A Boca da Guerra

Capítulo 72: Erla – A Guerra

Tudo o que se perde as trevas preenchem. Elas te sangram como porco pendurado em gancho, então te nutrem com substância mais densa.

A Guerra tirou de Erla toda a família, mas lhe deu em troca Olivier. A Guerra se alimentou da mulher de Olivier, mas deu-lhe Erla em troca. Eles dois juntos respiravam trevas; escuridão tomou o lugar de seus glóbulos brancos, mas às vezes Erla achava que Olivier não enxergava, não ouvia a voz da Guerra sussurrando debaixo das folhas mortas.

Por isso ele procurava nutrir seu corpo com sangue jovem, com Thaila. Erla teria matado Thaila, mas Erla não tinha trevas próprias. A Guerra podia tirar e nutrir, Erla só podia tirar. Se Olivier fosse igual a ela, Erla poderia matar Thaila e ele mesmo se refestelava em trevas, mas Erla às vezes achava que ele não enxergava.

Só havia uma coisa maior que a Guerra, maior que as trevas, maior que tudo o que Erla perdeu. Olivier. Só existia um medo. Perder Olivier. Ele seria grande nas trevas, se ao menos fechasse os olhos para as coisas que não duravam e enxergasse a Guerra, a vida na escuridão com Erla. Esqueça essa felicidade magra, venha comigo onde as trevas engolem as sombras.

Olivier se agarrou a Thaila e se Erla tirasse ela dele, Olivier não buscaria Erla para preencher o sangue perdido. Outra pessoa tinha de tirar Thaila de Olivier. Erla pediu a Guerra que levasse embora aquela mulher de pão. Pierre e a mulher das muletas levaram Thaila, mas eles não foram a resposta que Erla queria. Não foi Guerra quem os enviou e as correntezas daquele Pierre varriam embora as trevas da Guerra.

Erla não gostava dos sonhos que tinha desde que Pierre chegou a Tuen. Acordava no meio da noite com medo do escuro. Aquele escuro não nutria. Aquele escuro era só noite e os lobos saem à noite. Erla não gostava de sonhar com Pierre. Preferia sonhar com o dragão, mas mesmo o dragão estava enfestado.

Às vezes, no sonho, o dragão vermelho estava inteiro negro por dentro, então ele dava um pinote e virava todo fogo. As trevas escalavam de novo as escamas, se infiltravam nas plumas brancas das asas, que pendiam pesadas de óleo negro invisível.

— Dragão — chamou a águia no último sonho. A águia magra, esbranquiçada e gasta.

O dragão pediu ajuda, mas a águia não tinha forças.

— Estou morrendo — ela disse. — Você faz parte da minha morte. Mas, dragão, você voltou. Aquele dia na estrada eu vi. Você era treva e voltou a ser magia.

— Foi Pierre — disse o dragão. — Ele disse meu nome.

— Então começou — disse a águia. — Minha história começou.

A garganta de Erla acordou fechada, nem ar nem trevas passavam e ela gritou sem ar e sem voz. Guerra não atendeu. Foi Olivier quem ouviu o grito mudo. Às vezes Erla duvidava que ele enxergasse as trevas, que ouvisse a Guerra, mas ele sempre ouvia Erla.

Olivier não estava pronto para receber dela mais do que amor de filha. Thaila estava ali para provar. Pierre ao menos tirou Thaila deles. Pierre, a mulher das muletas, aqueles homens lambidos por fogo de dragão, então Maurice e Gaul dando as costas a Olivier, Olivier dando as costas a Tuen. Onde estava a Guerra?

As correntezas erradas varriam Tuen, acorrentavam Olivier. Por que a Guerra perdia tanto tempo com o dragão e ignorava Pierre? Então, Erla pensou, ali sentada na cama estreita e dura dos calabouços de Tuen. Olivier esteve ali antes dela, mas ele estava livre e agora enxergava além de Thaila. E Erla pensou, a Guerra não faz nada porque não tem medo.

A mulher das muletas e o meio-queimado entraram na cela para interrogar Erla. Eles não eram nada. A Guerra não lhes dava atenção, de tão pequenos. Coitados, ela disse. Coitados! Ali se debatendo em correntezas rasas e a Guerra nem sequer os via.

Então ela se calou porque a porta do calabouço escancarou esparramando luz pelas paredes e uma sombra muito escura no chão. A mulher das muletas e o meio queimado esperaram Pierre chegar até eles.

— Vocês vão ver quando Olivier voltar — disse Erla. — Vão morrer mais fácil que Maurice, príncipe de porcos. — Então ela costurou os lábios com linha invisível. Guerra talvez não tivesse medo, mas ela tinha. Aquele homem de pele vermelha carregava o nome do dragão e o preto dos olhos dele tinha cor de lobo cinzento.

Além dele, através da parede, Erla viu os olhos púrpura da mulher que mudava de cor. Agora branca, depois negra, então elfa, achando-se mortal, porém sempre mistério.

A mulher das muletas deve ter percebido que não conseguiria mais nada de Erla, porque se afastou. O meio queimado tinha metado do rosto assustada. Pierre examinou Erla por alguns instantes, então seguiu a mulher das muletas para fora dos calabouços. Havia mais um par de passos, mas a quarta pessoa não entrou na linha de visão de Erla.


Capítulo 73