A Boca da Guerra

Capítulo 12: Neville – Pedregulho

Olivier de Tuen, conselheiro do rei, não prestou atenção aos quinze novos recrutas em frente ao rei. Olivier era um homem comprido, de rosto sulcado e nariz afinado; cantos dos lábios puxados para baixo. Cheios de enfado, pensou Neville. O conselheiro estava sempre presente nas cerimônias de lealdade, fidelidade, dade-dade, juramentos feitos por jumentos (palavras de Olivier em uma visita feita ao pai de Neville muito tempo atrás). Enquanto Neville, Robert e os outros treze rapazes se ajoelhavam perante Henrique, Olivier tentava arrancar com a ponta da bota um pedregulho preso a uma falha do chão.

Os jovens fizeram seus votos a Henrique de Baynard, que estava em pé e de braços cruzados no topo da escada atrás de Olivier. Até o pescoço de Henrique era musculoso. Juba loira, nariz reto retangular, antebraços grossos com veias saltadas. Um sol em corpo de homem, foi como Maëlle descreveu Henrique a Neville criança.

Os dois melhores amigos de seu pai estavam na frente de Neville: um no topo da escada, outro na base cutucando um pedregulho. O rei Henrique visitou o capitão uma vez depois da Batalha da Ponte. A casa de Neville pareceu pequena demais para aquela montanha de rei.

Neville esperava que o rei falasse ao ex-capitão, que arrancasse ele daquele interrogativo torpor, daquele cheiro parado de mofo e traças, mas o rei não conseguiu plantar os olhos no homem sem pernas. A montanha encolheu-se sobre uma cadeira ao lado da janela pela qual escapava o inacabável Por quê...?

O rei ficou pouco tempo dentro da casa de Neville. A cada minuto, se encolhia um pouco mais, até que finalmente encontrou o olhar intenso e negro de Maëlle. Henrique se levantou num ímpeto e saiu para a rua como se temesse que a casa, o silêncio e o por quê o engolissem vivo. Ele nunca mais voltou.

— O que traz na mão? — Do topo da escada, o rei apontou para Neville.

Olivier cutucou o pedregulho ainda um instante antes de se mover e estender a mão para o mulato. Neville entregou a Olivier o medalhão do pai, a águia prateada de capitão. Uma das sobrancelhas de Olivier se livrou do tédio e se espantou. Ele finalmente olhou para Neville. Então, todo o rosto foi se modificando, ganhando intensidade, varrendo o tédio e colocando no lugar uma eletricidade que Neville não soube ler.

— Neville — disse Olivier.

— O que é? — perguntou Henrique. — Mostre-me.

Olivier entregou o medalhão ao rei.

— Vou guardá-lo comigo por hora — disse Henrique a Neville — mas espero devolvê-lo em breve.

— Com sua permissão, senhor — Neville se levantou. — O medalhão pertence ao meu pai. Ele perdeu as pernas, não a honra, servindo Baynard. — E estendeu a mão para o rei.

Os outros recrutas murmuraram entre si. Henrique levantou as duas sobrancelhas douradas, então soltou uma gargalhada sonora e desceu os degraus até Neville.

— Guarde-o. Um dia, se tudo correr bem, eu te darei permissão para usá-lo no pescoço. — Ele estendeu os braços como se segurasse uma bandeja. — Soldados de Baynard! Vocês agora são meus irmãos. Seu juramento torna meu o sangue que corre em suas veias.

Terminada a cerimônia, Olivier pegou o cotovelo de Neville.

— Você veio tomar o lugar do pai — ele disse. — Ajoelhou-se no lugar de um homem que não pode mais se ajoelhar.

Neville nada disse. Olivier não parecia estar fazendo uma pergunta.

— Ouvi dizer que coça — continuou Olivier de Tuen. — Que uma perna perdida ainda coça. É verdade?

— Visite meu pai — disse Neville — e pergunte você mesmo.

Ele se soltou de Olivier e foi procurar Robert. Quando olhou para trás, Olivier o observava, o pé ainda cutucava o pedregulho preso entre pedras, mas cutucava pensante. O que queria Olivier? Importava-se com o pai de Neville? Tinha medo do que poderia encontrar, assim como o rei não conseguiu encarar o amigo caído? Se Olivier visitasse o pai, talvez ele alavancasse o ex-capitão de volta para a vida.

— Ele nunca vai conseguir — disse Robert.

Neville precisou de alguns instantes para entender de que Robert estava falando. O amigo apontou para um rapaz franzino conversando com o rei. Era um pouco mais velho do que Robert e Neville, mas magro e baixinho, um galho seco perante o rei montanhoso.

— Não, Leonard, — disse Henrique. — Você não foi feito para ser soldado.

— Eu posso me tornar forte — implorou Leonard. — Vou treinar três vezes mais que os outros. Eu posso seguir bushido.

Ao lado de Neville, Robert disse:

— Eu falei para ele não vir. — Robert e Leonard eram irmãos de orfanato. — Ele nunca se tornará soldado. — Mas o único caminho que um órfão podia seguir era o das armas. Se Leonard não podia se tornar soldado, o que lhe restava?

Atrás deles, um recruta de orelhas cinas riu e apontou.

— Olha lá o descendente de acidente.

Os outros recrutas se juntaram ao redor do de orelhas finas e riram. Henrique ouviu. O rei montanhoso caminhou em direção ao recruta, que calou o riso.

— De quê vocês estão rindo? — perguntou o rei. Ele apontou o nariz para o de orelhas finas. — Seu nome.

— Vincent, senhor.

— Que espécie de homem ri dos indefesos?

Neville percebeu, com o canto do olho, o menino Leonard se encolhendo como se tivesse levado um tabefe. Henrique o defendia, mas também o chamava de fraco. Neville entendia o rei. Ele mesmo enxergava Leonard como um menino, apesar de Leonard ser mais velho do que Neville.

— Um soldado de Baynard defende aqueles que não podem se defender sozinhos — continuou Henrique. — Ele não menospreza os fracos, mas se coloca à sua frente como escudo. Neville!

Neville levou um susto ao ser chamado em voz tão alta. Até os soldados no topo do muro ouviram e se voltaram, curiosos, para ver quem ele era.

— Conte-nos a respeito de bushido — disse o rei.

Neville queria agradar seu rei, mas também queria fazer Leonard se sentir melhor. Mesmo que ele tivesse corpo frágil, não parecia justo que Leonard se sentisse um fraco. Neville escolheu suas palavras:

— O espírito de um guerreiro nunca se aquieta, sempre busca evoluir, mesmo quando ele não carrega armas. O verdadeiro guerreiro luta, mesmo que só com a mente, e nunca menospreza amigo ou inimigo.

Henrique deixou as palavras assenterem, talvez ele mesmo precisasse pensar nelas. A cabeça de Leonard Acidentado já não pendia sobre o peito, mas estava ligeiramente inclinada para o lado, reflexiva. Um do soldado careca no topo do muro apoiou os braços sobre a amurada e ficou observando Neville.

— Um diplomata — murmurou Olivier atrás de Henrique. Neville nem havia percebido que o conselheiro estava ali, atrás do ombro enorme do rei.

— Dispensados — disse o rei e, com um último aceno de cabeça para Neville, subiu os degraus do Esmeralda. Olivier não o seguiu.

O sol escorregou para trás da muralha e o pátio mergulhou em sombra. Um último raio dourou uma figurinha jovem agarrada ao portão. Morena, cheia de curvas, lábios generosos, olhos de gazela.

— Thaila — disse Robert e correu até o portão. Lá chegando, voltou-se para o pátio e chamou Leonard: — Venha conosco. Vamos comer.

Leonard sacudiu a cabeça. Não tinha fome.

Neville foi se juntar a Thaila e Robert. Voltou-se uma última vez para o pátio agora em sombras e percebeu Olivier, a boca semi aberta, as pupilas dilatadas fixas em Thaila, ainda envolta em raio de sol. Os olhos de Olivier salivavam, mas não, pensou Neville, Olivier era velho demais para desejar Thaila. Não era? Neville voltou-se para ver se Thaila havia percebido alguma coisa, mas os olhos dela o estavam seguindo. Ela nem olhou quando Robert pegou o braço dela e disse:

— Vamos, Thaila. Acho que eu e Neville merecemos um pedaço de pão doce, não?

Ela continuou olhando Neville e só virou o rosto quand Robert puxou sua mão, dizendo:

— Thaila, você me ouviu?

Neville não entendeu por que Thaila demorou tanto para se mover, mas havia qualquer coisa afiada no relance rápido que Robert lançou em sua direção quando finalmente conseguiu puxar Thaila para longe do portão. Então, um vento suave correu pelo chão do pátio do Esmeralda e Neville pensou ouvir um eco rouco escalando sua espinha.

— Thaila — murmurou Olivier.


Capítulo 13

Dois estudos de Neville.