A Boca da Guerra

Capítulo 101

Frederico descobriu que as horas cinzentas são mais longas. Os gestos cinzentos, mais demorados e menos notados. Ele percorreu estradas atrás de uma cortina espessa. Teve a impressão mas não a certeza de ter passado por refugiados magros, corpos deitados na estrada, um exército. Frederico era uma rocha submersa, ligada à superfície por um fiozinho negro e a cada passo que dava, o medalhão de Faust mordia-lhe o peito. Como pode uma rocha aprender a nadar?

Não interessa, era preciso. Se o livro queimado da Velha havia vencido fogo e cinzas, também Frederico tinha de ressurgir das trevas, escalar água com mãos de pedra, lutar ombro a ombro com o homem que matou Faust. Neville disse não ter matado Faust mas, se não ele, então quem?

— Olá, velha amiga — Frederico esparramou a mão cinzenta pelo focinho metálico da locomotiva Eliana, puxando energia de ferro para enfrentar o corredor gelado do pesadelo sempre preso nas dobras de sua existência.

Mal Frederico se virou, lá estava a rainha Margot, guiando-o por entre paredes geladas em direção à porta que bafejava brasa no corredor quimérico. Frederico atravessou o portal entre frio e dor. Lá dentro, a despeito das tochas e suas chamas frenéticas, a treva era mais forte que no corredor. O ar, embriagado em carniça, pesava nos cílios. O homem atrás da mesa, mãos de gorila afagando uma cadelinha com olhos pretos de terror.

— A morte é alívio — disse a rainha Margot e Frederico experimentou mais uma vez o gosto áspero de uma adaga na palma da mão.

— Um dia você vai me agradecer — disse Margot.

Os gritos da cadelinha ecoaram pelo pesadelo antes mesmo de as mãos calejadas começarem a trabalhar.

— Pare — disse Frederico. — Por favor, pare.

A vida inteira ele suplicou, noite após noite, por favor, pare.

— O que é isto? — uma voz relampagueou no pesadelo.

Tudo parou. Frederico olhou em volta, buscando a origem daquela voz alienígena. A rainha Margot piscou, como se tivesse acabado de acordar.

Um jovem moreno com olhos cor de mel empurrou o homem das mãos sanguinárias, pegou a cadelinha nos braços. A língua da cachorrinha atacou o rosto de seu salvador, o rabinho parecia asa de beija-flor.

— Pierre? — perguntou Frederico. Olhou para a mãe e para o homem no chão, todo embaçado exceto pelas mãos. Frederico esperava uma reação, um ataque. Pensou que agarrariam Pierre e o colocariam na mesa junto com a cachorrinha. Mas Pierre não fazia parte do mundo deles. Olhavam-no tão atônitos quanto Frederico.

— É sua? — Pierre empurrou a cachorrinha contra o peito de Frederico.

Se o bichinho abanasse a cauda mais depressa, levantaria voo.

— Ela gosta de você — disse Pierre. — Preciso ir. Estou tentando acordar. — Empurrou para o lado uma parede de tijolos, como se empurra uma cortina, e sumiu.

— Isto não é possível — disse Frederico.

— Não — disse o mago Fregósbor. Desde quando ele estava ali?

As paredes que Pierre transformou em cortina esvoaçaram enquanto Frederico tentava impedir que a cachorrinha o afogasse em lambidas. Ele virou o rosto, fugindo da língua incansável e viu um vale que não pertencia ao seu pesdelo. Sólidas névoas que abafavam até o som de lâminas gritando e carne calando. Frederico conhecia o cheiro dos pesadelos e sabia que aquela batalha era o horror de outra pessoa. A cachorrinha parou de lamber, até o rabo se deteve em riste.

A névoa começou a se rasgar em linhas incertas de flocos de neve, que derreteram em vermelho e Frederico viu um homem atravessar outro com a espada. Ele reconheceu o assassino e também a voz do assassinado, que morreu espantado perguntando:

— Pai?

A cachorrinha rosnou para a rainha Margot, que continuava em pé no corredor gelado, na beira da névoa.

— Você mentiu para mim — disse Frederico. — Neville não matou meu irmão.

— Meu filho — disse a rainha — você precisa entender. Para que serve você?

— Eu não sou seu filho — disse Frederico. Sob a palma da mão o focinho liso do trem Eliana esquentou. — Nunca fui.

O nevoeiro ficou rarefeito, assim como o corredor e o cheiro de dor. Pierre já não se via, mas Frederico agarrou a manga comprida do mago barbudo, que cambaleou espantado:

— O quê? Quem?

— O rei Fulbert — falou Frederico. — Onde ele está?

Fregósbor ergueu as narinas para o ar um instante, como cão farejador. A cadelinha imitou o gesto.

— Em Chambert — o mago disse e foi atrás de Pierre.


Capítulo 102