A Boca da Guerra

Capítulo 55: Vivianne – Chambert

— Eu preciso encontrar o mago de Lune — disse Pierre. — Você sabe onde ele está?

Vivianne não sabia e Pierre pediu licença, se levantou e levou a bandeja de volta para a cozinha. Ele pegou a mochila no caminho e não voltou. Vivianne encontrou uma vassoura, pegou apenas o cabo e apoiou-se nele para caminhar. Precisava encontrar a Caravana de Rimbaud e sair de Tuen com Coalim e os outros sobreviventes.

Do lado de fora da Pluma, Tuen começou a abrir os olhos. As primeiras janelas bocejaram para a rua, o cheiro de café se espreguiçou em fiapos de vapor, cortinas pesadas se enrugavam cheias olheiras contra a manhã esbranquiçada. Em Lune Vivianne tinha um mapa antigo de Tuen, cidade planejada e construída antes da guerra. As ruas continuavam praticamente as mesmas e ela seguiu até chegar a uma praça grande o suficiente para acomodar a Caravana de Rimbaud, mas só encontrou uma dúzia de pessoas carregando uma carroça com sacos cheios de trigo.

Ou melhor, não devia ser trigo. Eles não podiam ter colhido trigo tão logo depois das tormentas de inverno. Estava cedo demais para o plantio, quanto mais para a colheita, mas Vivianne não estava interessada e não ficou para inspecionar. Havia mais praças e até um parque na planta original de Tuen. Cidades do Segundo Império costumavam ter parques. A maioria das casas estava vazia e arruinada. Vivianne se lembrou da conversa que teve com o Vulto, anos antes, sobre o começo da guerra, a morte de milhares. Ele tinha razão: aquelas cidades e fortalezas estavam praticamente vazias.

As ruas de Tuen praticamente não haviam mudado seu desenho em quatrocentos anos. Vivianne se perguntou se aquilo era normal ou mais uma sequela da Guerra. Ela ocupou a mente com mapas antigos e recentes para se distrair da dor na perna. Com a ajuda do cabo de vassoura, ela conseguiu chegar até o parque, mas Rimbaud também não estava lá. O mato (durante o Império deve ter havido grama e talvez até flores, agora era só mato e árvores) ainda estava amassado pelo peso das carroças, mas a Caravana já não estava mais lá.

— Se está procurando Rimbaud, ele foi embora faz tempo.

Quem disse isso foi um homem de pele muito negra, com olhos saltados e roupas de couro, uma espada na cinta. Aquele homem devia ser capitão, pois carregava no peito um medalhão prateado com um sapo e uma raposa sentados no aro.

— Sou Gaul, capitão de Tuen — ele disse. — Você deve ser a amiga de Pierre. Está melhor?

— Estou, obrigada. A Caravana: quando partiu? — Se ela encontrasse cavalos para ela, Coalim e os dois soldados queimados...

— Você não pode alcançá-los — disse Gaul. — Foram embora faz quatro dias, só ficou a contadora de histórias, para sorte de Joanna, que nunca viu a Pluma tão cheia. Rimbaud está levando a Caravana para longe da Franária, para o Anjário.

— Venha, — disse Gaul — te acompanho de volta à Pluma. Preciso falar com Pierre.

— Pierre foi embora — ela disse.

Gaul ficou tenso.

— Para onde.

— Acho que voltou para a Fronteira.

Gaul se afastou depressa, então começou a correr. O que será que ele queria com Pierre? Não importava. Vivianne perdeu a Caravana. Ela pensou durante alguns instantes se havia algo que pudesse fazer. Nada. Então ela decidiu que podia dar vazão aos seus desejos.

Ali perto ficava Chambert. Ela nunca havia visto a planta dele nem sequer ilustrações. Ela arrastou a perna pela rua, fazendo caretas de dor, as mãos suando contra o cajado improvisado.

Vivianne estava sendo imprudente, precisava repousar, mas nunca havia visto um castelo do Segundo Império antes. Na Franária inteira só havia dois: Chambert e os Saguões de Neve. Ela nunca veria os Saguões, lar de Fulbert e Margot de Patire, mas estava tão perto de Chambert! E Chambert havia sido construído depois que Gorgath entrou para o Império, trazendo toda a complexidade de sua arquitetura para o ocidente. Vivianne talvez nunca tivesse outra chance de ver aquilo com os próprios olhos.

Ela foi seguindo o mapa de Tuen que tinha guardado na mente até chegar ao pé da muralha, onde sabia que haveria uma escada. A perna doía tanto, que os cantos dos olhos de Vivianne enegreceram. Ela apoiou as costas contra o muro e esperou que sua visão voltasse ao normal antes de começar a subida. Primeiro a perna boa, depois a perna ferida. Perna boa, perna ferida. O vestido longo atrapalhava. Quando voltasse à Pluma, teria de conseguir um par de calças. Transpirava e respirava com dificuldade. A muralha de Tuen era uma das mais altas da Franária. De acordo com os mapas de Vivianne, ela teria de escalar trezentos e quatorze degraus até o topo.

Onze... doze... treze. Vivianne teve de parar várias vezes para descansar. Setenta e cinco... setenta e seis... Soldados e civis passavam por ela sem demonstrar curiosidade. Cento e um.... Desviavam-se como se ela fosse uma pedra e seguiam sem perguntar nada. Duzentos. Estranho: se alguém começasse a subir os muros de Lune, um dos soldados perguntaria por quê. Ela parou de contar os degraus e concentrou-se em não desmaiar de dor. Passou a usar uma das mãos para se apoiar nos degraus de cima e engatinhou até o fim da escada.

O topo da muralha era largo e ensolarado. No lado voltado para a cidade, havia diversos estandes com frutas, bolos e objetos à venda. Havia também varais com roupas estendidas para secar. Os soldados se movimentavam na outra metade da muralha, voltada para fora. Mesmo ali, havia civis. Crianças brincavam de saltar as ameias. Entre uma ameia e outra, um menino e uma menina dividiam uma laranja. A cidade inteira frequentava a muralha, por isso ninguém achou estranho Vivianne estar ali.

Ela se apoiou na vara e atravessou o muro até uma ameia vazia, onde apoiou os braços e cerrou os olhos. O coração palpitou no peito, ela prendeu a respiração. Estava prestes a ver um dos castelos de seus sonhos. Teve medo que que estivesse arruinado, de que a guerra, o abandono e o tempo tivessem transformado ele em uma sombra raquítica daquilo que ele deve ter sido. Vivianne abriu os olhos.

Chambert, um castelo cor de areia esparramado em campos férteis, com muralhas de dez metros de altura cobertas de desenhos que lembravam dunas, vento, ondas. Vivianne não acreditou no que viu. Enquanto as muralhas de Tuen esfarelavam com as cáries do tempo, as de Chambert pareciam ter sido erguidas naquela manhã. Vivianne enxergou três torres, todas no estilo franês, mas, pelas proporções da muralha, Chambert devia ter pelo menos o tamanho de Tuen.

Vivianne se apaixonou.

— A vantagem de amar castelos é que eles não têm ciúmes — ela disse uma vez a Clément.

— Mas eles também não te amam de volta — disse o rei de Deran.

Cinco carroças cruzavam a distância entre Tuen e Chambert. Vivianne se lembrou dos sacos que havia visto na praça antes de encontrar Gaul de Tuen. Se fossem grãos, teriam de ser moídos. Tuen tinha um moinho mas, se Vivianne se lembrava direito, era movido a feitiçaria e provavelmente não funcionava. Chambert havia sido construído durante o Segundo Império, quando surgiu uma onda de nostalgia, onde as pessoas romantizaram a vida antes da feitiçaria de Sátiron. Era comum, naquela época, construir aparatos antigos, mecanismos pré-feitiço, apetrechos manuais. Os castelos mais ricos tinham moinhos à moda antiga. Ninguém os usava, serviam só de enfeite, mas, em teoria, funcionavam. Chambert devia ter um desses moinhos.

Antes de voltar a Lune, Vivianne daria um jeito de visitar o castelo. Ela estreitou os olhos. Pensou ver gente na muralha de Chambert. Será que o castelo era habitado? Até onde ela sabia, Chambert tinha o estigma de ser amaldiçoado. Havia alguns lugares assim na Franária, entre eles a Pedra. Adelaide mantinha trancada a porta que levava ao interior da montanha por causa dos fantasmas gemendo dores nas entranhas da terra. Chambert também tinha fama de maldição. Algum tipo de magia devia agir sobre o castelo, pois ele estava mais inteiro do que Tuen, que permaneceu habitada durante todos os quatrocentos anos de guerra.

Guerra, pensou Vivianne, com letra maiúscula.

Apesar da maravilha arquitetônica diretamente sob seu olhar, Vivianne não ficou exultante, nem mesmo feliz. Estava preocupada. Como vencer um inimigo desses, uma Guerra?

Baixou o olhar e percebeu, com o canto do olho, um cavaleiro deixando a cidade e virando para o sul. Reconheceu as costas de Gaul de Tuen. Ele cavalgou com muita pressa e Vivianne olhou mais longe para ver aonde ele queria chegar. Só o que viu foi uma figura solitária e distante com mochila nas costas.

Gaul foi atrás de Pierre. Vivianne, pelo visto, não era a única que queria sair de Tuen e não conseguia.


Capítulo 56