A Boca da Guerra

Capítulo 29: Frederico – Líran

Frederico dormiu dentro da locomotiva, agora completa, mas ainda sem vida. Tentou mas não conseguiu evitar certa dose de tristeza. Tantos anos trabalhando no Eliana. Para quê? Talvez fosse isso que a Velha sentisse depois de sete anos ensinando Frederico. Pelo menos os sonhos da Velha ainda tinham para onde escoar. Faust possuía a força e a liderança que faltavam a Frederico. Para a Velha, existia uma segunda locomotiva.

Ele desceu do Eliana e bateu à porta do vagão da Velha. Bateu uma segunda vez e entrou. Chamou a Velha, tocou-lhe o ombro. Ela não se moveu. Nunca mais. Frederico saiu do vagão, sentou-se no chão e ali ficou, uma locomotiva sem combustível, até o anoitecer. Quando a lua iluminou sua cabeça, ele preparou o solitário funeral da mulher que havia lhe dado uma locomotiva Stanton, segunda geração. Embalou o corpo e fez uma pira tão grande, que chamuscou o céu da noite; tão grande, que foi vista de longe por uma mulher.

Essa mulher se chamava Líran e havia acabado de se tornar humana. Estava em pé sobre um morro careca, de costas para duas figuras que se afastavam e afundavam nas sombras da floresta densa. Se Líran virasse para trás, ainda veria a moça de longos cabelos cor de raposa desaparecer logo atrás de seu companheiro, que usava chapéu preto e capa longa e vermelha. Mas Líran já não se importava com mistérios. Ela era humana. À sua frente, as árvores peladas do fim de outono transformavam a floresta num ouriço gigante. Que diferente era o mundo através de olhos mortais! O coração humano entre as costelas de Líran batia apressado. Ela ajustou a respiração à velocidade do coração. Experimentou tocar o rosto com os dedos frios. O nariz estava mais gelado que os dedos.

Então isto era o frio: endurecer e tremer ao mesmo tempo. Uma sensação por ora curiosa demais para ser desagradável. Líran juntou as mãos ao redor da boca, bafejando nelas como havia visto os mortais fazerem. Como era quente o seu hálito. Estranho ter tanto calor dentro de si, e no entanto sentir frio. Líran sabia que precisava encontrar um meio de se aquecer. Criaturas mortais eram frágeis: morriam de temperaturas.

Viu o brilho de uma chama em meio às árvores dormentes. Iria até aquele fogo. Líran deu seu primeiro passo mortal. O segundo foi igualmente leve e fácil, assim como o terceiro e o quarto. O passo número oito mil e três já não foi tão confortável. A distância que o olhar percorre não é a mesma que os pés caminham. Líran levou o resto daquela noite e o dia seguinte inteiro para alcançar o fogo que já não queimava mais na clareira.

Ela arrasou os pés machucados para a pilha de madeira carbonizada, cinzas e brasas que no dia anterior alimentaram um fogo mais alto que um homem.

— Uma pena que um fogo tão esplêndido deva morrer — ela disse e desmaiou.

Frederico ajoelhou-se ao lado da mulher desfalecida, ergueu a cabeça dela, despejou um pouco da água pelos lábios rachados. Ela pegou a mão que segurava o cantil, abriu os olhos castanhos.

— Então este é o sabor da vida — fechou os olhos e largou a mão dele.

Ele baixou devagar a cabeça da desconhecida até encostar na grama, então tomou um gole de seu cantil. Fresco, límpido, agradável. Em nada parecido com o sabor da vida.

O primeiro desmaio, apesar de novidade, não foi agradável. Líran não quis repetir a experiência. Saltou em pé, achando que colocar o corpo em posição de alerta o impediria de desfalecer. Foi como mergulhar de cabeça no algodão preto. O mundo se apagou e Líran perdeu controle sobre o corpo. Só não caiu porque o homem do cantil a amparou.

— Calma, moça, assim você desmaia de novo.

Líran sentiu o cérebro formigar, sentiu raiva.

— Como é frágil o corpo humano!

O homem ainda a amparava. Era pouco mais alto que ela, tinha queixo delicado, cílios longos curvados para cima, olhos verdes vermelhos, inchados. Ela se deixou ficar ali nos braços dele, experimentando o calor de um corpo vivo. Encostou o rosto no dele e recuou.

— Você também está frio.

Frederico sentiu um arrepio, desses que nascem nos lábios. Se ele movesse o rosto um tantinho para baixo, tocaria a boca dela. Mas aquela proximidade era absurda, o tipo de coisa que só faz sentido em sonhos. E Frederico só tinha pesadelos.

— Eu sou Líran — ela disse.

Ele balbuciou o próprio nome, mas ela pareceu não ouvir.

— O estado de seus olhos me diz que você tem chorado — ela disse — ou não tem dormido. Poderia ser uma alergia. — Pegou o queixo dele e moveu-o de um lado para o outro, examinando o rosto e o pescoço. — Não vejo sinais de alergia em outra parte.

Frederico pegou a mão gelada de Líran e automaticamente a envolveu em seus próprios dedos quentes.

— Não é alergia — ele disse.

— Então você chorou ou ficou insone.

— Os dois. Existe um pesadelo. Ele ganha força quando passo por momentos difíceis.

— Por que este momento é difícil?

Líran tinha um rostinho triangular, que virava um pouco para a direita quando fazia perguntas. Lábios finos, boca pequena, olhos prontos para engolir o mundo.

Frederico olhou a pira já quase sem brasas. O que dizer? Às costas de Líran estava o Eliana, locomotiva Stanton, segunda geração. Encostada à porta fechada da locomotiva estavam duas mochilas com os livros da Velha.

Líran mudou bruscamente de assunto.

— Felizmente eu falo sua língua. — ela disse, a mão ainda na de Frederico. Como mistério ela nunca enfrentou barreiras linguísticas, mas como mortal ela não sabia o que esperar. — Você tem comida?

Enquanto Frederico se afastava para a pira em busca de comida, Líran percebeu a locomotiva e se aproximou dos livros. Ela pegou o livro azul e começou a folhear as páginas.

— Não toque nisso! — Frederico gritou e arrancou o volume das mãos dela.

Era velho e frágil, o livro. A violência de Frederico o rasgou. As folhas caíram no chão, uma após a outra após a outra após a outra, numa cascata de pó e papel pardo. Misturou-se com a morte da Velha, com os olhos pretos da cadelinha do pesadelo, com o sangue luminoso dos calabouços de gelo. A lambidinha nas mãos da rainha Margot de Patire, o punho áspero do punhal contra a pele de Frederico, o ódio frio que morava do outro lado das muralhas de Beloú. Tudo ali, naquela cachoeira de papel entre ele a Líran.

— Tome — disse Líran.

Ele piscou de volta para a realidade. Líran havia recolhido as páginas e organizado-as todas dentro da capa rasgada. Ela ofereceu o livro mal montado para Frederico.

— Dá para ler — ela disse — se você manuseá-lo com cuidado.

— Eu não posso ler este livro.

— Pode, sim. Olhe, todas as páginas estão aqui. — Ela abriu o livro para demonstrar.

— Eu não sei ler este livro.

— Percebo — ela disse. — De qualquer forma, é um livro triste.

O rosto dele se contorceu de raiva.

— Vá embora daqui — ele apontou para a direção de onde ela veio.

Líran recuou, assustada, ferida. Era a primeira vez que encontrava um mortal como mortal e de alguma forma ela o havia repelido. Devagar, ela colocou o livro no chão da locomotiva. Pela primeira vez em sua existência, ela não sabia para onde ir.

— Tome. — Frederico estendeu pão e queijo para ela.

Líran não queria. Ela não havia se tornado mortal para comer. Estava com fome, mas não queria se aproximar do homem que a havia repelido. Por que ele se enraivecera?

— O que eu fiz de errado? — ela perguntou.

— Você! — Que espécie de pergunta era aquela? — Aquele livro é importante para mim. Pertencia a ela — Frederico apontou a pira.

Líran não seguiu a direção do dedo dele. A velha ali estava morta. Líran se interessava pelos vivos. Continuou a interrogar Frederico com os olhos.

— Fingir que você podia ler o que está escrito ali foi mais do que eu pude aceitar — ele disse.

— Eu não estava fingindo.

— Duvido muito que alguém neste país saiba ler aquilo.

— Eu não sou da Franária.

Ela disse Franária ao invés de Patire. Seria possível que ela viesse de algum lugar onde ainda se falasse satironês? Frederico decidiu testá-la:

— Você disse se tratar de um livro triste, mas eu sei que é um livro anjariano, repleto de contos cheios de glória.

— Este é um livro satironês e conta sobre a extinção dos elfos e o surgimento da Terra dos Banidos. A morte de uma espécie, o nascimento de uma maldição. Este é um livro de história, não de contos, e fala sobre tragédia, não glória.

Ele estudou-a pensativo, as sobrancelhas até então tensas começaram a relaxar. Ah, mas havia uma falha nessa história.

— Se o livro conta sobre a Terra dos Banidos, então ele foi escrito depois de seu surgimento.

— Assim foi.

— Mas é um livro satironês.

— Assim é.

— Neste caso — ele disse, triunfante, — você pode me explicar como ele veio parar em Patire? Como este livro veio até aqui se ninguém ousa cruzar a Terra dos Banidos?

— Por ninguém, você quer dizer nenhum mortal. Muitos cruzam a Terra dos Banidos, só vocês que não. — Foi uma resposta distraída. Líran estava folheando o livro, parando para ler alguns trechos aqui e ali.

A Terra dos Banidos e aquele homem dizendo Patire ao invés de Franária deu-lhe uma ideia de em que momento no tempo ela estava, pois o mistério que a havia deixado no topo daquele morro mortal poderia tê-la colocado em qualquer momento da História. Líran sentia dificuldade em se adaptar àquela mente mortal tão restritamente linear. Mesmo suas memórias haviam se acoplado à linha temporal que só ia em direção a um futuro. Como mistério, Líran não era só uma linha flutuando nas tempestades da existência, mas sim o universo que continha a própria existência. Líran era uma esfera infinita em todas as direções. Agora até a eternidade estava no passado.

— A Franária está em guerra? — ela perguntou. — Guerra civil?

— Sim.

— A Guerra Sem Fim?

Ele confirmou. Ela emudeceu. Frederico tocou o ombro de Líran.

— Você lhe contaria uma história? — Ele apontou a pira. — Ela me disse que, no passado, quando a Franária era uma só nação, as pessoas contavam histórias para os mortos em seus funerais.

Líran fechou o livro azul.

— Eu contarei uma história, um conto de Sátiron, mas não deste livro. Não precisamos de tragédias quando já temos de lidar com um adeus.

Ela abriu os braços para a pira e falou com a autoridade de mistérios discursando sobre magia, ou de loucos falando sobre o que não existe.

“Sátiron nem sempre foi a Terra do Impossível. Lar de mistérios e magos, foi Sátiron que recebeu Yukari Nakamura quando ela chegou a este mundo. Mas o impossível quem trouxe foi Nastassja.

Nastassja foi a primeira imperatriz de Sátiron. Ela se apaixonou por um elfo. Uma humana e um elfo? Você me pergunta. Mais fácil uma orquídea amar uma onça.

Impossível. Claro que era impossível. Mas Nastassja foi criada por Nakamura, cresceu entre os lobos de Sátiron. Ela não conhecia as barreiras que a natureza impunha. Os elfos deste mundo eram mais parecidos com as árvores do que com os animais e Nastassja tinha corpo humano, igual ao meu só que de pele negra. Ela poderia ter se apaixonado por um carvalho, uma pedra, um riacho, seria o mesmo que se apaixonar por um elfo. Impossível.

Mesmo assim, ela amou. E, com tanto mistério, com tanta magia no mundo, Nastassja não aceitou as leis da natureza. Ela convocou um mistério, o mesmo que eu. Tinha forma de monstro, o mistério: cabeça de sapo, pele de sapo, corpo de homem, voz de poder.

— Nuille — ela disse, — eu tenho um desejo.

— E eu tenho um preço.

O que ele cobra é um beijo: primeiro ou último. Nastassja cedeu o primeiro beijo seu. Ventos cresceram em furacões de poder.

— Nuille — ela disse — eu quero o impossível.

Foi dessa forma que Sátiron virou a Terra do Impossível.”

Enquanto a voz de Líran soou, o pesadelo de Frederico se espremeu nos cantos mais escuros de sua consciência. A cadelinha no calabouço parou de ganir para ouvir. Líran não contou, ela trouxe a história para a clareira. Sátiron esteve ali. O impossível aconteceu. Frederico sabia exatamente o tom de negro da pele da imperatriz Nastassja. Ele não queria que Líran parasse.

— Só isso? — ele disse. — E o elfo a amou? Eles casaram? Como foi que o impossível agiu? O que aconteceu a Nastassja? E o mistério, para onde ele foi? Você também o beijou?

— Essas histórias são longas — disse Líran — e os mortos em geral têm pouco tempo quando conhecem sua morte.

— Seus olhos — disse Frederico. — ficaram violeta.

— É incomum?

— Entre humanos, sim. Ah — ele apontou. — Estão castanhos de novo.


Capítulo 30