A Boca da Guerra

Capítulo 2: Neville – Moscas

O mulato se chamava Neville. Tinha quatorze anos quando a guerra invadiu sua casa. Do topo da colina, ele viu os seis soldados arrastando os pés sujos pelas ruas sem rumo de Debur. A cidade havia crescido ao redor do castelo Esmeralda quando Sátiron desapareceu e o Império se despedaçou. À luz de Sátiron, tudo crescia organizado e limpo, com redes de esgoto, água limpa, eletricidade. Debur parecia migalhas de pedras espalhadas por um gigante descuidado. Casas brotaram em morros e charnecas, amontoados de pedras aqui, pernas de madeira ali. As ruas corriam entre elas, correntezas de terra batida e dejetos das casas, ora empoçando em becos sem saída, ora desovando nos campos, raras alcançando as estradas. Uma rua pequenina levava ao Esmeralda, que teve, antes da guerra, iluminação tanto útil quanto decorativa, mas a luz também se foi com o desaparecimento de Sátiron.

Muitos entravam em Debur e acabavam vendo mais da cidade do que gostariam; conheciam becos, fins de linha, atravessavam sem querer até lugar nenhum. Quem entra em Debur morre em Debur – ditado comum entre viajantes da Guerra.

Os seis soldados que Neville viu do topo da colina conheciam a cidade, sabiam quais córregos de terra batida evitar, quais curvas tomar. Carregavam entre si um fardo pesado que parecia uma rede imunda e velha. Ora sumiam atrás de paredes em quina, ora apareciam, tropeçando em buracos, cada vez mais perto da casa do mulato, que desceu o morro correndo para ver se traziam notícias de seu pai. Ele imaginou que seu capitão e pai havia ido direto para o castelo falar com o rei. Deve ter mandado os homens levar fosse o que fosse aquele fardo até a casa dele enquanto ele conferenciava com Henrique de Baynard.

Os soldados chegaram à casa de Neville antes dele e despejaram o conteúdo da rede imunda sobre a mesa. O menino estacou, os olhos pretos dardejando de um canto a outro, tentando entender o sentido do que havia lá dentro. Sangue velho e marrom em panos espalhados pelo chão; vermelho e pastoso, escorrendo como lava. De onde vinha aquele cheiro de carniça? Parte do menino sabia que vinha da mesa, daquilo que ele não queria entender. A outra parte se rebelava, se recusava, não queria. Ocorreu-lhe que deveria fechar a porta para as moscas não entrarem.

A mãe estava debruçada sobre a mesa, os ombros negros e largos curvados sob um peso invisível.

— Neville — ela disse. — Vamos ter de amputar as duas pernas.

Assim Neville teve seu primeiro contato com a Guerra Civil da Franária. Ele deu um passo à frente e mergulhou no horror, mas não completamente: um pedaço ficou na soleira da porta. Neville ajudou a mãe mecanicamente e entorpecido, metade surdo, metade cego. Metade. Sua inocência ficou lá fora com as moscas.


Capítulo 3