atrás, Tuen tinha um bando de soldados despreparados e Chambert tinha um bando de dissidentes desajeitados. Agora temos um exército, um moinho, coisas estão acontecendo.

— E aquele tal Jean? — perguntou Bojet. — Ele parece ansioso para torcer um pesoço ou três.

— Por que ele não fez nada contra Pierre? — perguntou Coalim. Falava tão raramente e em voz tão baixa que os outros demoraram a registrar as palavras. Tinham até esquecido que ele estava li, jogando cartas à mesma mesa.

— Tenho a impressão de que Jean não sabe o que fazer com Pierre — disse Maurice. — Ninguém sabe. Ele tem vida própria.

— Vida própria, todo mundo tem — disse Bojet.

— É, mas Pierre arrasta a gente junto.

Germon jogou as cartas na mesa, havia perdido a mão, mas estava rindo.

— Esse é o nosso Pierre!

Nosso Pierre, pensou Vivianne. Três semanas atrás ninguém nem sabia que ele existia, agora Germon, Bojet e toda Tuen o seguiam como se ele fosse um herói. Ela voltou a desenhar, mas a luz aos poucos se tornava sombra, e o lápis despejava borrões no papel.

— Eu acho que é possível. — Maurice disse. — A Franária, eu quero dizer. Eu acho que Pierre consegue.

Bojet recolheu as cartas, embaralhou com gestos lentos. Coalim cortou o maço e o queimado distribuiu. Durante alguns minutos só as cartas conversaram.

— Olivier certamente se colocará contra Pierre — disse Maurice.

— Olivier não existe — bufou Germon. — O homem sequer sai de seu palácio.

— Parece tão bonita essa Franária que Líran conta nas histórias — disse Bojet. — Seria bom se Pierre pudesse matá-los todos. Jean, Olivier, Henrique de Baynard, Fulbert de Patire, Clément de Deran.

Só Vivianne percebeu a veia saltando no pescoço de Coalim.

— Sei não — disse Germon, coçando o nariz. — Talvez ele não passe de um louco.

— Quem é louco? — A voz de Pierre fez todo mundo pular nas cadeiras. Ele estava de braços cruzados, com o ombro apoiado no batente da porta.

Ele ouviu tudo, Vivianne pensou.

Maurice puxou uma cadeira para ele. Pierre pegou o baralho e deu as cartas. Jogaram, riram, beberam vinho. Vivianne parou de desenhar. Estava escuro. Com o declínio da luz do dia o fogo da lareira tomou posse da sala com pinceladas de laranja. Em breve os clientes da Pluma começariam a chegar e Vivianne queria recolher-se em seu quarto por alguns minutos antes de descer para ajudar Joanna. Ela não podia fazer muito, com aquela perna, mas ajudava atrás do balcão. Vivianne se levantou, despediu-se em voz baixa, mas só Pierre a escutou. Ele era igual ao Vulto: sempre escutava.

Líran estava em pé no corredor escuro, sua presença momentaneamente evidente com a luz que vazou de dentro da sala. Vivianne encostou a porta atrás de si, deixando apenas uma fresta laranja dividindo Líran pela metade, separando o violeta do castanho. Ela seguiu o olhar de Líran e espiou pela fresta. Os homens bebiam, riam, jogavam cartas; nos cantos, fogo e sombras discutiam em silêncio sobre esperança e desespero. As sombras falavam em pesadelos, o fogo iluminava o futuro; que futuro? perguntavam as sombras, um de trevas, dançavam as chamas, fogo, sombra, sombra, chama, sombra, trevas, fogo de dragão.

Vivianne tentou gritar mas a voz engasgou na garganta. De repente a porta se abriu e alguém segurou seu braço.

— Está tudo bem? — perguntou Pierre.

— Sentistes isso? — perguntou Bojet. — Como se um vento soprasse, mas eram trevas. Eu sei que eram trevas. A mesma coisa que senti antes de... antes de... — cobriu o pescoço queimado com a mão queimada.

Dentro da sala, a luz do fogo havia sido domada e se recolheu numa poça laranja em torno da lareira. O resto da sala era treva.

— As trevas são fortes demais — disse Germon. — Que chances tem a Franária?

As cartas também silenciaram.

— Germon — chamou Pierre, sua voz estranhamente forte na escuridão. — De onde você é?

— Patire, senhor! — Respondeu como soldado. Estranhou o ‘senhor’ pronunciado sem querer, mas que pareceu adequado afinal de contas.

— E você, Bojet, onde nasceu?

— Também em Patire, senhor.

— Maurice, você é de Baynard?

— Vivi em Tuen minha vida inteira.

— Vivianne — Pierre disse em voz mais branda — você é de Deran, Coalim também. E eu — colocou a mão sobre o peito — sou da Fronteira. — O fogo ousou esticar um pouco mais sua luz.

— Percebem? — perguntou Pierre. — A Franária está aqui, jogando cartas na Pluma.


Capítulo 64