A Boca da Guerra

Capítulo 57: Leonard Acidentado – Em busca de um líder

No dia seguinte, Leonard foi a Tuen. Seus dissidentes – seus dissidentes? Desde quando ele havia tomado aquele povo para si? Aquele povo que só o reconheceu como gente por causa de Jean. Desde quando ele começou a se importar? Seus dissidentes. Sim, eles eram dele. Criaturas feridas, coisas quebradas, gatos com rabos queimados.

Queimados pelos restos de uma revolução esquartejada. Queimados pelo abandono. Henrique os abandonou em prol das sombras; Olivier os abandonou em prol de quê?

Leonard não queria recorrer a Olivier. Ele já havia abandonado seu povo. Seu, de Leonard. Em Tuen devia haver mais alguém, assim como em Debur durante muito tempo havia Maëlle, Neville, até mesmo o Eslariano, com sua sabedoria mansa de farinha fina. Thaila, com sua determinação feroz. Robert com sua paixão. Nenhum deles abandonou Debur. Nem mesmo Neville, que foi embora mas se fez parede contra Fulbert na Boca da Guerra. Baynard nunca se sentiu tão segura quanto depois que Neville foi para Fabec. E nunca se sentiu tão insegura quanto agora.

Devia haver mais alguém em Tuen. Leonard cruzou caminho com carroças cheias de o que parecia ser trigo, mas estava frio demais para colheitas. O inverno ainda latejava nas pontas dos dedos e nas orelhas. Ele não parou para ver, nem perguntou nada. Caminhou pelo lado da estrada e chegou a Tuen onde ele entregou os documentos para um soldado, que indicou o caminho para a Pluma quando Leonard perguntou onde encontrar o prefeito de Tuen.

As indicações do soldado foram breves, sucintas e falhas para alguém que nunca tinha estado na cidade. Leonard teve de pedir informação duas vezes antes de finalmente encontrar a estalagem, onde entrou depressa para fugir do frio. Leonard sentia mais frio do que outras pessoas. Ou melhor, ele não sentia mais frio, só que o frio atravessava o corpo dele quando em outras pessoas ficava preso na pele. Leonard vestia muitas camadas de roupas, mesmo assim o inverno mordiscava seus ossos.

Dentro da Pluma havia um monstro. Leonard nunca tinha visto uma aberração além dele mesmo. No entanto, ali estava um homem, ou qualquer coisa parecida com um homem, com a pele arreganhada em torno dos ossos, derretidada como lava recém esfriada.

Acidente e monstro paralizaram, um assustado com o que viu, o outro espantado por ser visto. O monstro recuou, escapando da luz e da vista, e escondeu-se na sombra. Não foi uma fuga de coelho apavorado, mas um retroceder de cão de guarda treinado, esperando para ver o que queria o invasor.

De uma porta atrás do balcão surgiu outro monstro, igualmente distorcido, igualmente atento como cão decidindo se farejou inimigo ou aliado. O terceiro monstro, que surgiu com um balde e um pano na mão, era menor que os outros dois, e tinha só um lado derretido. Quando viu o pano e o balde, Leonard percebeu que os outros dois também carregavam materias de limpeza. O primeiro segurava uma vassoura em riste, como se fosse uma lança. O segunto tinha um escovão, empunhado igual a uma espada. O terceiro empunhava o pano e o balde exatamente como se empunharia um pano e um balde.

Leonard deu um passo à frente e fechou a porta.

— Me disseram que eu encontraria o prefeito de Tuen aqui na Pluma — ele disse.

O homem derretido pela metade disse que o prefeito deveria estar em casa a esta hora e deu instruções de como chegar lá. Um dos monstros maiores ralhou com ele por ceder informações tão livremente a um estranho, ao que ele respondeu:

— Desconfiar de tudo e todos é muito cansativo. — E pôs-se a limpar, dando o episódio por encerrado.

Leonard se refugiou no frio da rua. Lembrou-se do rabo de Jean quando salvou-o do fogo e ficou se perguntando como alguém podia viver sob pele falecida. O rabo de Jean, ele teve de cortar, mas aqueles homens tinham as mãos tão queimadas quanto os rostos. Se eles arrancassem as peles, talvez ficassem menos terríveis do que estavam agora.

As indicações do meio-queimado foram muito mais claras que as do soldado na entrada de Tuen e Leonard achou facilmente a casa que procurava. Bateu uma, duas, três vezes.

— Ele não vai atender.

Leonard se voltou para uma mulher rechonchuda e loira que descia a rua.

— Não hoje — ela disse. — Hoje é o dia em que o irmão dele partiu. Todos os anos nosso prefeito se tranca e morre por um dia. Amanhã ele acordará sóbrio, pálido e não falará em Luc até o mesmo dia do ano que vem. Hoje é inútil tentar.

Então a mulher convidou Leonard a comer qualquer coisa na estalagem dela.

— Fica perto e se chama Pluma — ela disse. Quando viu que ele diminuiu o passo, ela riu. — Você esteve lá. Aposto que entrou sem avisar e deu de cara com os queimados.

Leonard se envergonhou. Ele mesmo era uma aberração, que direito tinha de ter horror àqueles três homens? Seguiu a estalajadeira, que se apresentou como Joanna. Ele caminhou em silêncio, cada vez mais pasmo com a história que ela tagarelava sobre o tipo de fogo que havia deformado os queimados. Pela segunda vez naquela manhã Leonard entrou na Pluma. Desta vez, foi admiração e não medo que o paralizou.

— Um dragão — ele disse.

— Vermelho — respondeu o homem que se chamava Coalim, sem levantar os olhos da mesa que limpava.

Joanna serviu café e mingau com passas para Leonard, que colheu as passas, uma por uma, e então revolveu bem o mingau para ter certeza de que não tinha sobrado nenhuma. Só então ele começou a comer.

— Você nunca passou fome — constatou Joanna.

— Eu sempre passei fome — disse Leonard. Já que ele nunca conseguia matar a fome, para que comer o que não gostava?

Ele disse isso para Joanna, que riu de balançar a barriga e os peitos. Leonard pensou em convocar os dois queimados para organizarem os guerreiros dissidentes, mas observou-os enquanto comia e decidiu que aqueles dois eram o tipo de soldados que seguiam ordens. O meio queimado nem parecia soldado. Leonard precisava de alguém que soubesse comandar. Joanna tagarelava sobre um tal Pierre, que detia dragões e conversava com lobos de Sátiron. A única coisa na história de Joanna que denotava um sinal de liderança foi a Caravana de Rimbaud ter desviado a rota a pedido de Pierre. O resto era tudo mistério, magia e assombro. Leonard já tinha demais disso em Jean, em si mesmo. Precisava de uma pessoa sólida para comandar seus dissidentes.

Tuen devia ter um capitão e Leonard perguntou a Joanna onde encontrá-lo. A porta da Pluma se abriu e Joanna apontou com o nariz:

— Aí está Gaul, capitão de Tuen.

Entrou um homem vestido em couro, pele muito negra, olhos saltados. Atrás dele veio outro homem bem mais jovem, de pele vermelha, olhos de mel, cabelos grossos.

— Pierre — disse Joanna — pensei que tinha ido embora.

— Fui — disse Pierre. — Gaul me trouxe de volta.

— Não contra a vontade, espero.

— Ele usou argumentos convincentes — disse Pierre — mas ainda tem de me provar que são verdadeiros. Só passei aqui para deixar minha mochila, mas por favor não a leve para quarto nenhum. Se os soldados de Tuen estiverem realmente despreparados como Gaul diz, eu ficarei. Se eu achar que eles podem defender a cidade, eu vou embora.

— Sou contador — disse Gaul — e Olivier sempre disse que os soldados aprenderiam o que precisavam se fossem sorteados para a Boca da Guerra. Os soldados de Tuen são os mais despreparados da Franária.

Enquanto Gaul falava, Pierre deixou a mochila atrás do balcão de Joanna e os dois foram até a porta. Leonard seguiu. Não gostava de deixar Jean sozinho por muito tempo. Jean não sabia que era humano. As pessoas não sabiam que ele não era. Apesar de não saber o que era, Jean ainda anulava qualquer possível rival do mesmo tamanho dele. Como ele não entendia o comportamento humano, qualquer um podia se tornar um rival, dependendo de como o instinto de Jean reagisse a algum movimento, fala ou gesto. Leonard precisava voltar para Chambert, mas também precisava organizar sua gente. Ele viu em Debur o resultado de anarquia, da lei do mais forte, o esmagamento sistemático do mais fraco. Leonard seguiu Gaul e Pierre para fora de Tuen, para o campo aberto onde soldados praticavam guerra.

Se ao menos Neville aparecesse! De onde veio essa ideia? Leonard não pensava em Neville há muito tempo, mas teve a sensação de que, se fosse em direção à Terra dos Banidos, encontraria Neville.

Estou ficando doido, pensou. Ninguém sabia onde Neville estava. Ele podia ter morrido com Fabec, apesar dos boatos de que ele tinha invadido Patire e derrotado o príncipe Faust. Essa batalha que aconteceu do lado de lá dos Oltiens continuava envolta numa neblina de mistério. Ninguém sabia o que tinha acontecido no vale de Patire, nem como Neville tinha ido parar lá, se é que tinha mesmo atacado Faust.

Aliás, o que Faust estava fazendo daquele lado da cordilheira? Não seria mais fácil Fulbert, dos Saguões de Neve, defender o vale? Para Faust chegar lá antes de Fulbert, ou o rei ficou parado, o que não parecia normal, ou Faust escalou os Oltiens durante as tormentas de inverno. Que tipo de louco faria uma coisa dessas?

Mas a família real de Patire não era famosa por sua normalidade, lógica e harmonia emocional. Fulbert não esperava a batalha chegar até ele. Era sempre ele quem ia atrás da guerra, mesmo que isso fosse contra qualquer estratégia. Foi Faust quem manteve Patire inteira todo esse tempo. Sem Faust, Fulbert já teria jogado seu exército em ondas contra a Boca da Guerra até secar a última gota de sangue e Patire teria sido conquistada. Fulbert era o tipo de força que não parava nem pensava: ele seguia em frente até conquistar ou morrer.

Era sempre Fulbert quem ia atrás da guerra. Leonard quase perdeu Gaul e Pierre de vista, apressou o passo. Baynard precisava agrupar os guerreiros que lhe restavam porque Fulbert não ia esperar. Sem Faust, sem Neville e sem Fabec, o louco estava solto.

Tinha um outro príncipe, não tinha? Onde estaria Frederico, o Fraco?

— Convencido? — perguntou Gaul.

Leonard estava no topo de uma elevação e os dois tinham parado um pouco mais abaixo para observar os soldados treinando no campo. Leonard, perdido em pensamento, não tinha prestado atenção aos guerreiros. Quando viu aquela gente treinando, deixou cair os ombros e se sentou na relva. O tal Pierre deve ter feito uma cara semelhante à de Leonard, porque o capitão Gaul disse:

— Eu avisei. Meus homens nunca foram formalmente treinados. A guerra nunca ameaçou vir para Tuen antes e Olivier deixava o treinamento a cargo de Debur ou Fabec. Você carrega uma das espadas que Nakamura trouxe de onde ela veio.

— A chinesa — disse Pierre. — Pretendo trazer comigo o homem que me ensinou a usar esta espada.

— Não precisamos de alguém que nos ensine as artes de Nakamura —disse Gaul. — Soldados são números e eu entendo de números. A força deles está no peso, na perícia do comandande e na estratégia. Moedas sozinhas são só pedaços de metal, juntas viram uma fortuna. Eu te apresento, Pierre, o exército de Tuen: um monte de moedas sozinhas.

Leonard ouviu o som de algo pequeno se quebrando. Sentada na elevação, alguns passos para a esquerda de Leonard, estava uma menina comendo nozes. Tinha cabelos pretos de seda, olhos puxados da cor das profundezas do universo, o que era uma coisa engraçada de se pensar, porque Leonard nunca teve ímpetos para a poesia nem se importava muito com o vácuo além das nuvens.

— Quer? — ela estendeu uma noz.

Ele pegou a noz, desanimado. Se aquilo era o que Tuen tinha para oferecer como liderança, ele tinha vindo aqui à toa. Leonard tentou quebrar a noz mas não conseguiu. A menina pegou de volta, abriu e devolveu para ele.

Pierre desceu até os guerreiros de Tuen, seguido de Gaul. Leonard não conseguia ouvir o que ele dizia, mas os soldados se dividiram em grupos para simulações de batalhas. Pierre então subiu na elevação, parou um pouco abaixo de Leonard e observou a movimentação. Deu mais algumas instruções e de repente os soldados estavam se movendo como um exército. Leonard endireitou as costas. Pierre continuou orientando e os guerreiros juntaram os escudos formando uma única carapaça. Os escudos ou se abriam para um ataque inesperado, ou se juntavam para deter o avanço do adversário.

— É uma estratégia satironesa — disse Leonard.

— Na verdade é uma estratégia viking — disse a menina comendo nozes — reutilizada em Sátiron.

— Foi Yukari Nakamura quem inventou esse jeito de usar escudos.

— Imitar não é inventar. Veja — ela apontou para o campo — ele está tentando agora a carapaça de escudos romana.

Duas coisas o incomodavam: que Tuen estivesse tão despreparada, sem saber estratégias que Neville ensinou aos deburianos quando ele ainda era quase uma criança; que a menina comendo nozes falasse dessa gente romana viking, que não existia.

— Quer um pirulito? — perguntou a menina. — As pessoas sempre me dão doces quando sou criança. Não gosto de coisas doces.

Pierre continuava simulando batalhas, dando instruções, mudando rumos, ajustando técnicas. Os escudos tuaneses eram quadrados e pequenos. Dava para improvisar a parede de escudos viking, mas deixavam falha a carapaça romana. Leonard ficou impressionado com a mudança na movimentação daqueles soldados após as orientações de Pierre.

Leonard havia assistido todos os treinos de Neville e do pai de Neville quando o antigo capitão ainda tinha pernas. Ele se lembrava de como Neville havia ensinado seus guerreiros a mover o escudo e moveu agora o braço, imitando a elipse de um golpe que atingiria o pescoço do adversário.

— Você — Pierre apontou Leonard — Venha cá. — Ele pediu emprestado um escudo e estendeu para Leonard, que não se moveu. — Mostre o que você estava fazendo.

A menina comendo nozes disse:

— Ele enxerga. Isso é sempre um bom sinal.

Pierre se afastou dos soldados e veio até Leonard, ainda sentado na relva, agora com um pirulito na boca.

— Venha treinar — e estendeu novamente o escudo para Leonard.

— Eu? — perguntou Leonard. — Treinar? — Você está me vendo? Pensou Leonard. Você percebe que sou fraco? Que não tenho corpo de soldado? Que quase não tenho corpo?

A sobrancelha de Pierre fez uma pergunta.

— Eu não... tenho... nunca, veja bem... — mesmo enquanto ele falava, as mãos de Leonard se esticaram e aceitaram o escudo, as pernas se endireitaram, a coluna retificou. Leonard colocou o escudo no braço, apoiou a outra mão no cabo da espada. Leonard era soldado e hoje ia treinar com os guerreiros de Tuen.

— Seu nome? — perguntou Pierre.

— Leonard Acidentado.

— Pierre da Fronteira.


Capítulo 58