A Boca da Guerra

Capítulo 99: Pierre

Pierre nunca quis ser diferente de nós, mas como é que a gente ia ser igual a ele?

— Diários de Gregoire

Pierre senta-se na Fronteira, à margem do Sangue. Céu e rio alaranjados em crepúsculo de outono; folhas douram o solo e as árvores se enfeitam de vermelho e ocre. Na outra margem, a Terra dos Banidos bafeja negrume.

Passos amassam as folhas secas atrás de Pierre.

— Parece que morri — diz Pierre.

— Não exatamente — diz uma voz branca e enrugada.

— Isto é um sonho?

— Não exatamente.

Pierre vira o rosto para o mago de cabelos entrópicos.

— Preciso encontrar alguém. Eu me lembro de estar em busca. Lá — ele aponta para o pretume do outro lado do Sangue. — Eu fui para a Terra dos Banidos.

Pierre se levanta e caminha até quase colocar os pés no rio. A água do Sangue lambe a ponta das botas dele com pequenas ondas de água doce que se tornam mais e mais preguiçosas até congelarem completamente. O outono laranja dá lugar a um inverno azul.

— No último inverno atravessei o Sangue congelado até a Terra dos Banidos. Era muito mais longe do que eu esperava.

— Uma miragem causada pela intensidade das trevas — diz Fregósbor.

— Levei três dias para cruzar o rio — diz Pierre. — O que eu tinha de comida acabou antes mesmo de eu pisar na outra margem, mas eu não podia voltar, alguma urgência me empurrava.

Fregósbor imagina que um dos pais de Pierre deve ter surgido da Terra dos Banidos, porque Fregósbor se lembra de muito pouco, mas aquele tom vermelho de pele nunca tinha migrado para o norte de Sátiron. Ele concentra sua mente entrópica na textura daquele sonho-memória-morte e procura ali o pai de Pierre.

Um homem se senta a uma escrivaninha traduzindo livros. Sem levantar o lápis, ele diz:

— Não fui eu que Pierre buscou nas trevas. Eu estou aqui. Ao mesmo tempo, não estou aqui: estou nos livros que traduzo. De certa forma, meu filho teve de procurar um pai em outro lugar.

Fregósbor então dobra o coma de Pierre e faz um cone no irmão, Gregoire. Era o irmão Gregoire que Pierre buscava?

Meio-irmão — diz Pierre. — E ele me odeia.

Pierre teve de procurar um irmão em outro lugar.

A mãe, pensa Fregósbor e a resposta é um sopro de neve. Pierre teve de encontrar uma mãe em outro lugar.

— Como você faz isso? — pergunta Pierre. — Move meu sonho como se estivesse fazendo dobraduras.

— Você consegue ver o que eu estou fazendo?

— Não vejo, mas percebo muita coisa.

— Impressionante — diz Fregósbor. — Você daria um bom feiticeiro.

— Magia. Eu já sei o que fui procurar: magia vermelha.

— O dragão — diz Fregósbor. — Ele é vermelho.

— Se chama Chelag’Ren e nadava no Sangue todos os dias ao por do sol — diz Pierre.

O sonho se transforma. O sol toca o horizonte, tingindo o Sangue de vermelho. Céu e terra transformam-se num arco-íris escarlate, exceto a floresta do outro lado do rio. A Terra dos Banidos é sempre treva.

— Ele vem todas as tardes como um raio vermelho e as asas dele brilham de tão brancas, parecem nuvens feitas de plumas. — Pierre todo esticado na beira do rio fica quase na ponta dos pés. — Ele já deveria ter vindo.

— O dragão não vai aparecer — diz Fregósbor.

— Não. Ele parou de vir um tempo atrás. Foi por isso que eu cruzei o Sangue.

— Porque ele parou de vir?

— Porque eu senti falta dele. Quando eu era pequeno, Chelag’Ren se sentava às vezes na margem de cá e ficava olhando para a gente. Parecia solitário, alguém que só quer conversar, mas todos aqui têm medo dele. Carlaje inteira vem ver ele no rio porque ninguém resiste à magia, mas ninguém chega perto. Um dia eu fui falar com ele e nos tornamos amigos. Melhores amigos. Quando ele parou de vir, eu fui perguntar por quê.

“Eu não sabia o que era a Terra dos Banidos. Assim que pisei nela, o Sangue desapareceu, o inverno ficou para trás e o frio que agarrou minha pele foi mais pontiagudo do que o inverno que ficou na Fronteira.

“Atrás de mim só havia pretume. Na minha frente só havia pretume. Uma escuridão desnorteante e sem chão. Então, o solo esfarelou debaixo de mim e eu caí.

— É preciso ter um caminho na Terra dos Banidos — diz Fregósbor. — É preciso encontrar uma estrada. Elas podem ser traiçoeiras, mas são sólidas.

— Caí — diz Pierre. — Não foi uma queda livre, mais como rolar um barranco abaixo. Às vezes parecia que eu encontrava alguma coisa em que me agarrar, mas essa coisa também se soltava e rolava comigo numa cachoeira de cinzas. Eu tive certeza que eu ia escorregar, rolar e cair até morrer.

— Mas você não morreu.

Pierre caiu e caiu até ficar todo esfolado e ele estava todo batido mas não conseguia se firmar por tempo o bastante para ver se tinha quebrado algum osso. Então uma dor escaldante abocanhou seu cangote e Pierre foi içado para cima e jogado em chão sólido e duro.

Dor e medo de tudo ruir novamente impediram Pierre de se mover por um tempo. Quando ele conseguiu recuperar o fôlego, alcançou bem devagar o cangote e viu que havia sangue. Ele percebeu que estava de olhos fechados (não fazia diferença no breu dos Banidos) e decidiu ficar assim mesmo. Foi um erro vir à Terra dos Banidos. Só dragões sobrevivem aqui.

Mas era tarde demais, ele já estava nas trevas e não adiantava se arrepender. Pierre abriu os olhos.

Pequeno mortal, o que faz aqui?

Fregósbor interrompe Pierre:

— A voz brotou dentro da sua cabeça?

— Parecido com isso — diz Pierre. — Não sei explicar direito: eu não ouvi palavras, eu soube a mensagem.

— Não precisa explicar. Um lobo falou com você.

Pierre, como qualquer pessoa, tinha uma imagem dos lobos de Sátiron. Na cabeça dele, eles eram enormes, maiores do que leões, com garras mais afiadas que as de Chelag’Ren e dentes luminosos iguais à lua.

O lobo cinzento era magro (não faminto, mas esguio), do tamanho de um lobo normal, com pelos viçosos porém normais e dentes brancos sem luar. Na aparência, só mais um lobo, mas o poder estava lá. Ao redor dele a Terra dos Banidos ficou sólida e havia luz, como se um caco de lua seguisse eternamente o lobo cinzento.

Pequeno mortal, o que faz aqui?

— Procuro o dragão — disse Pierre. — Meu amigo Chelag’Ren. Você sabe onde ele está?

Chelag’Ren está morrendo.

— Você pode me levar até ele?

Para quê?

— Quero ajudar. — Pierre percebeu a incongruência de um humano querer ajudar um dragão, mas Chelag’Ren era tudo o que ele tinha. Durante anos eles conversaram à margem do Sangue, às vezes até o raiar do dia, e Pierre era mais próximo do dragão do que de qualquer ser humano.

Foi por causa de Chelag’Ren que Pierre aprendeu as técnicas de Nakamura, foi Chelag’Ren quem trouxe a espada chinesa e os livros com a ciência da mulher-mistério. Foi o dragão quem corrigiu as posturas do menino Pierre e ensinou ele a se mover junto com as tormentas de inverno.

Para ajudar Chelag’Ren, você terá de correr muitos riscos, todos de morte.

— Tudo bem.

Mortais sempre dizem isso até olharem a própria morte nos olhos. E, na maioria das vezes, vocês não podem fazer nada.

— Eu não quero morrer — disse Pierre — mas não vou abandonar Chelag’Ren.

Você sente amor por ele.

— Ele é meu pai, irmão e amigo.

Eu posso te levar de volta para a Fronteira ou eu posso te levar para onde mora Chelag’Ren. O caminho que você escolher não tem volta. Se você desistir, a trilha vai te abandonar e você vai morrer.

— Leve-me até Chelag’Ren.

O lar o dragão é por aqui.

O lobo se virou e começou a caminhar. Pierre se levantou com muitas dores mas os ossos todos encontraram seu lugar. Quando o lobo se afastou, o chão sob os pés de Pierer começou a rachar. Ele alcançou o lobo se manteve a três passos de distância do rabo cinzento.

Não existe na natureza escuridão igual à que nasce das trevas. Noite sem fogo e sem estrelas, caverna mofada com morcegos e aranhas, o fundo do mar. Nada se compara à lava de trevas que cobria a Terra dos Banidos. Pierre caminhou mas não sentiu a passagem de nada. Ele podia estar andando em círculos ou podia estar sempre no mesmo lugar. Nada passava por ele. O lobo não avançar, preso a um pesadelo em que o a escuridão gira na velocidade dos seus passos e nunca se chega a lugar algum.

Pierre interrompe a lembrança e diz a Fregósbor.

— Você falou que é preciso seguir uma trilha mas o lobo caminhou direto nas trevas.

— As leis da natureza, da magia e das trevas quase nunca se aplicam a mistérios. O lobo em si é um caminho.

Pierre primeiro teve dores por causa da queda de quando pisou na Terra dos Banidos. Então as dores ficaram dormentes, os ossos se tornaram monótonos e os cabelos de Pierre cresceram. Barba se esparramou pelo pescoço e peito e Pierre envelheceu andando. Era esse o risco de morte? Envelhecer e morrer antes de encontrar Chelag’Ren?

Você deseja voltar? Perguntou o lobo.

— Não.

Os joelhos de Pierre falharam e o lobo se colocou ao lado do velho da Fronteira. Pierre se apoiou no lombo do mistério cinzento, que seguiu em frente. Duas vezes mais o lobo perguntou se Pierre queria voltar e Pierre respondeu:

— Não. Quero encontrar Chelag’Ren.

Quando os olhos de Pierre embaçaram de velhice e os ossos de Pierre começaram a esfarelar, Pierre deitou no chão para morrer. Ele esticou a mão como se tentasse alcançar o dragão.

Chegamos, disse o lobo.

Pierre abriu os olhos. Estava claro, ele era jovem. Nenhum osso doía, ele enxergava cada folha de grama, cada veio do paredão vermelho e branco que se esticava para o céu na frente de Pierre. Onde estava a Terra dos Banidos? Pierre segurou o ombro onde ainda doía a mordida do lobo cinzento.

— Achei que tinha morrido — disse Pierre.

O lobo se afastou e sentou ao lado do paredão vermelho e branco. Pierre o seguiu e encontrou uma caverna escondida na dobra da rocha. A caverna se abria num bocejo tão grande que Pierre se espantou com aquela dobra que a camuflava tão completamente. A grama se rarefez na entrada da caverna, mas um tapete de musgo cobria o chão e algumas rochas. O musgo lembrava lã ao toque e parecia puxar a luz do sol para dentro da caverna.

Além do musgo, havia cores. Depois de tanto tempo nas trevas, Pierre teve até um pouco de medo daquelas cores. Milhares de tijolos coloridos cobrindo o chão, empilhados até quase chegar ao teto, sobre as rochas, nas rachaduras das paredes. Tijolos, não: livros.

Pierre seguiu adiante e encontrou outras câmaras, cada qual tão grande ou maior do que a primeira, igualmente abarrotada de livros. Tantos livros, que o vento soprava e as folhas se eriçavam com um barulho ensurdecedor.

— Eu não sabia que existiam tantos livros no mundo.

Existem mais, disse o lobo. Mas aqui há livros de mais mundos do que apenas o seu.

Em uma das câmaras adjacentes um livro gigantesco se deitava sobre uma rocha lisa. O teto tinha buracos nessa parte da caverna e um pedaço de sol iluminava o livro gigante, deixando todos os outros em segundo plano. As páginas do livro começaram a virar sem vento. Pierre espiou o lobo, mas não tinha como saber se era o lobo ou outro tipo de poder que estava fazendo aquilo. Quando as folhas pararam de virar, Pierre leu a data.

— Foi o dia em que Chelag’Ren falou comigo pela primeira vez — ele disse e foi se afastando para conseguir ler o que estava escrito nas páginas gigantes. — Na verdade, eu é que falei com ele. Tinha sete anos na época e passei dias criando coragem.

Encontrei um possível humano excepcional, dizia o livro gigante, mas se trata de uma criança e não sei se um humano em formação serve para os meus estudos. O contato de hoje não me forneceu dados o bastante para discernir se este humano pode ou não acrescentar aos meus experimentos. Até agora, ele se enaixa no padrão de gente que tenho acompanhando.

Ele é só. Toda criatura extraordinária é só. A pergunta é se este humano é só por ter perdido a mãe, por ter um pai quase ausente e por ser socialmente desastrado. Se for o caso, não me serve.

Ele não tem medo. Não me refiro a bravuro, refiro-me à ausência de medo. Existem os excepcionalmente corajosos e existem aqueles, meus casos de estudo, que são extraordinários a ponto de superar o instinto e não ter medo daquilo que não apresenta perigo. Por exemplo, não ter medo de mim.

Terei de avaliar melhor esse pequeno humano.

Pierre se virou em dúvida para o lobo.

— Ele está falando de mim, mas não parece me descrever como uma pessoa.

O lobo não se moveu, mas as páginas do livro esvoaçaram e se detiveram algumas semanas adiante.

Me parece que este humano vai servir.

— Ele demorou todo esse tempo para me achar aceitável? — perguntou Pierre.

De qualquer forma, não há mais ninguém. A criança na beira do Sangue será o meu Objeto de Estudo número 09, de agora em diante denominado apenas OE09.

Pierre foi lendo trechos do diário do dragão. A própria vida descrita sob o ponto de vista, não de um amigo, mas de um cientista dissecando o comportamento social de um espécime humano.

O interessante de ter iniciado o estudo com uma criança é que o OE09 desenvolveu um tipo de afeição por mim que nenhum outro demonstrou. Ele parece ter amor por mim, como já vi cães se apaixonarem por seus companheiros humanos. OE09 também aprende mais depressa que os outros humanos extraordinários que encontrei. Isso se deve ao fato de ele ser jovem, talvez. Outros humanos já me disseram que crianças aprendem mais depressa do que os adultos, mas esta é a primeira vez que constato o fato pessoalmente. Amanhã iniciarei um teste. Ensinar OE09 sobre coisas a que ele não tem acesso. Comecarei por técnicas e filosofias do mistério Nakamura.

Nota: incluir mais crianças nas minhas experiências futuras.

Pierre não queria mais ler.

— Eu sou — ele começou. — Eu sempre fui... mas ele disse que eu sou extraordinário.

Humanos não extraordinários não conversam com dragões, disse o lobo. Chelag’Ren só consegue ter contato em primeiro grau com humanos fora da média. Os outros, ele tem de observar à distância.

As páginas do livro viraram mais um pouco e Pierre foi pegando trechos das observações do dragão. Ele pensou enxergar um pouco de afeição nas palavras aqui e ali, mas podia ser o próprio desejo embelezando o que não passava de um ensaio científico sobre OE09.

O coração de Pierre soluçou ao invés de bater. Mãe falecida, pai que não existe direito, irmão que odeia, nenhum amigo. Chelag’Ren era tudo para Pierre, que não era nada para o dragão.

Enquanto essa descoberta estrangulava Pierre, o sol lá fora mudou de posição e a luz ricocheteou numa coisa vermelha, atingindo em cheio o olho de Pierre. Ele foi até o objeto vermelho, agarrando-se a qualquer desculpa para não ler mais o quanto ele não significava para Chelag’Ren.

Presa na rocha, como um marcador de livro indicando o ponto da história em que o protagonista percebe a própria ilusão, estava uma escama vermelha. Mais ou menos do tamanho da mão de Pierre, a escama parecia uma labareda cristalizada. Leve e flexível, porém inquebrável.

Escamas de dragões não caem como as folhas de outono, disse o lobo.

— Provérbio satironês — disse Pierre, virando a escama nas mãos. — Nunca entendi o significado.

Dragões só soltam escamas quando estão em perigo de morte. É um aviso e também um pedido de socorro.

— Que tipo de coisa pode matar um dragão?

Trevas, se usadas com eficiência, podem destruir uma criatura mágica, até mesmo um dragão. Pior do que isso, trevas podem infectar uma criatura mágica e transformá-la em marionete de quem controla as trevas.

— Quem quer controlar Chelag’Ren? Por quê? Existe cura para trevas?

Você precisa tomar uma decisão, não fazer perguntas.

— Você não pode ajudar Chelag’Ren? Um lobo de Sátiron deve ter o poder para expurgar qualquer tipo de treva.

Estou ocupado.

— Com o quê?

Mais perguntas. Você tem os fatos: Chelag’Ren está em perigo de morte por trevas, eu não posso ajudar, mas você está aqui. O que você vai fazer?

Pierre colocou no bolso a escama e disse:

— Me diga o que devo fazer.

Para salvar o dragão, você precisa salvar a Franária e vice-versa. Eles estão ligados pela mesma morte.

O lobo levou Pierre de volta para a Fronteira, cruzando a Terra dos Banidos com tanta velocidade, que Pierre pediu:

— Mais devagar, eu não consigo acompanhar.

Não há tempo, disse o lobo. Segure-se em mim.

Pierre agarrou o lombo do lobo cinzento, que correu ainda mais depressa.

— Se temos tanta pressa, por que ficamos todo aquele tempo na caverna? Por que fomos até lá?

Devemos ser ágeis nas ações, pequeno mortal, mas que grandes decisões devemos tomar com cuidado, ciente de todos os fatos que pudermos juntar.

E foi assim que Pierre, agarrado ao lombo do lobo cinzento, voltou para a Fronteira e se juntou à Caravana de Rimbaud. Ele encontrou o dragão na estrada para Lune e chamou-o pelo nome. Chelag’Ren abriu as asas para brecar o próprio ataque e os olhos leitosos recuperaram o brilho.

— Você — disse o dragão. — Eu conheço você.

— Chelag’Ren — repetiu Pierre. — Sou eu, Objeto de Estudo número 09. Vim te ajudar. Me diga o que fazer.

— Você sabe que é um objeto de estudo.

— O número nove — disse Pierre.

— Mesmo assim quer me ajudar?

Pierre deu um sorriso meio maroto, meio infeliz.

— A Fronteira não é a mesma sem você. Até o Sangue está melancólico.

— Não posso ser salvo — disse o dragão. — É a Guerra que me controla, me envenena o fogo, joga tentáculos em minhas escamas, óleo negro em minhas plumas.

— É a Guerra que te controla?

— Ela me fez matar. Mesmo agora ela empurra e eu mal consigo me conter. Quanto mais eu matar, mas Guerra e menos Chelag’Ren eu me torno.

Os olhos do dragão voltaram a ficar leitosos e ele se contorceu em dor, mas conseguiu lançar-se para longe da Caravana.

— O dragão é mais forte do que a Guerra previu — diz o mago Fregósbor.

— Há quanto tempo você está em Chambert? — pergunta Pierre.

— Não sei. Acho que desde que Sátiron... o que foi mesmo que aconteceu com Sátiron?

— Quatrocentos anos — diz Pierre. — Você estava aqui todo esse tempo. Era de você que a Guerra estava se escondendo antes de o mago de Lune a descobrir.

Fregósbor une as sobrancelhas entrópicas.

— Faz sentido — ele diz. — Se a Guerra se sentiu ameaçada, ela começou a se preparar contra essa ameaça. Se preparar contra mim, que nem sei direito quem sou. É difícil enfrentar magia com trevas, os dois poderes ficam escorregadios e imprevisíveis, por isso ela foi atrás de magia. Ela devia estar se preparando para abocanhar o dragão há muito tempo.

— Mas não conseguiu — diz Pierre.

— Tenho a impressão de que ela ainda não estava pronta. A Guerra tem muito poder. Se ela tivesse esperado tempo o bastante, se tivesse terminado de tecer sua teia, ela teria conseguido roubar para si o poder do dragão.

— Mas o mago de Lune a descobriu e ela se precipitou.

— Foi um erro — diz Fregósbor. — Ela agora está ligada ao dragão e não pode escapar à luta que ela mesma começou. Ela tem de, ao mesmo tempo, vencer o dragão e continuar sufocando a Franária.

— Me parece que a Franária está reagindo — diz Pierre.

— A águia fez algo muito parecido com o que Guerra tentou com o dragão, mas de forma muito mais sábia. Ela sabe que está aleijada, por isso não tentou controlar nenhum poder do jeito que a Guerra tenta controlar o dragão. Ao invés de tomar para si o poder do destino, águia soltou ele em direção ao seu povo. É um risco porque uma história sem rumo é quase tão perigosa quanto uma Guerra esfomeada, mas os destinos têm meios de caçar personagens, de se conectar a quem lhes dê vazão.

Pierre passa a mão pelo ombro e pelo cangote. A mordida que o lobo deu quando puxou ele para o chão sólido deixou ali uma cicatriz em forma de meia lua.

— Parece que tudo se encaixa — diz Fregósbor — embora nada se tenha resolvido. Só uma coisa eu não entendo: você. Mesmo depois de ler o diário do dragão e entender o que você significa para ele, mesmo assim você continua arriscando sua vida por ele.

Pierre levanta o ombro.

— Você não deixa de amar alguém só porque esse alguém não ama você.

Alguma coisa amolece no rosto de Fregósbor, as sobrancelhas se afastam e quase ficam mansas, as rugas se desdobram um pouco, revelando outras rugas minúsculas, quase invisíveis a olho nu.

Pierre pega o mago pelos ombros, mas imediatamente afrouxa as mãos. O corpo de Fregósbor parece só osso e os ossos parecem de giz.

— Você pode vencer a Guerra? — Pierre pergunta, mais para si mesmo do que para o mago, e murmura: — Parece tão frágil.

— Sou um estudioso — diz Fregósbor — um cientista. Não sou do tipo que sai enfrentando guerras e trevas.

— No entanto ela se escondeu esse tempo todo — diz Pierre — de você.

— Sou um pesquisador de sonhos. Nunca lutei contra nada sólido, só contra desilusões. A resposta está nos sonhos.

— Para qual pergunta?

— Queria tanto lembrar.

— Enquanto você não se lembra, será que consegue pensar em um jeito de ajudar a Franária?

— A resposta está nos sonhos — Fregósbor parece não ouvir mais Pierre. Está mergulhado em conjecturas, as sobrancelhas entrópicas retorcidas no topo do nariz.

Pierre tem vontade de sacudir o mago velho, de sacudir o lobo cinzento que ficou nas trevas quando provavelmente um único uivo dele traria fim à Guerra. Queria sacudir Chelag’Ren por não ser pai nem irmão nem mesmo amigo. Pierre se sentou novamente à beira do Sangue sonhado.

— É tudo muito mais difícil do que eu imaginei. Tudo parece estar convergindo em mim. Tuen, Chambert, Chelag’Ren, até Fulbert e Henrique.

Fregósbor sai de seu transe e concorda com a cabeça.

— Você deu o primeiro passo, agora a história enraizou em você — diz o mago. — Sei pouco a respeito de histórias e destinos, mas ouvi dizer que certas histórias outorgam poder a quem as faz acontecer.

Pierre já ouviu isso de Líran. Ele brinca distraído com as folhas secas no chão e diz:

— No começo, pensei que tudo estava bem, que eu teria uma pequena aventura e a história terminaria do meu jeito. Mas não é assim que funciona. As coisas nunca mais serão do jeito que foram.

Pierre se levanta, sacude as folhas secas das calças e vira para Fregósbor.

— Você não pode solucionar esta bagunça?

— Magia não é uma solução; é só magia.

— Eu também não sou uma solução; sou só Pierre.

— Você inspira.

— Pensei que magia inspirasse.

— Magia é o desconhecido, o inesperado — diz Fregósbor.

— E isso não é estimulante?

— Com esperança, talvez, mas o desconhecido sem esperança é só medo.

Pierre mergulha a mão na água. Seu toque não gera ondulações, o braço simplesmente desaparece através da água espelhada.

— Homens morreram por minha causa. Um deles eu considerava um amigo. Eu não estava lá quando ele enfrentou Jean e na minha cabeça parece que fui eu quem o matou. Dizem que sou herói, já ouvi a palavra, sinto quando sussurram às minhas costas. Heróis deveriam salvar vidas, não o contrário.

— Eles morrerão, com ou sem sua ajuda — diz Fregósbor. — Por que não morrer por você?

Pierre sorri. — Sua lógica é um pouco distorcida. Se eu permitir que morram por mim, isso não faz de mim um monstro?

— Às vezes ser herói significa ter a coragem para ser um monstro.

— Não acho que herói e monstro possam ser a mesma pessoa.

Fregósbor coloca-se ao seu lado.

— Você considera Yukari Nakamura uma heroína? — Ele sabe que a resposta é ‘sim.’ — E Nastassja de Sátiron? Juntas elas deram fim à Era Negra, construíram o Império. Quantas pessoas você acha que elas mandaram para a morte? Quantas mataram com as próprias mãos? — Fregósbor aponta para o outro lado do rio. — A maldição que culminou na morte de todos os elfos foi obra de Nastassja. Ela era impiedosa, até cruel.

— Como você sabe? — pergunta Pierre.

— Eu a amava. — Fregósbor solta um longo suspiro. — Ainda a amo. Ela foi uma das maiores heroínas da história. E também um de seus mais adoráveis monstros.

Pierre brinca pensativo com o Sangue parado a seus pés. Nastassja de Sátiron e Yukari Nakamura enfrentaram a Era Negra. O que Pierre encara é bem diferente.

— Não — ele diz. — A Franária não precisa de mais um monstro. Como faço para voltar a Chambert?

— Este sonho é seu — diz Fregósbor. — Só você pode sair dele. Receio que seja um longo caminho.

— Então é melhor eu começar a andar.


Capítulo 100