A Boca da Guerra

Capítulo 110

Fregósbor iniciou o recolhimento de Pierre. Já havia passado bastante tempo e o mago temia pela sanidade do rapaz. Impossível prever como todos aqueles sonhos o afetariam. Em uma única noite, Pierre esteve em mais lugares do que a maioria das pessoas em uma vida. Ele foi todos esses lugares. Depressa, porém gentilmente, Fregósbor conjurou todas as moléculas de Pierre e uniu-as.

Pierre, disperso, difuso, pedaços de sua mente ainda procurando um meio de voltar ao lugar. Ele sabia onde estava e com quem, mas não tinha muita certeza de quem era, ou por quê. Esta noite ele encarnou motivos, desejos, promessas — tantos que ele momentaneamente perdeu suas próprias esperanças na multidão. Então ele voltou a ser uma só pessoa. Que esquisito, desde quando?

Tocou seu rosto, seguiu as linhas de suas mãos, experimentando seu próprio formato, devia ter um significado. Ele devia mesmo ser uma pessoa. Um instante atrás ele foi algo mais; muitas coisas mais.

— Eu o ajudarei a se reencontrar — Fregósbor veio guiando Pierre de volta à integridade.

Normalmente o mago teria imediatamente pisado de volta em solo real. Desta vez, por causa de Pierre, ele trilhou todas as matizes do degradée entre sonho e realidade, dando ao jovem tempo para assimilar as nuances de cor, temperatura, textura, cheiro.

Pierre estava agudamente ciente de todos os detalhes, cada insinuação da mudança de mundos. Vento fazia cócegas bizarras e esticava os pelos de seus braços. Fascinante isso de ter cabelo e pele.

O cansaço começou a pesar no corpo de Fregósbor. Uma atividade assim, apesar de meticulosa, não devia ser extenuante. Por que a exaustão? De onde vinha aquela escuridão? E esse medo gelando a pele por dentro: de pesadelos, do escuro. Quanto mais ele se movia, mais treva o envolvia. Ele sentiu-se tão velho quanto era, fraco como poeira, abandonado por magia e vida.

Uma mancha negra bloqueou seu caminho. Tinha a forma de um dragão. Disse:

— Chega.

A treva em formato de dragão abriu a boca como que para cuspir fogo. Uma dúzia de tentáculos escuros rastejou para fora da garganta e miraram em Pierre. Fregósbor agarrou os tentáculos, prendeu-os em seus braços, eles se contorceram em volta do mago, envolveram-no e se apertaram para esmagá-lo.

Sáeril se impressionou que seu velho pupilo, que deveria ter morrido séculos atrás, ainda tivesse a capacidade de conjurar aquele tipo de poder. Também Pierre, espalhado em moléculas, o impressionou. O rapaz continuava ele mesmo, apesar de esfarelado em moléculas. Junto com a reverência, um temor unhou o peito de Sáeril. Ele viu trevas se acumulando nas periferias dos sonhos, formando um cerco.

A Guerra esperou. Lutar contra esperança e magia de nada adiantava. O momento certo era quando o mago dos sonhos, cansado das peripécias noturnas, concentrasse toda a sua atenção em recolher aquela criatura venenosa de nome Pierre. Então, A Guerra deslizou devagar para baixo dos pés de Fregósbor e elevou-se ao seu redor como vapor, intoxicando sua magia, deixando-a dormente e enfraquecida. Guerra capturou o mago como planta carnívora a uma mosca.

— Você pode ajudar?

Sáeril levou um susto. Foi a voz de Pierre que o alcançou. De alguma forma o rapaz ainda estava no sonho de Sáeril, era o sonho. Ele sentiu o que Sáeril sentiu, percebeu o que Sáeril percebeu. Mais uma vez o mago se impressionou com a capacidade de Pierre se manter vigilante naquele estado de farelo.

— Duvido que chegue a tempo — disse Sáeril. Já havia começado a se locomover em direção a Fregósbor.

Sáeril era mestre de muitas coisas, mas não de sonhos. Não podia se mover depressa ali. Escalou as linhas de magia que Fregósbor havia usado para atar os cacos de sonhos, e que agora estavam soltas pelo mundo onírico. A matéira de que são feitos os sonhos resistiu ao seu avanço enquanto Fregósbor desaparecia entre os tentáculos de Guerra.

Dois tentáculos se desprenderam e avançaram para Pierre, que estava, literalmente, fora de si.

— Pierre! — Daquela distância, gritar era tudo o que Sáeril podia fazer.

A voz do Vulto, real e urgente, acordou Pierre. Ele buscou sua espada, que não estava lá antes, mas que apareceu quando necessária, como é o costume nos sonhos, e decepou os dois tentáculos. Agarrou uma das linhas mágicas de Fregósbor, jogou uma ponta para Sáeril e puxou o Vulto para si.

O que aconteceu em seguida teve o gostinho típico dos sonhos, embora Pierre não precisasse voltar à realidade para achar aquilo absurdo. O Vulto, em seu magnífico manto negro, mais preto que as trevas, pousou ao seu lado e avançou para o dragão de trevas brandindo uma avelã.

E não é que a escuridão se retraíu? Os tentáculos fugiram como enguias. Fregósbor ressurgiu e caiu inconsciente nos braços de Pierre. O jovem agradeceu a Sáeril. Os sonhos às vezes tornam obsoletas as apresentações. Pierre e Sáeril nunca haviam se visto, mas ali, já se conheciam.

— Você sabe o caminho de volta? — perguntou o Vulto.

— Sei.

Cada um partiu em direção ao próprio despertar.

Líran teve um sonho agradável, com Pierre, Vivianne e traços de Fregósbor. Apoiou a cabeça na mão e o cotovelo no chão.

Emoldurado em folhagem, a barra do manto negro disperso em relva, Sáeril estava em pé, de perfil, com o punho erguido. O que será que ele segurava?

— Você está bem? — perguntou Líran, pois o punho tremia de tanto apertar.

— Enfrentei trevas esta noite. Revelei o poder que carrego. A Guerra sabe o que esperar de mim.

Líran se levantou e segurou o punho negro com as duas mãos.

— Ela não sabe o que esperar de mim.


Capítulo 111