A Boca da Guerra

Capítulo 107: Líran

A mente se acostuma a ver o tempo em linha, um rio acontecendo eternamente numa única e mesma direção, de trás para a frente, atropelando o presente.

Mas o tempo não funciona assim. É a realidade que desenha linhas; é a vida que corre em formato de rio. O tempo é mais parecido com o universo, só que ao invés de estrelas, contém universos. Ele engloba todas as linhas, todos os rios, ele não ocorre, ele envolve. Tudo o que existe está dentro de sua esfera; tudo o que acontece.

É ilusão achar que se pode voltar no tempo. Volta-se na vida, na existência, mas no tempo, apenas se desloca. Dar um passo atrás na vida não significa apagá-lo do tempo. É como seguir uma estrada, desistir dela e voltar para a encruzilhada em busca de ourta estrada. O viajante pode se esquecer que aquela primeira estrada existiu, apagá-la de sua vida, mas as pegadas continuam lá. Aquele passo dado, e também o seu recuo, estão gravados num pedacinho da esfera temporal.

Por isso Líran não podia beijar Nuille. Ao menos não um beijo que valesse um desejo. Para tornar-se mortal, havia cedido seu primeiro beijo. Ela podia deslocar-se pela esfera do tempo, beijar mil vezes em linhas de realidades passadas, mas o seu primeiro beijo já estava gravado e pertencia a Nuille. O único meio de pagar por outro desejo seria ceder seu último beijo. Líran não deixara de ser quem era para vestir o manto da mortalidade. Em essência, ela ainda era o tempo, e a sua existência continuava infinita, embora sua realidade tivesse se estreitado em linha. O último beijo de Líran valeria para toda a esfera do tempo. Anularia todos os outros beijos, anularia o primeiro beijo.

O último beijo de Líran seria o único beijo de Líran.

Nuille errante, passeando por eras com Lucille, colecionava beijos para quebrar a maldição que o transformara em monstro. A maldição, o nascimento de Lucille, o primeiro beijo de Líran: nada disso havia acontecido ainda. Estavam todos no futuro. Portanto havia, na linearidade de Líran, um Nuille antes da maldição; um Nuille que talvez não cobrasse por um pequeno milagre.

Existe um lago escondido. Lá fora. Talvez aqui dentro. Quem sabe? O laguinho está dentro da esfera do tempo, mas também está fora. O mistério que ali mora é maior do que a eternidade.

Dizem que todas as estradas vão para lá, como todos os rios vão para o mar. Dizem também que nenhuma estrada chega até lá, é preciso que cada viajante construa seu próprio caminho. E dizem ainda que há milhares de caminhos, embora outros afirmem que não existe caminho algum. Há mesmo quem acredite que não há lá fora um lago escondido dentro de todos nós.

Todas as teorias, Líran sabia, estavam corretas. As estradas filosofadas, porém, levavam uma vida ou mais para se montar ou encontrar. Líran precisava de um caminho imediato. Distanciou-se de estradas construídas pelo homem, embrenhou-se por florestas, sem curso, sem rumo. Trilhas difíceis, fechadas, penosas.

Onde esconder um lago?

Em qualquer lugar. Numa floresta, num deserto, nas entranhas da terra, no topo do céu, em um meteoro. Em vários lugares ao mesmo tempo; mudando de lugar de tempos em tempos. Líran não sabia mais de onde tinha vindo, para onde estava indo. Onde havia cidade ou vila, onde estava o perigo.

Racionou a comida. Procurava ainda por Nuille, mas agora também por alimento. Fome, exaustão, o medo de ruídos na noite sem estrelas. Ela sabia o que significavam, agora sabia senti-los. Passou-lhe pela cabeça que podia morrer. Estava ciente de que era mortal, mas não lhe havia ocorrido que simplesmente morresse.

No entanto, era isso o que mortais faziam. Simplesmente viviam até que simplesmente morriam.

Quanto mais Líran caminhava, pés feridos, mãos rasgadas, menos entendia por que persistia. Cansaço não leva ao destino. Persistência sem rumo só atinge resultados acidentais. Por outro lado, ela não podia ter rumo, e havia chegado tão longe!

Longe? Partira de Chambert há... quantos dias? Que distância pode um mortal cobrir a pé em tantos dias, sem estrada debaixo dos pés? Líran entendeu finalmente o espanto dos olhos mortais ao olhar oceanos, horizontes, estrelas. Uma simples floresta entre Baynard e Patire parecia infinita.

Seria este o túmulo de Líran? Morrer em verde, sem rumo, sem ter feito parte da História, simplesmente morrer a mais comum das mortes, então ser coberta por musgos, comida por vermes, engolida pela floresta indiferente.

Faminta, sem força nos músculos, deitou-se nas folhas no chão. Uma gota quente aqueceu seu olho, escorreu até a ponta do nariz. Sua primeira lágrima mortal.

— Meu primeiro beijo, minha primeira lágrima. Meu primeiro arrependimento. — Líran rolou de costas e estendeu os braços. O chapéu roxo de Lecourge, feito à mão em Sejo Tíen, rolou no chão, deu uma volta e parou eobre uma raiz. — Eu podia ter te avisado sobre a maldição. Sem ela, você jamais viraria monstro, nem seria obrigado a colecionar mil beijos, mas, Nuille, sem a maldição nós jamais teríamos nos conhecido, você não teria trazido Yukari a Sátiron e nós, mistérios, continuaríamos apenas isso: mistérios. Agora somos amigos. Vou morrer, provavelmente hoje, sem ter vivido minha história mortal. Ou talvez seja esta morte a minha história mortal. Não interessa. Deixei a maldição acontecer para poder realizar meu desejo.

‘Não só. Não, Nuille, deixei acontecer a maldição porque dela nasceu nossa amizade, nasceu Sátiron. Por causa dela eu experimentei o chá de Yukari, conheci Sáeril. Eterna em minha solidão, eu tive amigos. Eu tenho amigos.

‘Engraçado: nunca quis amizades. Não precisava. Uma vez que as tive, tornaram-se queridas. Não quis mais existir sem aquilo de que não precisava. Sem a maldição, não nos tornaríamos amigos. Porém eu não o avisei. Que espécie de amiga eu sou?

‘Adeus, Nuille. Adeus, amigo.

Assim, puxada em sentidos opostos pela frustração de uma morte precoce e pela satisfação de ter experimentado grandes fenômenos, Líran fechou os olhos. Queria mais. Não aguentava mais. Pensou ver, na penumbra de suas pálpebras, uma estria branca como reflexo de luz em água inquieta. O reflexo branco parecia vir de debaixo do chapéu roxo. Líran esticou a mão para tocar o chapéu. Ele se esfarelou quente entre os dedos, , como areia tropical. Arenoso era o chão da estrada que surgiu debaixo das copas que atenuavam o luar.

Dolorosamente, Líran esticou as fibras endurecidas de seus músculos gastos. Recolheu braços, apoiou-se sobre cotovelos, agarrou um tronco de árvore e içou-se para o alto. Balançou sobre os pés, como eucaliptos em tempestade. O primeiro passo afundou na estrada arenosa. Líran tirou os sapatos.

Não foi fácil seguir a trilha de areia. Não só porque ela ameaçava desaparecer se Líran olhasse para os lados, para a floresta, mas porque ela era um atalho para o destino. O caminho cortava todos os outros caminhos das vidas de Líran, a perene e a efêmera. E essas sortes todas clamavam sua atenção, temerosas de nunca serem vividas, histórias mortas sem terem chance de ser.

— Olhe para mim — disse uma. — Eu sou o seu fim.

— E eu sou seu filho — disse uma voz de criança.

Líran parou. Deixou a voz infantil estufar os tímpanos. Infinitas aventuras ela imaginou viver, infinitas paixões. Nunca um filho. E a voz do menino foi engrossando, esculpindo a areia, que foi derretendo, liquefazendo, virando, virou, tornou-se lago.

Nem quem encontrou o Lago Escondido sabe como chegar lá.

É um caminho diferente para cada um — escreveu uma filósofa elfa antes da Era Negra — Está em um lugar diferente para cada pessoa. — Muitos anos depois ela rabiscou na margem — E esse lugar muda durante o correr de nossas vidas.

Aos pés de Líran, um pequeno espelho d’água, mais poça do que lago, mais profundo que todo o sempre. Carpetes de grama ao seu redor, verde claro, quase amarelo. Ao fundo, silhuetas borradas de árvores, talvez, ou colunas. Ou nada. Luz esbranquiçada, com consistência de bruma, confudia os contornos das árvores-colunas-nada. O sol não aparecia no azul puro, sem nuança, mas seu reflexo iluminava o pequeno espelho d’água.

Do outro lado da poça infinita, em frente a Líran, uma rocha cinza-azulada brotava da grama. A base da rocha era lascada e áspera, mas o topo estava almofadado com musgo.

Sobre o musgo se sentava um sapo. Corpo delgado, dedos compridos embolotados nas pontas, pele verde mais clara que o musgo, menos clara que a grama. Duas listras escuras nasciam nas narinas, emolduravam os olhos e desciam pelas costas até as pernas traseiras. A pele macia do pescoço e abdômen era de um verde amarelado, e havia listras também em seus braços. As nesgas pretas dos olhos se expandiram com a chegada de Líran, e apagaram o laranja vivo das pupilas.

Líran caiu de joelhos, dizendo: — Nuille.

O sapo moveu os dedos embolotados num gesto bailarino. O espelho d’água inchou como um geiser, reflexos brilhantes choveram aos pés de Líran, ganharam forma, cheiro, cor: uma jarra de água e um copo de cristal; uma bacia de madeira com uvas, pêssegos, goiabas, tomates; uma cestinha com damascos secos, tâmaras e mangas; pão, manteiga, mel, café.

Não foi por reverência, Nuille sabia, que Líran caiu de joelhos.

Líran sentou, cruzou as pernas e pegou um tomatinho, atacou um pêssego, acabou com a jarra d’água, comeu com mais vagar uma goiaba, experimentou as uvas. Seviu-se de café, lambuzou o pão com manteiga e mel.

Nuille esperou. Dele se desenrolou um silêncio quente, mais macio que o musgo em que se sentava. Líran sentiu o silêncio de Nuille envolvendo seus ombros, protegendo-a com uma camada de mistério que remetia a ela própria antes de ceder seu primeiro beijo em troca de um desejo. Arrependeu-se por ter se tornado mortal, débil, linear. Ao mesmo tempo, naquele silêncio reverberavam todas as aventuras, reais e sonhadas, as oportunidades, os acasos, sensações que aceleravam o sangue de Líran, correndo quieto em veias mudas no silêncio do destino.

Ah, o poder de ser mistério. Se Líran o tivesse agora! A inconstância de se desejar sempre o que não se pode ter. Tão mortal. Mesmo enquanto mistério, Líran alimentava ambições mortais. Foi o contato com Yukari que mudou os contornos de seus desejos. Yukari, eterna mortal.

A eternidade não se move no tempo. Líran é mistério sem curiosidades mortais. Então conhece Yukari e se torna mortal em essência. Então beija Nuille e é mortal completa. Mas Líran é eternidade. Ela é, mesmo agora, infinita, imortal. O tempo não se apaga, ele cresce; não deixa de ser, passa a ser mais. O que Líran foi, ainda é; o que é, sempre foi. E tudo isso rodando na mente de Líran, mortal — imortal, estagnada — móvel, mistério que quer ser pequeno — pequenez que almeja mistérios. Tudo. Nada.

E Nuille olhando através de fendas pretas gigantes, úmidas, engolindo o laranja das pupilas, as listras verdes, os dedos bulbosos, musgo, rocha, Lago Escondido refletindo a Franária, Chelag’Ren, Pierre, a palavra herói dita por Vivianne.

Líran tinha de pedir. Como pedir?

E Nuille olhando.

Nuille antes da maldição. Se ela avisasse, se lhe contasse, o monstro jamais nasceria, as aberrações não existiriam, Yukari jamais conhecida, Líran apenas eterna. Como pedir? Com que direito?

Nuille estendeu os dedos compridos para Líran, palma amarelada para cima. Líran devia dar-lhe algo. Enfiou a mão no bolso, encontrou um objeto frio, pequeno, sólido, uma garrafinha de tinta. Estendeu-a por cima do Lago Escondido, abandonou o vidro nas pontas bulbosas dos dedos de Nuille. A garrafinha se equilibrou nos dedinhos finos, Nuille descansou o vidro sobre as almofadas de musgo, usou as quatro mãos para desenroscar a tampa. Inclinou-se para a frente, colocou a boca na abertura e falou.

Líran não ouviu o que Nuille disse, só sentiu os ossos ressonarem com a voz espessa. O Lago se eriçou, os reflexos se dispersaram em pinceladas abstratas e misturaram-se com a luz brumosa de além das silhuetas de árvores-colunas-nada. Então Nuille rosqueou a tampa da garrafinha e estendeu o vidrinho de volta para Líran.

Por um instante infinito, Líran só fez olhar aquela garrafinha oferecida. Respirou muito devagar, como se nunca houvesse respirado antes, e que só agora os pulmões entendessem o verdadeiro significado de ar. Ela estendeu as duas mãos (silhuetas de dedos borrados por brumas) e Nuille depositou ali a garrafinha de tinta.

Tinta. E mais poder do que Líran jamais possuiu, mesmo quando era mistério.

— Você vai simplesmente me dar isto? — ela perguntou.

— Foi o que acabei de fazer.

Líran saltou em pé, aninhou o sapo em sua mão, colocou um beijo no topo da cabeça anfíbia. Ela estava em pé no Lago Escondido. Ele não a engoliu, nem a afogou.

— Obrigada.


Capítulo 108