A Boca da Guerra

Capítulo 44: Vivianne – Deveres

Vivianne pediu que Marcus ficasse em casa.

— Por que você insiste em fazer essa ronda? Farheim e Inlang não podem mais nos atacar.

— Graças a você, eu sei — disse Marcus. — Pode parar de se exibir.

Vivianne jamais deixaria o irmão esquecer que foi ela quem descobriu como defender Deran das invasões nórdicas.

— Para que construir as torres na Onda se você insiste em ficar cavalgando para todos os lados? — perguntou Vivianne. — Acha que o Norte ainda pode invadir?

— Estou para ver um urubu desistir de uma carcaça.

Vivianne torceu o nariz. — Deran não é carcaça.

— A Franária é — disse Marcus. — Se eu estivesse no lugar de Farheim e Inlang e alguém colocasse um obstáculo em meu caminho, eu encontraria um meio de superar o problema, e o faria de modo que nada jamais pudesse me deter novamente. Pare de discutir, Vivianne. Eu sei que você tinha planejado visitar Clément e explorar todas as arquiteturas escondidas da Pedra, mas nossos desejos vêm depois de nossos deveres. Eu vou fazer a ronda e você vai cuidar de Lune até eu voltar.

Vivianne queria muito explorar a Pedra novamente, agora que ela tinha os mapas originais do castelo, mas Marcus tinha razão: ela era Mestra de Lune e o dever para com seu castelo e povo vinha antes de sua paixão por arquitetura.

Poucos dias depois da partida de Marcus, Vivianne recebeu a notícia de que o rei Clément de Deran decidiu ser absurdo de novo. Acompanhado de apenas quinze soldados, o rei acampou no sul de Deran, praticamente na fronteira com Baynard, perto o suficiente de Lune para tornar sua segurança responsabilidade de Vivianne. Ela não estava traindo Marcus, nem seu dever, deixando Lune. Ao contrário, tinha obrigação de levar Clément de volta para a Pedra.

Vivianne cavalgou com duzentos homens através da cidade de Lune para as paisagens ondulantes de Deran. Algumas horas depois, seu traseiro doía tanto, que Vivianne teve de caminhar, o que tornou a viagem muito mais longa do que deveria. Como deve ter sido bom viajar na época dos trens de Sátiron. Mais depressa do que cavalos, mas confortáveis do que carruagens

— Eu não compreendo a ignorância do povo franês — Vivianne disse certa vez ao Vulto. — Onde foram parar a feitiçaria e os trens de trilho fixo? Como pode ter desaparecido esse conhecimento?

— Sabedoria e guerra, tirania e erudição — disse o Vulto. — Onde um prospera o outro murcha.

Vivianne se levantou da escrivaninha, se afastou de seus mapas e foi até a janela, de onde se podiam ver as ruínas de uma antiga fábrica de sapatos. Durante o império, faziam-se sapatos em Lune. Quando a Terra dos Banidos surgiu e Sátiron desapareceu, a feitiçaria entrou em declínio, as fábricas uma a uma se fecharam, sem energia mágica que alimentasse as máquinas, e as construções foram desmontadas. As pedras da fábrica de Lune foram usadas na construção de uma nova fortificação da cidade.

— Como pudemos esquecer? — perguntou Vivianne. — A Franária foi parte do império, o que significa que toda a nação teve acesso aos conhecimentos satironeses. Só o que se tinha a fazer era passar essa informação para as futuras gerações; não era preciso inventar a engenharia das locomotivas, bastava não esquecê-la. A feitiçaria já estava aí, bastava não perdê-la. Por que Patire, Deran e Baynard permitiram que uma guerra estúpida quebrasse essa corrente de conhecimento?

— Você fala da guerra como ela é agora — disse o Vulto — preguiçosa e previsível como um grande bocejo após uma refeição pesada e sangrenta que já durou quase quatrocentos anos. Mas o começo não foi assim. Uma guerra que se inicia sente fome de terror, não deixa espaço para o ensino. O homem comum se transforma em bicho, sobrevivência é o objetivo, e só um conhecimento interessa: aquele que mata. Os feiticeiros foram caçados, muitos temiam seus poderes. Objetos mágicos, sem alguém que os preserve, morrem por si mesmos. Reatores mágicos são mais frágeis do que cristal, evaporam, se desfazem.

— Você não pode criar novos reatores? — perguntou Vivianne. — Eles eram feitos por um mago em Sátiron, não eram?

— Eu não tenho conhecimentos de feitiçaria. Foi Fregósbor quem a inventou. Ele criou os reatores e estava trabalhando em um jeito de tornar os outros países independentes de Sátiron.

O Vulto se calou. As sombras dentro do capuz ficaram mais densas, como nuvens que se preparam para a chuva. O Vulto raramente falava sobre Sátiron, sobre as pessoas que ele conheceu lá; gente que foi enterrada pelas trevas da Terra dos Banidos.

Vivianne gostaria de perguntar mais a respeito de feitiçaria, queria saber mais sobre Sátiron, os lobos, Nakamura, as imperatrizes, mas não queria deixar o Vulto triste. Voltou para um tópico mais corriqueiro.

— Se a guerra foi tão terrível no começo, — Vivianne disse — ela deveria ter dizimado toda a população.

— Isso aconteceu. Você não se assombra com o vazio?

— Vazio?

— As cidades parecem abandonadas. Há ruínas demais. Pense nas grandes fortalezas Franesas: a Pedra aqui em Deran, Chambert em Baynard, e os Saguões de Neve em Patire. Fortalezas dessas proporções foram construídas para pelo menos quinze mil soldados cada. Sem contar a população civil. Hoje em dia, em Deran, se somarmos Lune, a Pedra e Sananssau, talvez consigamos quatro mil soldados ao todo. Em Patire, se contarmos os soldados de Beloú e dos Saguões de Neve, teremos talvez cinco mil. Baynard, com Debur, Fabec e Tuen (não incluo Chambert porque nenhum soldado mora lá), mal oferece outros quatro mil, especialmente depois da revolução em Debur. Isso é menos do que quinze mil somando toda a Franária. — O Vulto sacudiu a cabeça. — Houve doenças, incêndios e fome, além de batalhas ferozes no início da guerra. Só pelo tamanho das cidades e castelos, você pode deduzir que a população da Franária chegou muito perto de ser dizimada.

‘Foi esse também — continuou — o motivo de os três sub-reinos concordarem em restringir as batalhas a um único campo. Em algum momento na história desta guerra, a matança precisou ser contida.

— A Boca da Guerra — murmurou Vivianne.


Capítulo 45