A Boca da Guerra

Capítulo 41: Neville – Com palavras de morte

Existem tantos tons de silêncio quanto existem tons de voz. O silêncio favorito de Neville era o que se esgueirava por entre os acordes de seu violão quando ele tocava devagar, atrasando a melodia para saborear o silêncio entre a nota solta, pairando no ar, e a nota ainda presa na ponta dos dedos, cheirando a pão compartilhado a três no topo da colina atrás da casa em Debur. Thaila no meio, Robert de um lado, Neville do outro.

O silêncio salgado do pai traído e o silêncio halitoso da Boca da Guerra; de Lencon após o massacre, de Anuré. Os escravos de olhos quietos, mesmo depois de soltos, a morte em silêncio dos que não aguentaram chegar até Lencon, o adeus sem voz de Maëlle aos escravos libertos que ficaram na cidade destruída. O silêncio doente do Eslariano, que tropeçava pela estrada, amparado por Maëlle. Esqueleto com olhos de osso.

Nada daquilo se igualava ao silêncio que Neville encontrou em lugar de Fabec. Pó áspero grudava na pele e entupia os poros, queimava as narinas e avermelhava os olhos com a morte ardida de Robert. Neville caminhou sozinho até onde costumava ser seu quarto. Não havia nada para guiá-lo, apenas a memória de quantos passos dava para cruzar o chão de mosaico da Casa Quadrada de Fabec. Mosaico, colunas, ruas: tudo cinzas.

— Capitão. — Um soldado veio atrá de Neville, cobrindo a boca e o nariz com um pedaço de pano.

Neville havia enviado alguns homens em busca de respostas.

— Encontramos um fazendeiro, capitão, meio morto e meio maluco.

— Onde ele está? — perguntou Neville.

— Completamente morto, capitão, embora não tão maluco. As cinzas matarm muitos além do fogo.

— Ele disse o que causou este massacre?

O pescoço do soldado desapareceu no meio dos ombros. Neville perguntou-se de que o soldado tinha mais vergonha: da resposta que ele deu ou de acreditar nela.

— Um dragão.

Neville fez que sim com a cabeça. — Leve os homens de volta a Debur. Diga a Henrique que perdemos Fabec.

Fazia sentido, um dragão. Fogo normal não vaporiza pedra. O soldado foi cumprir suas ordens e Neville achou que estava sozinho nas cinzas, mas alguém perguntou:

— É satironês esse seu arco?

Neville segurou com mais força o arco longo pintado de preto, e voltou-se para a face enrugada emoldurada num caos de cabelos brancos. O velho era baixo, mal chegava aos ombros do arqueiro.

— Você!

O velho examinou melhor o arco. — É mesmo um arco satironês! Não vejo um desses desde... desde... Não me recordo.

Neville deu um passo em direção ao velho, que teve de arquear as costas para poder encará-lo.

— Que grandes narinas o senhor tem.

— Está sonhando outra vez? — perguntou Neville.

O velho piscou, expôs um dedo lambido ao vento.

— Vejam só, parece que estou.

— Você pode fazer algo? — perguntou Neville.

— Asseguro-lhe que posso fazer muitas coisas.

— Pode fazer algo a respeito disto?

A cabeça do velho seguiu o semicírculo que a mão de Neville desenhou no ar, como um cão seguindo um osso.

— Posso fazer muitas coisas a respeito de várias coisas — ele disse. — Ah! — inclinou a cabeça para o lado, apontando o ouvido para o peito de Neville. — Ouço Yukari se aproximando. Foi uma conversa muito agradável, mas receio ter de acordar.

— Espere. — Neville agarrou o braço do velho.

— Oh.

— O dragão.

— É vermelho — disse o velho.

— Há algo que você possa fazer?

— Você fica me perguntando a mesma coisa.

— E você só me dá respostas evasivas.

— Talvez eu não tenha a resposta certa — disse o velho.

— Então quem tem?

— Você não vai descobrir se continuar perguntando sempre para a mesma pessoa.

— A quem devo perguntar?

— Talvez a si mesmo.

Os lábios de Neville afinaram entre os dentes.

— Você a está evitando — disse o mago sonhador.

— Evitando quem?

— A história que a águia chamou. Você não percebe como a águia está fraca? Até as tormentas de inverno estão fracas, a ponto de vocês todos conseguirem passear pela Franária. A águia está fraca mas não está morta. Ela convocou uma história, sabe? Nós temos esperado todo esse tempo, desde a segunda vez que eu sonhei com você.

— Então você se lembra do outro sonho.

— Não. Ele ainda não aconteceu. Eu continuo aqui na beirada, percebe, esperando a história me encontrar. Você, por outro lado — ele se inclinou um pouco mais e mirou em Neville um par de olhinhos amarelos. — Você a evita.

— Isso não é possível. Eu não fiz nada.

— Precisamente. — O mago, enquanto falava, desapareceu. E Neville ficou só com seu silêncio.

Por quanto tempo ficou ali? Perdido no ar parado da extinta Fabec, ele mesmo, de certa forma, extinto. Meio herói, meio vilão, meio nada. Robert morto. Até o vento parecia ter-se afogado no fogo vermelho do dragão.

— Capitão — chamou o mesmo soldado de antes. — Estamos prontos para marchar.

Neville não se moveu.

— Capitão?

— Sim, soldado.

— Ãhn, estamos prontos.

— Marchem para Debur. Fortaleçam a cidade, preparem o Esmeralda para um cerco.

— Sim, capitão, estamos só esperando o senhor.

— Eu não vou.

— Senhor? — muito confuso.

— Me juntarei a vocês assim que possível, mas tenho de fazer uma coisa antes.

— Senhor? — cheio de espanto.

— Está assustado, soldado? Eu, Neville de Baynard, ou melhor: Neville de Fabec, não estou colocando meu rei em primeiro lugar. Talvez isso seja traição. Certamente vai contra o bushido que conhecemos.

— Senhor… — tão patético.

Neville estava cansado de bushido. Havia outras lealdades mais importantes. Thaila importava mais do que qualquer rei. Neville se afastou das cinzas de Fabec até onde Maëlle dava água a um Eslariano abatido e curvo.

— Vocês estão a salvo agora — Neville disse aos dois. Então, ele se calou. Como contar para a mãe que ele estava prestes a quebrar todas as regras de bushido?

Bushido é tudo o que nos resta.

Aquilo não era verdade, não para Neville. Bushido arrancou as pernas to pai, silenciou a verdade, levou Neville a Fabec. Para que servia bushido quando se encarava um dragão?

Bushido é tudo o que nos resta.

E se Maëlle, assim como Neville, soubesse que ia se estilhaçar se largasse bushido? E se honra a mantivesse sã? Dizer a verdade, que ele abandonaria seus deveres para procurar Thaila... e se isso acabasse com ela?

— Eu vou para o sul — ele disse. — Vou procurar o dragão e descobrir como matá-lo. — Assim, com palavras de morte, ele se despediu mais uma vez de sua vida passada e foi embora para a Fronteira.

Ninguém percebeu as duas criaturas sonhando nas cinzas de Fabec, ali onde o mago também havia sonhado. Uma era um homem muito franzino, a outra era o gato em seu colo, com queixo preto e bigodes bem brancos, sem rabo. O homem estendeu braço e pegou um fio de cabelo prateado que brilhava entre as cinzas.

— Parece barba — ele disse ao gato, que começou a brincar com o fio de barba branca do mago sonhador.


Capítulo 42